CAPÍTULO I

POV Enjolras

Era difícil desistir do que eu passei a vida inteira querendo fazer dar certo, infelizmente, não tínhamos muita opção, as pessoas estavam morrendo e não havia ninguém se voluntariando. Dessa forma, nunca em nossas vidas conseguiríamos vencer o exército do rei. Sim, eu morreria tentando, pois sem meus ideais, o que eu era? Mas o simples fato de saber que a morte era iminente já se mostrava bem desanimador.

-Vamos deixar de ser teimosos, Enjolras, não temos futuro. – Grantaire quase nunca dizia coisas que faziam a diferença, e quando o fazia, era apenas para acabar com o pouco de esperança que ainda me restava, aparentemente.

- Cale a boca, beberrão. – Combeferre empurrou Grantaire e se prostrou ao meu lado, quase como um cão fiel, realmente tocante. – Vamos procurar mais pessoas para nos ajudar, tem que ter alguém no meio desses becos e vielas querendo uma vida melhor. Como... Como esse mendigo! – Aquilo era loucura, não tínhamos tempo para sair por aí simplesmente procurando ajuda. Não havia tempo para essas bobagens. – Senhor? – Combeferre acordou o pobre senhor de rua. – Gostaria de se juntar a revolução?

- Revolução? Eu?! – o velho se exaltou. – Veja bem, caro cavalheiro, sou idoso e já frágil, não seria de serventia. Mas, procurem por Melchior nas docas, onde párias da sociedade lutam por poucos francos. Se tiverem Chior do vosso lado, nenhum pirata e outros vermes franceses se negaram a ajudar.

***

Piratas e vermes franceses. Não era esse tipo de ajuda que eu queria. Mas, eles eram tão vítimas da sociedade monárquica quanto qualquer outro, ou seja, não importava muito suas origens, contanto que estivessem ao meu lado. Eu precisava convencer aquele rapaz, o tal do Melchior.

As docas realmente eram nojentas. O cheiro dos restos de mercadoria nauseava e ratos passeavam pelo lugar, muitos bem maiores do que o tamanho natural de um roedor. Eu me perguntava constantemente o tipo de pessoa que encontraria ali, para me ajudar. Não devia ser alguém com muita classe, não para aceitar aquele tipo de vida.

- Minha bebida acabou, onde eu acho um bar por aqui? – Grantaire lançou a garrafa de vidro contra a parede, que se estilhaçou em milhares de pedaçinhos. Consegui imaginar minhas esperanças sendo aquela garrafa e a mão do bêbado sendo os oficiais franceses.

- Não temos tempo para isso. – Resmunguei e continuei caminhando, tentando ignorar as senhoras com crianças pequenas no chão, pedindo comida, clamando por compaixão.

Era por eles que eu lutava, meu bom Deus. Para tentar melhorar suas vidas. Se meus motivos eram nobres, eu não entendia porquê parecia que Deus havia me abandonado. Queria apenas melhores condições para aquelas pobres párias...

Com um grito, eu fui mandando para fora de meus devaneios, pessoas se exaltaram, em um confusão de apostas, xingamentos e bebidas .Que barulho era aquele?! Parecia que alguém estava lutando... “Procurem por Melchior nas docas, onde párias da sociedade lutam por poucos francos.”

Ali, no meio daquele tumulto, estava a minha última esperança. Em uma confusão de corpos pulsantes, alterados pela emoção do confronto, fui avançando, tentando ver o rosto de meu futuro aliado.

Era rápido como as raposas que costumava caçar. Esquio e mortal nos golpes lançados por sua pequena mão. Muito menor do que imaginava, tinha um porte frágil e elegante, mesmo enquanto corpos pesados e suados se jogavam contra ele. Distribuía socos e chutes sem um pingo de piedade, na sua agilidade não havia compaixão. Parecia indiferente e nem de longe alterado quanto os outros. Lutar para ele era como respirar para mim. Natural, necessário e, com toda a certeza do mundo, indispensável.

Corpos caiam, mas nenhum era ele. Mais pessoas se aproximam, muito mais amedrontadoras que outras, mas nem isso era o suficiente para fazer Melchior se assustar. Ele seguia batendo. Batendo e derrubando, como se essa fosse à única coisa que conseguisse fazer em sua vida.

Eu preciso dele.

Eu preciso tanto dele.

Obviamente não deixarei ninguém perceber meu desespero.

Usava calças justas e um chapéu na cabeça, que me impedia de ver a cor de seu cabelo e até olhar em seus olhos direito. Era pequeno e bem magro, não entendia como alguém assim poderia ser tão forte, afinal, ele parecia tão... Frágil?

A luta acabou e as pessoas foram congratular Melchior, sorria levemente, mas parecia completamente desinteressado até um velho senhor chegar e ele entregar um pouco de dinheiro. Nem de longe o que ele merecia depois de ter lutado tanto, mas não pareceu reclamar, provavelmente qualquer coisa acima de nada já era o suficiente.

- Vamos beber! Hoje é por minha conta! – Anunciou. Bem, sua voz era bem fina e suave, combinava com seu porte. Ele dividiria o pouco que tinha com aqueles que derrubara? Simplesmente admirável.

Foi um alvoroço de pessoas correndo para uma pequena portinha aos pedaços no fim de um beco, mas ele ficou para trás, encarando as águas inquietas do meio da noite. Aquele parecia o momento ideal para abordá-lo.

- Com licença, senhor? - Aproximei-me. – Sou Enjolras e esses são meus companheiros, Combeferre e Grantaire.

- Senhor? – soltou uma risada, soava como o tilintar de sininhos, não parecia nenhum pouco masculina.

- Você parece mulher, mas isso seria impossível, do contrário teria... – Grantaire se aproximou, dando um soco em seu peito. – Seios? Você tem seios?! Mas são bem pequenos, não é mesmo? Nem dá pra notar. – Ele deu um apertão.

Sua expressão se contorceu em uma terrível carranca antes dela erguer o punho e acertar o olho esquerdo do bêbado, lançando-o contra o chão. Ele continuou ali, todo esparramado e aparentemente sem qualquer esperança de se levantar.

Mas, espera um pouco, minha última chance era ELA e não ELE?

Bom, VIVE LA FRANCE.

***

- O que senhores tão bem vestidos fazem em uma parte tão sombria da cidade? Os prostíbulos são do outro lado. – Cerrei os punhos, mas me controlei. Ela é uma senhorita. Eu não bato em senhoritas, nem se elas forem fortes o suficiente para quebrar minha espinha.

- Sinto muito por Grantaire, todos nos esperávamos encontrar com um homem, e não uma senhorita. - Eu olhei para meu infeliz companheiro, ainda jogado ao chão, completamente desacordado.

- Guarde o senhorita para mulheres sonhadoras e idiotas que caem pelo seu encanto. Eu sou Chior. – estendeu a mão, eu a peguei e me curvei para beijar as costas de sua pequena mãozinha, mas ela riu e apertou com força, dando, com toda certeza do mundo, o cumprimento mais masculino, e doloroso, que eu já recebera em minha vida. – Vamos ao bar, lá conversaremos melhor.

Como se tivesse dito a palavra certa para tirá-lo de um encanto, Grantaire levantou, os olhos brilhando por poder beber ainda mais. Ela riu, provavelmente já esquecendo o ocorrido e se maravilhando com a jovialidade que ele transmitia. O número de jovens que se atiravam a ele por seu jeito imaturo e desrespeitosamente heroico era realmente surpreendente.

***

POV Melchior

O que três burgueses poderiam querer comigo? Será que eu tinha alguma divida com eles também? Não me lembrava disso, mas poderia ser. Afinal, o que mais eles poderiam querer com alguém como eu? Uma lutadora qualquer, certo, eu era a rainha das docas, mas parava por aí, as classes mais altas de Paris nem sabiam da minha existência...

- Sou o líder da revolução que está acontecendo no centro da cidade, precisamos de reforços, achei que você e os homens daqui poderiam nos ajudar, são realmente muitos. – Olhou envolta. O bar era modesto, mas bem grande e estava cheio de pessoas que fariam tudo que eu as mandasse fazer. Bom, fazia sentido ele me pedir ajuda. – Claro que como mulher você ficaria cuidando dos feridos.

Eu? Enfermeira enquanto todos se divertiam de verdade?! Jamais. Não nascera para ficar as sombras, fazia parte de mim a luta, o barulho, a confusão. Ele não tinha o direito de tirar essa parte importante de minha vida. Como meu pai tirara, há muitos anos atrás.

- Não estou interessada... – resmunguei e mandei Gaston, o dono do bar, servir-me uma dose de rum.

- Mas... – Enjolras tentou, mesmo eu deixando claro, pela minha cara, que não estava nenhum pouco interessada no que ele falaria. – Essas pessoas, elas acreditam em você, por isso a seguem. Não é por que você é forte e muito menos por que têm medo. Eles te seguem por que você é a esperança deles, isso é uma grande responsabilidade que pessoas como nós não podem desobedecer. Diga-me, você é má o suficiente para conviver com a ideia de que, em algum momento de sua vida, pode dar uma vida melhor para eles, mas lhes negou isso?

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.