Reino da Magia

Isso tá ficando perigoso...


Bertha desvia seu olhar de Ricardo ao ouvi os garotos lhe chamarem. Em seguida ela abaixa o braço ao mesmo tempo em que vira sua cabeça na direção de Serena. As duas ficam se encarando.

—O que é que você está esperando, garota? Vai ajudar seus amigos.

As palavras de Bertha dão um leve susto em Serena que, sem hesitar, rapidamente se levanta e ajuda Nicolas e Lucius a se levantarem.

—Olha só o que você fez, garota! Além de acabar com a nossa diversão, sujou todo o corredor. Trate de limpá-lo! - ordena Ricardo, frente a frente com Bertha.

—Limpe você a sua sujeira. - responde a garota. - Aliás, do seu lado tem mais gente pra ajudar na faxina.

—Mas que atrevimento dessa serviçal! - diz Alice - O que pensa que está fazendo?

Nicolas, Serena e Lucius vão para perto de Bertha, que acompanha a movimentação deles com os olhos. Os que estão na frente dela observam, esperando uma resposta da garota e sua próxima ação. Bertha olha para cada um dos rostos e depois vira-se para Ricardo.

—O Professor Mark me pediu para voltar e ver se não havia ficado ninguém para trás. Também me pediu para levar os atrasados para o refeitório, então... É melhor você e seu grupo limparem logo essa bagunça e depois seguirem a gente até o refeitório. - a garota olha para Nicolas e seus amigos. - Vamos!

Bertha segue em frente e Nicolas, Lucius e Serena se preparam para segui-la. Mas Ricardo coloca-se em seu caminho, o que faz a garota parar e encará-lo novamente.

—Realmente você é uma gorda abusada, hein? Acho que você ainda não caiu em si e não percebeu o que está se passando. Mas eu vou lhe mostrar...

Com um leve sorriso, o garoto ergue o braço direito com a palma da mão voltada para cima. Nicolas, Serena e Lucius se assustam, pois sabem que ele vai usar o feitiço de novo. Com uma expressão séria, Bertha olha para a mão de Ricardo. Parece que ela não notou que está prestes a sofrer um ataque. O sorriso de Ricardo aumenta gradativamente, parecia que ele saboreava os segundos antes de atacar Bertha. Mas de repente ele para ao ver a garota também erguer seu braço direito e mostrar-lhe a palma da mão aberta com os dedos bem esticados, fazendo o sinal de ‘pare’. Ricardo questiona aquele gesto.

—Hunf! Não adianta me pedir para parar, garota, agora é tarde! Pelo menos foi inteligente suficiente para perceber o que vai acontecer.

—E você ainda continua burro! - revida a garota. - Olhe! Não é ‘pare’, é ‘cinco’.

—Cinco? Cinco o quê?

—Eu mal ti conheço e já tenho cinco motivos para enfiar a mão na sua fuça... - Bertha lentamente une os dedos no centro da mão e lhe mostra o punho cerrado -... E eles se reuniram e estão prontos para lhe mostrar o seu devido lugar. Eu disse ao Professor Mark que iria ensinar gente como você a perceber o valor que tem gente como eu. Abra os olhos e desça desse pedestal de arrogância, garoto! Você não está mais na corte, nem com seus amiguinhos emplumados. Aqui é uma escola e a conversa agora é outra. Mas... Existem pessoas que não se convencem só com palavras, não é? Ah! E antes que eu me esqueça, ‘gorda’ é a senhora sua mãe! Seu... (Bertha olha rapidamente para Nicolas e depois para Ricardo) ‘Pó de arroz’!

Nicolas quase solta um riso ao ouvir as palavras de Bertha. E era nítida a expressão de fúria no rosto de Ricardo e a ira em seus olhos. Ele não esperava ser desafiado daquele jeito e por alguém considerado tão inferior. Nicolas observa os dois se encarando, com as mãos à frente, uma apontada para o outro. Mas algo lhe chama mais a atenção. O tapete sob os pés deles faz movimentos como se um vento soprasse em sua superfície, subindo e descendo. Mas não há vento passando pelo corredor. “Não é vento... É magia! As magias deles estão se chocando, medindo forças... Eu não consigo ver nem sentir, mas algo me diz que é magia, é magia sim! Isso tá ficando perigoso...”.

O garoto volta a olhar para os dois, assim como os outros que também observam a cena, apreensivos para saber quem dará o primeiro golpe. O clima fica tenso e a qualquer momento algo pode acontecer.

—Não precisa fazer isso, Bertha, pode parar!

Uma voz vinda do fundo do corredor é ouvida. Margot é a primeira a olhar para a pessoa que acabara de chegar. Logo aqueles que não estão participando da contenda também olham para o recém-chegado. E todos compartilham com Margot os olhos esbugalhados e as caras espantadas ao descobrirem de quem se trata. Bertha muda sua fisionomia e lentamente abaixa o punho ao olhar para aquele que pronunciou seu nome. Ricardo, ainda de costas, é o último a olhar para trás. E assim como os outros não acredita no que vê.

—Que caras são essas, gente? Parece que nunca me viram! - diz Nicolas, a pessoa no final do corredor.

Imediatamente começa um vaivém de cabeças que olham para o Nicolas ao fundo e depois para o Nicolas à frente e novamente para o outro Nicolas... São idênticos, até na voz. A diferença é que um está com sua roupa rasgada e o outro mostra uma aparência como se nada tivesse acontecido. Diante dos olhares incrédulos, os dois Nicolas caminham um na direção do outro em meio aos comentários dos presentes.

—O que é isso, o que está acontecendo? - pergunta David, dando dois passos para trás, abrindo passagem para os garotos. Os que estão mais ao centro do corredor fazem o mesmo.

—Nick? Nick, quem é você? - Serena olha para os garotos ainda sem saber para qual deles foi feita a pergunta.

—Acho que já sei o que está acontecendo. - afirma Lucius, com um sorriso. - Ah! É incrível!

—Isso... Isso é uma ilusão? Munique? - pergunta Alice para a colega, que também é da mesma classe mística de Nicolas.

—Como pode ser uma ilusão se eu o feri com o meu feitiço? - diz Ricardo, deixando os outros com mais dúvidas do que já tinham.

—É um pseudocorpo! O pseudocorpo que Victoria viu no teste... Vocês se lembram? - conclui Munique - Ela disse que viu um garoto, igualzinho a ele, no canto da sala. O pseudocorpo, seu... Amigo Imaginário!

—O nome é Lucas! - responde o garoto com a roupa rasgada ao passar pela garota.

—Nossa! Um pseudocorpo perfeito. - diz Margot - Agora entendo por que o Professor Mark achou que ele fosse um vampiro.

Todos olham admirados para Nicolas e Lucas. Os garotos ficam frente a frente e uma coisa estranha acontece. Lucas entra no corpo de Nicolas e desaparece como se tivesse sido absorvido por ele. Os outros ficam mais espantados, exceto Lucius que expressa um leve sorriso. Nicolas fecha e abre os olhos, também sorrindo. Em seguida ele estende a mão na direção de Bertha.

—Vamos pessoal! Não temos mais nada o que fazer aqui. - em meio à inércia dos seus amigos, Nicolas repete o pedido com mais ênfase - Vamos gente! Vocês não ouviram o que a Bertha falou? Temos que ir para o refeitório... Já!

Nicolas dá as costas para eles e caminha em direção à saída. Serena e Lucius finalmente se mexem e o seguem, ficando ao lado do amigo. Antes de sair, Nicolas olha para trás.

—Bertha, você não vem?

A garota fecha a boca engolindo saliva e faz um movimento afirmativo com a cabeça. Rapidamente ela passa por Ricardo e segue Nicolas. Os outros continuam pasmos, observando o quarteto deixar o local. Eles adentram pelo último corredor e logo ficam de frente para as escadas de uma das torres laterais. Durante o percurso, Serena, Lucius e Bertha fazem comentários, curiosos com a atuação de Nicolas.

—Então ele é o amigo imaginário que você mencionou no teste. Se tivesse feito essa magia, acho que eles iriam pensar duas vezes antes de tentarem qualquer coisa contra você. - diz Serena - Ou será que você estava escondendo o jogo como eles fizeram, hein?

—Não é nada disso, Cabelo de Fogo! O Lucas... Bom, ele tipo que aparece quando a minha magia está mais forte, em situações difíceis, ou quando ele quer... Sei lá! O bom é que ele aparece, né? - responde Nicolas - Eu não tenho controle sobre como fazer ele aparecer, mas quem sabe eu aprenda aqui.

—Não sabe como? Ahn... E quando você fez o feitiço?

—Quando eu sai para ir chamar o Professor. Naquele momento eu senti que precisaria de ajuda, mas quando Ricardo ameaçou me pegar percebi que não iria consegui chamar ninguém para ajudar. Então pensei em Lucas e ele apareceu e me disse para continuar em frente e dar a volta pelo outro corredor enquanto ele iria distrair os outros. Minha esperança era encontrar alguém, mas todos já haviam ido embora. Então retornei pelo outro lado. O resto vocês já sabem...

—Eu já o tinha visto uma vez, na floresta. Lembra? - recorda Lucius, quando os três fugiram da carroça - Mas agora o vendo tão de perto... Deve ser ótimo ter alguém para conversar, não se sentir tão sozinho. Além do que ele pode ti ajudar muito, Nick!

—Sim! - concorda Bertha - Tudo que você aprender ele também irá aprender, e quem sabe poderá até fazer feitiços. Você ficará forte em dobro, Nicolas.

—Por que vou me preocupar com força se tenho você ao meu lado?

Bertha olha com seriedade para o garoto, mas depois acaba sorrindo para ele. As crianças chegam até as escadas e assim que Nicolas começa a subir, uma forte dor nas costas o faz gemer e levar a mão esquerda ao ombro direito, curvando levemente o corpo à frente. Os outros se assustam.

—Nick, você está bem? - pergunta Serena.

—Não é nada! - tranquiliza o garoto - É só uma pontada que eu senti de repente nas costas. Tá passando...

—É o local onde o espinho de Ricardo acertou Lucas. - repara Lucius - Parece que o que o pseudocorpo sente passa para você quando... quando vocês se juntam de novo.

—Mas se fosse assim ele estaria sentindo muita dor e não só uma ‘pontada’. - diz Bertha.

—Pessoal! Vocês estão falando demais. Eu agradeço a preocupação, mas ninguém me conhece melhor do que eu mesmo, não é? - diz Nicolas - Acho que o dano que o Lucas sofre é dividido comigo quando a gente se une. Isso já aconteceu outras vezes quando os garotos da vila implicavam comigo. Mas acho que Lucas recebe a maior parte do dano, ou ele divide... Há! Não sei!

—Taí mais uma coisa pra você estudar, Nick. Eh!

—Só você pra me lembrar que estamos em uma escola, Serena. Mas não é hora de estudar, é hora de comer e eu estou faminto.

Todos concordam com Nicolas. Assim eles sobem as escadas da torre circular em direção ao quarto andar, o refeitório.