Ragnarok

Capítulo 4: O erro


***** Asgard *****

Na vida todos temos um segredo inconfessável, um arrependimento irreversível e um sonho inalcançável, e irritantemente para Odin todas essas variáveis estavam associadas a um único nome, seu maior erro, aquela criança, o pequeno jotun que ele deveria ter matado, mas que por piedade ele permitiu que vivesse.

E aquele erro lhe tirava o sono nos últimos anos.

O rei de Asgard nunca foi um homem do tipo misericordioso, seu passado sangrento era um lembrete disso, mas até mesmo um homem frio como ele já teve os seus momentos de fraqueza, e um destes em especial ainda o atormentava dia após dia e atendia pelo nome de Lothur.

Pensar naquele nome já o deixava irritado.

“Deveria tê-lo matado quando ainda era uma criança”, Odin pensava amargurado, se lembrando daquele fatídico dia há vinte e cinco anos atrás, o dia que deveria ter se livrado de vez de toda a linhagem de Laufey e seu maldito passado com os Magi, mas tinha aquelas crianças, aqueles meninos... Como ele poderia mata-los? Os garotos choravam na ocasião e deveriam ter poucos meses de vida, o lado frio de Odin gladiava com seu lado bondoso implorando para que ele acabasse com aqueles problemas, mas no final o rei se viu incapaz de fazê-lo, não poderia matar aquelas crianças e ao mesmo tempo não queria os deixar para trás para que pudessem se voltar contra ele algum dia. Foi então que ele teve uma ideia, sua mente sempre analítica vislumbrou um futuro de paz, uma aliança entre os reinos que tinha como centro aqueles garotos, poderia criar um deles para governar Jotunheim conforme suas vontades, seria simples e prático. Tomado por esse pensamento o rei pegou um dos garotos em seus braços e resolveu que cuidaria dele como seu filho, ele chamou o garoto de Loki. E naquele momento o outro menino deixou de ter importância para a sua consciência, já estava salvando um deles afinal, era o máximo que poderia fazer por aquela família e com frieza em sua voz ele pediu ao seu fiel soldado e escudeiro que se livrasse do outro menino.

“Mate o outro”. Foi tudo que ele disse.

Odin viu a hesitação nos olhos de seu companheiro e teve certeza de que ele não seria capaz de fazer aquilo, mas não se importou muito na ocasião, apenas foi embora de Jotunheim.

Heimdal, o guerreiro incumbido de tal missão não foi capaz de matar o garoto, jamais seria, ao invés disso resolveu abandonar Asgard e cuidar do menino como um filho, preferia a alcunha de traidor a ser o assassino de um bebê, e se Odin soubesse que isso lhe causaria tantos problemas no futuro jamais teria permitido tal afronta.

O rei queria esquecer aquele menino, mas para seu desespero ele não caiu no esquecimento ou anonimato como se era esperado, segundo seus informantes que acompanharam a seu mando boa parte da vida do menino, o maldito jotun decidiu seguir os mesmos rumos do pai na magia e se tornou conhecido em Jotunheim, mas ele ainda era um ninguém e muitas vezes o velho se viu tentado a terminar o que havia começado no passado, seria tão simples mata-lo, ele não era nada, Odin resistiu o máximo que pode ao desejo de mata-lo e quando finalmente decidiu terminar com aquilo percebeu que Lothur não estava mais sozinho, ele já não era mais um ninguém, havia se tornado um homem influente e se casado com uma mulher determinada e atualmente representante daquele povo maldito.

Ele já não estava mais ao alcance de suas mãos e aquilo o irritava profundamente, Lothur era uma ameaça a toda a paz que ele havia construído e principalmente para sua família, para o relacionamento de Odin com seu filho Loki.

Pensar no moreno fez o velho suspirar e sentir um aperto no peito, Loki podia não ser seu filho, mas verdade seja dita, Odin o amava desde sempre e aqueles planos sobre aliança entre os países ficaram enterrados no passado, tudo que ele queria no momento era ver o filho longe de tudo que envolvia Jotunheim. Para sua sorte Loki era um homem discreto, diferentemente do irmão Thor que aparecia com frequência na televisão ou em qualquer meio de comunicação.

Seria péssimo se alguém reconhecesse Loki e o ligasse ao povo do gelo, Odin temia a reação do filho se algo do tipo acontecesse, poderia ele se virar contra eles? Contra seu próprio lar, família e se juntar aquele homem? Aquela possibilidade assustava o velho rei, mas ele tinha confiança de que Loki não o faria, ele era ganancioso demais para isso, embora não fosse seu filho de longe era o mais parecido com ele no jeito ganancioso de ser, na forma de pensar e agir.

Apesar de acreditar que o filho não se voltaria contra Asgard ele ainda se lembrava do medo que o envolveu no passado quando alguns aliados que visitavam Asgard notaram a semelhança entre seu filho e o suposto mago jotun, incomodado o velho rei havia dado um jeito de convencer o filho a sair de Asgard, de ir para um local mais isolado, Muspelheim, longe de pessoas que o associassem a verdade que ele queria esconder do mundo.

Loki seria um bom rei, o sucessor ideal, mas jamais poderia assumir o trono enquanto sua cópia continuasse viva em Jotunheim, essa era a realidade. A verdade que Odin nunca poderia contar a ele e que estava afastando o moreno cada vez mais, Loki acreditava que Odin havia escolhido Thor como seu sucessor e o ódio que sentia do irmão o impedia de pensar em qualquer outra coisa além de sentir raiva do pai.

E aquela raiva já estava indo longe demais, Odin estava decidido a terminar com aquele problema, nem que para isso precisasse de uma guerra, os jotuns precisavam aprender uma lição, precisavam ficar quietos em seu lugar. Não haveria a tentativa de um acordo de paz, haveria apenas a guerra, eles já haviam passado da diplomacia a muito tempo, e se o velho não agisse logo sentia que perderia outros aliados. Odin não queria que mais ninguém se juntasse a causa dos jotuns, já havia perdido seu maior aliado de séculos, os vanirs, não correria o risco de perder o apoio de outros.

Se os vanirs e os jotuns procuravam a guerra com sua magia, eles a teriam, e o nome daquele jotun jamais seria uma ameaça novamente. Já estava tudo pronto, ele só precisava resolver um problema: o desejo de Loki de participar daquela guerra.

***** Asgard *****

Sigyn Chere se sentia extasiada, e quem a visse notaria o brilho de satisfação em seus olhos, aquela era a oportunidade que a jovem havia esperado desde que viera a Asgard, apesar da pouca idade ela era agora a conselheira do rei, mesmo que fosse temporariamente, aquela era uma oportunidade de ouro. Havia provado a sua competência a Frigga, e agora auxiliava o rei Odin da melhor maneira possível, não poupava esforços para isso.

De família humilde, a jovem Sigyn via pela primeira vez em anos sua vida trilhar caminhos mais receptíveis, não era nada do que ela havia planejado, mas era o melhor que poderia ter.

Cerca de três anos atrás ela havia se mudado com a família para Asgard, deixando para trás seu antigo lar em Vanaheim e as memorias de sua falecida mãe. Seu pai havia dito que era o melhor para os filhos, Sigyn havia concordado com isso, em Asgard ela poderia cursar medicina como sempre sonhou, ela e o irmão. Seria um sonho.

Com muito esforço os dois conseguiram entrar na renomada Faculdade de Medicina de Asgard, um sonho que infelizmente para a jovem Sigyn durou pouco, ela queria ter estudado e se formado, mas as tensões que surgiam e cercavam o mundo afora também atingiram a sua família como tantas outras.

O medo de uma guerra foi surgindo e se espalhando feito uma praga, os conflitos de outros reinos chegaram até Asgard com uma velocidade assombrosa e temendo perder o controle de tudo o rei Odin parecia se preparar desde o início para o pior, investindo cada vez mais o dinheiro de Asgard no ramo militar, em esforços de guerra, deixando de lado outras áreas e investimentos necessários, atingindo com isso os menos privilegiados como Sigyn e sua família.

A crise veio e com ela os problemas, sem condições de se manter na faculdade Sigyn se viu obrigada a deixar a medicina de lado, mas um dia pretendia voltar, ela era uma mulher determinada. Nesse meio tempo ela conheceu Lara, uma mulher de meia idade que trabalhava para a família Odinson, ela era a conselheira do rei. Lara havia se impressionado com a jovem que estudava com a sua filha e havia lhe oferecido um trabalho junto a família Odinson, inicialmente como ajudante de Frigga. Sigyn aceitou de bom grado, se esforçou nos últimos seis meses trabalhando lá e agora parecia colher os frutos deste esforço, quando Lara ficara doente meses atrás a jovem teve a oportunidade de substituí-la temporariamente em suas funções, o rei havia ficado impressionado com a astúcia da jovem, ela era uma jovem peculiar, segura de si, inteligente e audaciosa.

O sorriso no rosto de Sigyn era apenas a consequência de seus últimos feitos, ou talvez ele tivesse sido agravado um pouco por um certo moreno de olhos verdes.

Ela suspirou ao se lembrar dele.

Loki Odinson, um dos filhos do rei, e de longe o homem mais belo que já vira. Seu rosto era milimetricamente perfeito, seus cabelos negros pareciam sedosos e macios, sem contar aquele olhar penetrante que a fazia suspirar só de pensar.

Ao se lembrar do encontro de mais cedo ela soltou um risinho, se perguntava se ele era sempre daquele jeito. Pelo o que havia escutado falar dele, Loki era um homem frio e analítico, mas ele parecera tão quente, sobre o analítico ela ainda não sabia o que dizer. E sobre a vida pessoal dele ela sabia menos ainda, Loki estava afastado há muitos anos de Asgard e poucos sabiam a respeito de sua vida fora do mundo político, ele era um homem discreto, diferente dos irmãos.

Sigyn só sabia que ele vivia em Muspelheim e casado, ela pensou com amargura, mas fez sinal de negação com a cabeça quando reparou os rumos que seus pensamentos tomavam.

Loki Odinson era apenas o filho de superior e nada mais, o resto não passava de um sonho distante, mas sonhar era algo bom, principalmente se fosse com ele. Ela não sabia o porquê, mas não conseguia parar de pensar nele, talvez ela não fizesse ideia de que o provocasse também.

Aos suspiros ela abriu a porta de sua casa no vilarejo próximo a mansão Odinson e adentrou o lugar a passos rápidos, a casa estava silenciosa, mas todos os seus habitantes aparentemente estavam lá.

Seu avô estava sentado no sofá observando a janela com uma expressão pensativa, enquanto seu pai caminhava de um lado para o outro no corredor que levava para a cozinha. A expressão dele não era diferente e Sigyn imaginou que as coisas não haviam mudado muito por ali. Inevitavelmente ela correu os olhos pela mesa de centro e encontrou lá, da mesma forma que antes, o responsável pelo clima de melancolia que havia se instalado naquela casa nos últimos dias: uma carta, a carta de convocação militar destinada a seu irmão.

— Sig? – ela escutou o pai chamando e automaticamente voltou sua atenção a ele.

Ragnar recebeu a filha com um abraço, como sempre fazia.

— Que bom que voltou minha filha, pensei que fosse ficar na casa daquele ditador para sempre.

— Não seja exagerado pai. – ela se afastou levemente dele – Foram apenas dois dias.

— Os piores dos últimos tempos. – Ragnar retrucou com um olhar melancólico.

Sigyn o observou com ternura.

— As coisas estão cada vez piores, não sei para onde aquele louco do rei quer nos levar, mas as coisas estão cada vez piores. – Ragnar protestou irritado - O maldito mandou convocar mais jovens na cidade, para ingresso em treinamento militar imediato, e depois ainda diz que não estamos em guerra – se indignou – E você não sabe o pior.

— O que aconteceu? – ela se afligiu.

Ragnar passou as mãos pelos cabelos.

— Ele partirá com seu regimento nos próximos dias...

Sigyn engoliu em seco ao ouvir aquelas palavras. Sabia bem o que aquilo significava.

— Mais rápido do que eu esperava. – ela sussurrou.

— Do que todos nós esperávamos. – o pai respondeu cansado.

— E Sieg onde ele está?

— Lá em cima, deve ter vestido aquela coisa. – Ragnar respondeu amargurado.

— Pai... Não fique assim...

— Como não ficar assim, Sig? Meu filho está indo para a morte, o que pode piorar?

— Sieg não vai morrer, essa guerra irá acabar logo pai, você vai...

— Só os mortos conhecem o fim da guerra. – o avô dela se manifestou, a interrompendo – Somente eles...

***** Asgard *****

Quando os ricos fazem a guerra, são sempre os pobres que morrem. Sempre.

Quando criança ele havia escutado aquela frase ser gritada em meio a uma multidão, na época não havia dado importância a ela, se quer havia entendido o seu significado, mas naquela tarde ela representava a sua realidade, e era refletida no azul escuro de seu traje, no manto de mau agouro que o envolvia como um espectro da morte.

Tenso, o homem estava parado a pelo menos 20 minutos em frente ao espelho de seu quarto, se analisando, tentando se imaginar usando aquela roupa todos os dias ou talvez apenas assimilando o fato de que estivesse usando aquele uniforme.

Incomodado ele passou as mãos pelo tecido que se estendia por seu braço, analisando os detalhes em preto a amarelo que se destacavam em meio ao azul. As cores de Asgard. Foi tateando o tecido com as mãos até encontrar abaixo do ombro um nome bordado em um pedaço de couro.

— Siegfried Chere. - ele leu o nome em voz alta – Soldado Chere....

Ler seu próprio nome esculpido naquele uniforme militar fez o estomago dele embrulhar, ele não estava pronto para aquilo, e sua mente diria que ele nunca estaria, mas quem em sã consciência diria que estava preparado para entrar em uma guerra?

“Você acha que está pronto até dar o seu primeiro tiro, aí as coisas mudam completamente”, ele podia escutar perfeitamente seu avô dizer aquelas palavras em sua cabeça e aquilo só o deixava mais desesperançoso em relação ao futuro.

Se é que ele teria um futuro.

— Sonhando acordado?

Ele se virou para trás ao reconhecer a voz da irmã, Sigyn estava parada ao lado da porta com seu sorriso encantador.

— Como estou? – ele perguntou ajeitando a manga da roupa.

A mulher analisou o homem magro e loiro a sua frente.

— Parece um soldado.

Siegfried riu.

— Eu só que eu queria parecer um médico.

— E você será. – fez uma pausa - Na hora certa.

Ele ficou a analisando, Sigyn sabia que havia de algo de errado com ele.

— Não precisa ter medo. – ela arriscou. – Vai dar tudo certo.

— Não estou com medo, eu só.. Eu não sei nem usar uma arma direito...

— Talvez você não precise dela. – ela sorriu, se aproximando dele – Vai ficar tudo bem, você vai ver.

— Eu sempre quis salvar vidas, não tirá-las...

— Você não vai tirar a vida de ninguém e não irão tirar a sua. – ela a abraçou com força e ansiou que estivesse certa.