— Tudo bem, senhorita Sousa. – odiava ser chamada pelo sobrenome. – Você sabe por que estamos aqui hoje?

Não respondeu. Olhou pela janela do hospital e sentiu as lágrimas queimando em seus olhos, porém não se permitiu chorar, estava com ódio demais para aquilo.

— Vou facilitar então... – a médica tirou os óculos. – Como está se sentindo?

— Um lixo. – cuspiu as palavras. – É assim que você gosta que eu me sinta.

— Claro que não. – ela respondeu com olhar complacente, quase com pena. – Seus pais me disseram que você é uma menina muito doce e...

— Meus pais podem ir comer merda! – a frase saiu mais emotiva do que ela queria e logo tentou respirar fundo, porém sua respiração estava muito irregular.

— Seus pais te amam, Mônica. – A mulher de aproximadamente vinte e cinco anos se levantou.

— Amam porra nenhuma. – Ela não olhava mais a médica. – Eles me odeiam!

— Eles só querem ajudar. – No seu crachá lia-se Ana Paula. – Eu também quero te ajudar.

— Eu não quero a ajuda deles e muito menos a sua!

Mônica estava sentada na cadeira mais confortável da sala, enrolada em um pano amarelo que usava para dormir. Odiava aquele lugar, odiava aquela mulher, porém sabia que para um dia sair dali não podia continuar com o comportamento agressivo que tinha mostrado nos primeiros dias.

Tinha agredido aquela médica duas vezes nos primeiros dias e tinha tentado fugir todos os dias durante sua primeira semana. Acabou por desistir, porém não gostava nem um pouco daquele lugar e se tivesse uma boa oportunidade, fugiria. Lembrou então de seu namorado e desejou que as horas passassem mais rápido para poder vê-lo.

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Aquele sábado estava sendo um dia muito difícil para Mônica. Se encontrava deitada no chão do banheiro com a porta trancada. Tinha chorado e vomitado tudo que tinha comido no dia anterior, passando por pequenas tremedeiras a todo momento. Pensava em como a médica tinha te dito a verdade quando falou que a situação não melhora.

Não melhora.

Só piora. Os minutos se arrastavam e ela só queria se divertir. Pensou na pessoa que ela estava virando e na pessoa que no fundo ela queria ser, e as duas eram tão diferentes uma da outra que sentiu pena de si mesma.

Qualquer coisa saciaria suas vontades. Não importava se era um copo de bebida, um baseado, até mesmo um cigarro acalmaria o turbilhão de pensamentos que estava a rodar por sua cabeça. Lembranças de sua antiga personalidade entrava em conflito com a atual e chorava ainda mais quando pensava nele.

Ele. Não era sempre que se permitia pensar, porém talvez aquilo a acalmasse. Olhou para a tela de seu celular esperando ver a foto dos dois na tela de bloqueio, porém a vergonha a atingiu em cheio. Balançou a cabeça se sentindo ridícula e se levantou.

Já não sabia quantas vezes tinha lavado o rosto quando sentiu sua barriga doer. Chorou baixinho enquanto se sentava no chão, esperando a dor passar. Odiava aqueles dias e já fazia meses que não os tinha. Quase tinha se acostumado.

O enjoo a deixava tonta e vomitou de novo até suar. Estava fisicamente cansada de passar mal.

Sentiu-se melhor quando era de tarde. Abriu a porta do banheiro e passou pela cozinha rapidamente. A falta da garrafa de whisky a deixava maluca. Tinha esquecido de comprar outra depois das meninas beberem uma quase toda, mas era sempre uma faca de dois gumes ter a garrafa cheia quando estava naqueles dias. Quando a necessidade de beber era maior do que a necessidade de sair para se drogar aí sim ela tinha um problema.

Mônica acabou por tomar uma ducha e andar de um lado para o outro até pegar o celular. Ao mesmo tempo que pegava, viu que estava recebendo uma chamada. Sorriu aliviada ao ver o nome na tela e atendeu no primeiro toque.

— Achei que nunca mais ia ouvir sua voz. – DC disse zangado. – Que milagre é esse?

— Me desculpa. – ela pigarreou e depois percebeu que não tinha dito nenhuma palavra o dia todo, só chorado.

— Você está bem? – Ele perguntou um pouco desconfiado baixando a voz.

— Sim. – Falou sem muita convicção após alguns segundos.

— Por que eu acho que isso é mentira?

— Mas é verdade. – Ela tentou uma risada.

— Acho que vou passar aí agora. – Mônica ouviu um barulho do outro lado da linha. – Nimbus! Vou levar a moto!

— O que? – já estava olhando de um lado para o outro um pouco incomodada. – Olha, você tem razão, eu não estou bem e...

— Eu sei que você não tá bem. – DC a cortou. – Por isso vou passar aí. Não se preocupe, cinco minutos estou aí. Seu apê é o número quarenta, não é?

— É, mas não acho que... – e desligou a fazendo sorrir.

Encarou a tela do celular por vários segundos até se dar conta de que ele estava vindo em uma péssima hora. Estava se sentindo melhor, mas não estava cem porcento, seu banheiro estava deplorável e ela não podia confiar de jeito nenhum em seu estômago.

Coçou a cabeça e seus olhos marejaram. Não se sentia capaz de ver DC naquele estado, entrou no banheiro e tentou limpá-lo o mais rápido possível. Olhou seu reflexo no espelho, vendo como estava pálida e como seu rosto estava inchado de tanto chorar, suas mãos tremendo enquanto tentava pentear os cabelos com os dedos.

Ouviu batidas na porta e correu para poder abrir, encarando o chão enquanto ele entrava. DC também não aparentava estar muito bem: seus cabelos, normalmente um moicano bem arrumado, estava um pouco desgrenhado talvez por conta do capacete da moto e suas feições pareciam cansadas.

Os dois se sentaram em silêncio na sala até que DC a encarou e pegou sua mão.

— Eu senti sua falta. – confessou enquanto brincava com os dedos de Mônica. – Você nunca mais falou comigo.

— Eu sei. – falou baixinho. – Eu ia ligar.

— Mas não ligou. – Concluiu enquanto a olhava nos olhos.

— Me desculpa. – ela tentou procurar uma forma de explicar.

— Não tem problema. – ele a calou. – Sei que você não gosta de mim, mas achei que nós fôssemos amigos.

— A gente é. – Mônica suspirou. – Eu gosto de você, Do Contra.

— Se somos mesmo amigos, gostaria de fazer umas regras. – ele colocou as duas pernas em cima do sofá e se aproximou de Mônica. – Você tem que conversar comigo. Na faculdade e no telefone. E sair comigo pelo menos UMA vez por semana.

— Tudo bem. – ela avaliou e depois acenou com a cabeça. – Posso fazer isso.

— Começando por hoje! – DC levantou de supetão levando-a com ele. – Vamos sair para comer agora.

O movimento súbito a deixou um pouco tonta e Do Contra teve que ajudá-la a se sentar de novo.

— Hoje não estou me sentindo muito bem. – ela disse colocando a mão na cabeça. – Acho melhor você ir embora.

— Não, não vou embora. – Ele foi para a cozinha, mexendo no compartimento de cima. – Essa é outra regra: não pode simplesmente me mandar embora.

— DC, por favor. – ela sentia o enjoo voltando e se deitou no sofá.

— Aqui. – ele ofereceu o gelo. – Chupa isso.

— O que? – Mônica tirou as mãos da cabeça alarmada e viu ele segurando um copo com várias pedras de gelo. – Oh, tudo bem.

Mastigar o gelo a deixava mais relaxada e dava a falsa sensação de que estava comendo algo. Do Contra se sentou no chão e oferecia um gelo sempre que Mônica tentava alcançar o copo com a mão. Acabou mastigando alguns também depois de algum tempo.

— Está melhor? – Ele perguntou quando ela teve coragem o bastante para sentar de novo.

— Sim. – Ainda estava um pouco instável. – O enjoo passou, mas não é como se eu tivesse algo para vomitar no meu estômago.

— Passou o dia mal? – Ele colocou a mão no seu joelho e Mônica sentiu sua mão quente pulsando. – Eu pensei em ter vindo mais cedo.

— É difícil, DC. – resolveu sentar-se ao lado dele, puxando as pernas e apoiando a cabeça nos joelhos. – Muito difícil.

— Eu não consigo imaginar o que você sente. – Ele confessou depois de um tempo.

— É como se... – Ela respirou fundo olhando para frente. – Se você estivesse faminto e qualquer coisa que você comesse te saciasse, mas a sua fome é de qualquer entorpecente. Eu não tinha um dia desses tem muito tempo.

— Você está sóbria há quanto tempo? – Mônica podia sentir a curiosidade que emanava dele. – Não precisa responder se não quiser.

— É... – Seus olhos encontraram o dele. – Menos de um ano. Quando entrei no AA, já tinha alguns meses, mas estava encontrando muitas dificuldades. Minha psicóloga disse que seria bom para minha cabeça.

— Quais dificuldades?

— Ah... – Era muito estranho para Mônica falar daquilo com alguém que não fosse Ana Paula, sua médica. – Eu ficava muito triste e não queria mais sair de casa, ir para a escola então era quase um sacrifício.

— Entendi. – Só que DC ainda tinha muitas perguntas que queria fazer, mas não tinha coragem.

— Do Contra... – Mônica se levantou e depois ele a imitou. – Eu vim pro Limoeiro porque eu queria me afastar desse meu passado, recomeçar...

— Você não gosta de falar sobre isso, não é? – ela sorriu tristemente. – Não tem problemas, não tá mais aqui quem perguntou!

Mônica se dirigiu a cozinha devagar, indo um passo de cada vez. Usava uma calça legging e um top, porém não tinha visto necessidade de se trocar com a chegada de Do Contra. Bebeu um copo de água e quando se virou, Do Contra tinha sentado na bancada de mármore da cozinha.

— Como foi seu encontro com Cebola ontem? – a pergunta a pegou de surpresa.

— Você sabe que eu saí com ele? – Suas sobrancelhas quase chegaram na raiz de seu cabelo.

— Todo mundo da faculdade deve saber. – cruzou os braços com raiva. – E ele fez questão de falar bem alto na lanchonete.

— Ah. – ficou totalmente sem graça. – Foi normal.

— Ele te beijou? – DC saltou do mármore e se aproximou.

— O que? – Do contra se aproximava lentamente com a expressão séria. – Por que você quer saber isso?

— Quero saber! – Já estava tão próximo que Mônica não precisaria se esticar muito para tocar em seus ombros.

Do Contra esperou uma resposta, porém Mônica estava calada. Notando que sua respiração estava rápida, aproximou-se e a envolveu em seus braços. Passou os braços pelas costas dela, sentindo que Mônica se arqueava para frente, querendo sentir ainda mais o seu abraço.

— Ele fez isso? – sussurrou em seu ouvido enquanto a abraçava mais forte.

— N...Não. – Mônica disse com a voz baixa.

— E isso? – DC perguntou provocante, beijando o pescoço de Mônica a fazendo suspirar.

— Também não. – sua voz quase sumiu, estava muito absorta para poder pensar direito.

Do Contra se afastou um pouco, colocando sua cabeça encostada na de Mônica. As respirações dos dois estavam fortes e Mônica podia sentir a respiração de DC em seus lábios. Ouviu um barulho de pássaros e ficou sem entender, porém DC se afastou o suficiente para olhar para a sala.

— Seu telefone tá tocando. – ele comentou, incerto se deveria se afastar.

— Meu... – ela ainda olhava para ele e depois entendeu o que ele quis dizer. – Ah, acho que eu devo atender.

Mônica se afastou de Do Contra como um raio, totalmente desnorteada. Seria clichê dizer que nunca tinha sentido aquele nível de química, mas para ela aquilo foi de tirar o fôlego. “Imagine se a gente transasse”, aquele pensamento a deixou eufórica e muito vermelha. Pegou o celular com as mãos trêmulas e viu o nome de sua mãe no visor.

— Oi, mãe! – ela riu nervosa.

— Filha, oi. – Luísa pareceu surpresa com a voz da filha. – Está tudo bem?

— Tudo bem? – sorriu e pigarreou, ignorando DC se sentando no sofá a encarando de um jeito que a fez desviar os olhos. – Claro que sim.

— Que bom, eu fiquei preocupada por um momento. – ela disse. – Liguei para dizer que passei seu número para seu primo, ele ficou animado ao saber que tinha voltado para a cidade!

— Você fala como se a gente tivesse morado aqui por anos! – Mônica resmungou. – Duvido muito que Francisco venha me ver. Eu não tenho tempo nos dias de semana, ele também não. Nos fins de semana ele provavelmente fica com a namorada, qual o nome dela mesmo?

— A Rosa. – Luísa respondeu. – Você estava fazendo algo de importante?

— Não, mãe, de jeito nenhum. – ela começou a mordiscar o dedão da mão.

— Não vou te prender por muito tempo, filha.

— Tudo bem. – não via problema nenhum e se virou de costas para não ter que ver Do Contra. – Papai está bem?

— Sim, filha. Eu também. – Mônica podia visualizar sua mãe remexendo nos papéis em sua mesa e conversando no telefone. – Vou desligar. Qualquer coisa, me ligue que em duas horas estou aí no seu apartamento.

— Até mais. – sua mãe desligou.

Encarou o telefone e virou com a maior sorriso forçado que já tinha dado em toda a sua vida.

— Minha mãe me ligou. – disse o óbvio.

— Eu percebi. – ele respondeu com um sorriso de canto.

Ficaram em silêncio, ele sentado no sofá e ela em pé por alguns segundos até que Mônica ouviu alguém bater na porta. Arregalou os olhos e sentiu seus músculos travarem. Do Contra, quando viu que ela não se mexeu, quase correu para a porta. Antes que ele pudesse abrir, tudo que Mônica conseguiu fazer foi levantar os braços.

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Magali estava sentada em uma cadeira ao lado do parque que ficava próximo a sua casa. Olhava para o celular triste pois Quim não tinha atendido nenhuma de suas ligações, apenas respondido algumas mensagens desde que chegara na Itália. Queria muito ir para o apartamento de Mônica, mas não queria incomodar mais a amiga.

Olhou para frente a tempo de ver Denise, diferente com seus cabelos soltos e roupas menos chamativas andando em direção ao condomínio. Aquela era uma cena tão incomum que até pensou em ir falar com ela, mas ao longe viu que Denise espiava de um lado para o outro e andava cada vez mais rápido. “Ela não quer ser seguida”, pensou enquanto observava-a sumir pelas casas.

Suspirou e se levantou, pronta para ir para sua casa. Pegou a bolsa que tinha levado para a “caminhada”, que tinha durado cinco minutos até chegar no parque, e começou a andar de novo. Seu cabelo estava solto e a brisa que batia nele a agradava muito. Quando passou na frente da casa de Cebola, viu com surpresa a porta aberta e várias vozes diferentes.

Arregalou os olhos pensando em Denise e entrou, tomando cuidado para não fazer barulho. Havia uma janela aberta e Magali sentou-se no chão para ficar abaixo dela.

— Não aguento mais ouvir sobre esse seu encontro. – reconheceu a voz de Toni. – Você nem ao menos pegou ela! Assim vai acabar perdendo nosso respeito.

Ouviu alguém rindo e outra pessoa concordando. De repente veio na sua cabeça que os meninos iam fazer uma “festa” só deles e sentiu um frio na barriga. “Estou espionando!” Virou seu corpo em direção a porta quando sentiu bater em algo. Quando olhou para seu lado, viu duas pernas grandes vestidas com short jeans branco.

Sentiu seu braço ser puxado e não reclamou enquanto estava sendo levada para fora.

— É feio espionar, Magali. – ele disse ainda a levando. – Imagina só o que eles iam dizer se te vissem.

— Ah, Cascão! – puxou o braço com força, envergonhada. – Foi um engano, pensei que a Denise tivesse entrado aí e...

— Denise? – ele cruzou os braços.

— É, eu vi ela passando por essa rua então achei que...

— Achou o que? – Ficou surpresa quando viu irritação em seu rosto. – Que ela estava na casa do Cebola?

— Sim, eu só queria checar se... – parou de falar e deu um sorriso sem graça.

Sentiu uma aura de pura raiva enquanto Cascão se aproximava.

— O que o Cebola faz ou deixa de fazer não é da sua conta. – saiu de perto dela e parou no portão. – Nem da sua amiguinha, por mais que ele esteja querendo comer ela.

— Mas eu não quis dizer isso! – bateu com o pé no chão um pouco chateada. – Você é um idiota!

Podia ouvir a risada dele entrando na casa enquanto voltava a andar pela rua, chutando algumas pedras. No passado era muito amiga de Cascão e Cebola, os dois a irritavam muito, mas eram bem próximos. Não conseguia se lembrar de quando foi que se separaram, ou de quando eles ficaram daquele jeito, mas não conseguia se livrar do velho pensamento de que Mônica não deveria sair mais com Cebola.

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— Filha, eu te amo. – era seu pai quem a visitava dessa vez.

Tinha menos raiva dele do que de sua mãe, é claro, mas Mônica ainda sentia muito rancor de qualquer pessoa que aparecesse ali para visitá-la.

— Me tira daqui, papai. – quando tentou se levantar, seu pai deu um passo falso para o lado. – Por favor, eu não aguento mais.

—Você sabe que eu te tiraria se eu pudesse. – ao olhar em seus olhos viu que ele estava sendo sincero. – Mas eu e você sabemos que você precisa passar por isso.

— Eu estou bem! – estava quase sem fôlego. – ESTOU BEM!

— Eu sei que está bem. – seu pai ignorou os conselhos de Ana Paula, sua médica, e correu para abraçar sua filha. – Mas eu tenho que ter certeza de que você vai ficar bem por um longo prazo.

— Eu quero ver ele, pai. – sentiu a aura de sua filha mudar e ela o abraçou de volta. – Traz ele aqui.

— Eu sei. – passou a mão pelos cabelos longos de Mônica. – Mas ele não fez questão de te ver, nunca nem apareceu na nossa casa depois daquilo no hospital. Eu sei que você o ama, mas isso na minha opinião não é comportamento de alguém que te ama de verdade.

— Não importa mais. – a voz dela estava muito séria. – Eu sei que ele me ama, vocês que estão o assustando!

— Isso não é verdade. – ele se afastou da filha e Mônica o encarou. – Você não entende ainda, mas um dia você vai entender.

— Entender o que? – perguntou confusa.

— Entender... – ele segurou a bochecha da filha com a mão. – Como é amar e ser amada de volta. E vai ver que esse sentimento vai ser bem diferente do que esse menino te faz sentir.