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ERA O FIM DE MAIS uma tarde, o crepúsculo se aproximava e as nuvens pesadas que antes atribuíssem um aspecto sombrio ao céu se dissolviam, atravessadas por finos, tímidos, raios de luz. Contudo, a brisa fria era um aviso que depois a chuva voltaria a atacar violentamente da Ilha de Manhattan. Em algum lugar do vasto apartamento, silencioso e bem decorado, uma garotinha se ocupava com lápis, pincéis e um fino livro de colorir inspirado nas aventuras de Harry Potter. O pincel negro girou brevemente entre os dedos gordinhos antes de voltar ao trabalho, trilhando o longo corpo do monstro que habitava a Câmara Secreta de Salazar Slytherin. O som da caneta de base metálica indo a encontro com superfície de madeira atraiu minha atenção — era bastante sútil. Poderia até passar despercebido, se não tivesse sido realizado várias vezes seguidas na última hora. Levantei os olhos, lentamente, e observei o homem reler a carta mais uma vez. O papel cor creme estava amassado e tremia nos dedos longos.

Causa perdida. — Um sussurro desacreditado alcançou meus ouvidos e duas simples palavras já soavam familiar ao serem repetida, talvez, pela vigésima vez. O disco ralou. O papel em mãos pôde reconhecer como a carta que nos foi entregue no início daquela manhã particularmente chuvosa de primavera. Era uma recusa e possivelmente o primeiro não que meu pai ouvira em sua vida. O autor era Stephen Strange, um nome cada vez mais popular de ser visto em revistas e telejornais. Um rosto bonito, complementado por um par de graciosas safiras. Um jovem médico que recusou meu caso.

Plus intelligent que les autres.

Quando a assistente do homem entregou-me o envelope lacrado, lentamente e de forma que sua hesitação estava bastante evidente por suas feições adornadas por gotas de água, eu sabia o que estava escrito ali. Ela estava molhada, assim como a jovem que a acompanhava. Meu primeiro impulso foi afastar a cadeira de rodas, dando espaço para que ambas entrassem em meu lar. Enquanto minha mãe lia a carta, já se desfazendo em um mar de lágrimas, descobri que moça que estava ao lado da assistente era Christine Palmer —uma enfermeira recém-contratada. Era uma garota gentil, cujas bochechas poderiam facilmente assumir tons de vermelho. Nunca vi alguém gaguejar tanto ao explicar algo. Mas, a meu ver, Palmer estava divida entre a lógica científica, o bom senso e a tentativa fracassada de humanizar seu colega de trabalho diante os olhos protetores de dois pais protetores.

As chances são pequenas. Inexistentes. Palmer disse cautelosa, tentando não enfurecer ainda mais meus pais e nem me magoar, mas eu estava ocupada admirando os pequenos círculos pálidos em tons de azul que giravam ao redor de sua cabeça cheia de finos cabelos castanhos. Ela era boa. Um espírito inocente. Qualquer erro poderia piorar ainda mais sua situação. Ela disse, por fim, olhando-me nos olhos.

No fim, Christine Palmer fora tão cativante com suas palavras que até me esqueci de ficar zangada com Stephen Strange —mesmo sem o conhecer preciso admitir: ele era esperto e eu era um caso perdido e estava, estranhamente, bem daquela maneira. Mas meus progenitores não viam aquilo, infelizmente. No fim, minha mãe secou suas lágrimas, me pediu para cuidar de Brandon — por motivos evidentes — e saiu. Ela não me precisava dizer aonde iria, um pequeno olhar no calendário poderia confirmar que ela fora para o chá semanal com minha avó, Magdalena.

Limpei a garganta, fechando o livro de colorir. — Sabe, mamãe pode chegar a qualquer momento e acho que ela não vai gostar de vê-lo remoendo essa carta.

Minha voz, ainda afetada pelo maligno resfriado, o tirou do estado de transe que ele entrara. A caneta e a carta foram esquecidas quando sua atenção voltou-se para mim. E, bem lentamente, um par de duas lindas esmeraldas saíram do casulo escuro de seu palácio mental. Tínhamos olhos idênticos.

Vert.

Verde.

— Ela não precisa saber. — Ele tinha uma voz naturalmente rouca, rica e com um pesado sotaque de Doreo.

— Inútil. — Encolhi os ombros, quase inocentemente. — Ela sempre sabe das coisas, é um dos dons dela. As mães sempre descobrem nossos segredos.

— Minha pequena, tenho certeza que ela apenas descobrirá se alguém abrir a boquinha. — Era uma indireta disfarçada de ênfase que me fez rir altamente e quando meu pai copiou meu exemplo, permitindo que um mínimo sorriso espalhasse pelo rosto elegantemente bem esculpido, me inclinei sobre a mesa retangular para admirar a visão.

Nos últimos meses, os sorrisos do outrora alegre Vicent Adan Vert diminuiriam drasticamente e vê-lo assim, enfim livre do peso do mundo em seus ombros, era algo grandioso.

— Mas Brandon nem fala, duvido que mamãe consiga interpretar a língua de bebê dele. — Lancei lhe uma piscadela e abri novamente o pequeno livro, voltando a pintar o basilisco. — E, como eu disse: Mães sempre descobrem nossos segredos. Acho que eu não precisaria perder tempo nem saliva para dizer algo que está na cara.

Com um lápis azul em mãos, apontei para sua figura. E eu sou o caso perdido, eles dizem.

— Perdão?

— Qual foi à última vez que o senhor lavou o cabelo ou até mesmo pensou em passar um pente nele? Até parece que foi atropelado por uma manada de rinocerontes. — E não tão discretamente, virando-se de costas para mim, ele ajeitou seus cabelos claros, diferentes dos meus.

— Acho que você anda passando muito tempo com Erik. — Ele comentou casualmente. O cabelo já foi agora falta à barba estilo Chewbacca. Um passo de cada vez.

Novamente dei de ombros, trocando o lápis azul por um amarelo. — O que é totalmente natural, afinal: ele é meu irmão.

— Tio. — Papai corrigiu. Erik fora adotado por meu avô, Abraxas, após o assassinato de seu pai. Sua mãe faleceu por complicações no parto, minha avó certa vez comentou em tom sereno. Éramos apesar a diferença enorme de idade, próximos. Unha e carne. Ele era meu melhor amigo. E, talvez, o único.

— Adoção é um assunto complicado que eu não entendo. Mas voltando ao assunto original: Ela vai saber que você passou o dia lendo essa carta.

Caindo no assento da cadeira, ele foi rápido em tentar se defender. Como uma cobra antes de dar o bote.—Eu não passei o dia com a carta.

—Mesmo? Então o senhor sabe que já quase hora do jantar, não é? E que hoje é seu dia de preparar e estou com fome. Muita fome. — Disse em tom dramático, abaixando o livro que ergui para admirar a coloração e pude ver seus ombros caírem em derrota ao conferir seu relógio marrom.

— Não pareceu ter passado tanto tempo.

— Quando você se volta a fazer algo tóxico para sua saúde mental, o tempo voa e nem percebemos isso.

— Onde você aprende essas coisas, Reën? — Ele questionou, finalmente saindo do casulo e guardando a carta no bolso de seu moletom cinza. Eu queria ter poderes, como Superman, para queimar aquele papelzinho com os olhos.

— Vovô Abraxas. — Expliquei suavemente, como se fosse à coisa mais óbvia do mundo, o que era. — Ele diz que ter uma mente aberta e percepção alta ajuda.

— Assim como a lógica científica.

Lá vamos nós.

— Eu tenho cinco anos, papai. Não gosto de ciência.

Ele riu, caminhando até a cozinha, que ainda ficava em meu campo de visão.

— Reën Magdalena Vert, cinco anos e filósofo nas horas vagas.

— Você não disseca sapos em filosofia. Você questiona o motivo deles existirem. Dissecar sapos é nojento. E cruel.

— É assim que a vida funciona, pequena.

— Vou me lembrar disso. — Guardei minha bagunça em uma pasta vermelha que se assemelhava a uma maleta executiva e segui para a cozinha, lançando um olhar cauteloso a Bran, que dormia no sofá maior, cercado por almofadas que impediriam uma queda. Dedos pequenos rodando e guiando uma cadeira especial.

— Você gosta de sapos porque acha que eles vão se tornar príncipes. — Ele apontou novamente em tom casual. Leve como uma pluma.

— Luke Charles é meu príncipe, papai. — Minha resposta veio rápida. Minha voz estava doce, sonhadora e distante. Era uma resposta involuntária, automática. Um sussurro distante que não alcançou os ouvidos de meu pai, felizmente. Mas apesar de ter proferido tais palavras, eu não conhecia ninguém com aquele nome. Nem meus amigos imaginários possuíam sobrenomes. Quem era Luke Charles, afinal? Limpei a garganta, prosseguindo. — Irei me lembrar disso quando um sapo gigantesco estiver dissecando o senhor como uma uva passa, então direi: "É assim que a vida funciona, papai.”.

— Quando foi que você se tornou uma criança vingativa?

Sempre fui um ser vingativo, signore Vert.— Forcei meu italiano a sair de sua casinha e sorri amistosa para papai. — Sou filha de Belladona Calore. Genética é a chave para a questão. Quero dizer, certamente mamãe ficaria zangada se chegasse e o visse sentado ali, como um infeliz lendo a carta de Strange.

— Zangada ao ponto do assassinato?

O encarei, erguendo ambas as sobrancelhas, quase incerta em concordar ou não. — Talvez? Acho que assassinato é um tanto radical, até mesmo para mamãe.

Ele lançou um olhar quase divertido por cima do ombro e suas mãos trabalhavam avidamente em amassar algo.

— Hematomas, então?

— Na melhor das opções, eu acredito. — Desviei o olhar, sentindo meus ombros tremerem com a forte onda de gargalhada que tomava conta de meu ser. E não sei como, mas rindo de uma possível agressão que minha mãe cometeria, Vicent Vert e eu caímos em risadas histéricas, como as hienas de Rei Leão.

— Eu senti falta disso. De você. De nós.

Você se afastou papai. Senti vontade dizer, mas não havia necessidade de jogar sal na ferida ainda aberta. Sorri, com doçura. — Eu sei, eu também senti sua falta.

Fez-se um silêncio confortável na cozinha. Brandon dormia, esticado e agarrado a seu ursinho de pelúcia. Era um bebê adorável, bem ativo e barulhento. O sol já procurava repouso entre os prédios maiores e as nuvens já estavam tão claras e finas como pedaços de algodão. Pacífico.

— O senhor deveria parar. — O comentário era tão inocente que escapuliu de meus lábios ainda mais inocentemente. Opa.

— De fazer o jantar? — O riso que ele deu serviu apenas para derreter meu coração. Aquele era meu pai, não o robô que se sentou conosco nos últimos nove meses.

— Não, por favor, isso não. — Estou com fome. - Estou faminta. — Pare de carregar o mundo em seus ombros, você é Vicent, não Atlas. Deixe essa responsabilidade para outra pessoa, tudo o que preciso é que você volte a ser você. O acidente não é sua culpa, e você sabe disso.

La petite fille stupide a crié. Pas toi papa.

O maxilar travou e seus dedos, que antes terminavam de amassar a carne e a temperar, pararam.

— Você está presa em uma cadeira de rodas por minha culpa. — Ele sussurrou e o correu para o casulo. Ótimo. Por favor, não me deixe.

— Pai, fui eu que gritei. Eu achei ter visto algo na estrada, eu assustei o senhor. Eu, Reën Vert.

— Eu poderia ter --

Cortei seu argumento, ele tinha o hábito de repetir o disco quando não tinha como se defender. — Freado o carro? E não foi o que senhor fez? E olha só: o carro capotou como uma bolinha. Não tinha nada que pudesse ser feito antes, porém agora há: podemos seguir em frente.

— Vou deixar você de castigo. — Friamente, ele virou suas costas para mim e voltou a preparar o jantar, deixando-me incrédula.

— Por eu estar falando a verdade que vocês não aceitam?

— Foi debochada.

— Vai me deixar de castigo porque sou uma pessoa sincera e debochada? Très bien

— Se está sendo debochada, há algo de errado, no caso: meu ponto de vista.

Suspirei. Como alguém poderia ser tão cabeça oca?— Seu ponto de vista não é errado. É um disco, e está ralado. O senhor fala, fala, fala, mas tudo o que escuto é: "a culpa é minha, eu sou um thrkah, a culpa é minha, sou um thrkah". Disco ralado.

— Eu não sou um idiota, Reën! Onde está seu respeito? — Foi até engraçado vê-lo chocado com a comparação rude de origem doreliana.

— Ele foi passear com sua opinião, a que não é repetida. Encontro romântico, eu acho. Ele disse algo sobre voltar. Talvez quando você tirar essa bobagem da cabeça e adotar um bom senso.

— Garotinha impertinente. — Seu murmúrio de frustração dançou no ar até me alcançar. Papai depositou toda a carne em uma bandeja e levou até o forno.

Sou sua filha.

Vovô Abraxas era bem insolente quando mais jovem o que lhe causou alguns problemas com a família biológica de Erik. Vovó Maggie sempre diz que o senhor é um reflexo de vovô Abbie e mamãe diz que sou muito parecida com o senhor, especialmente nas ações. Ou seja: Impertinência é uma característica que herdei exclusivamente do lado Vert.

Ele suspirou, como se a conversa estivesse o cansando. — Você fala demais.

— Eu defendo minha opinião, é diferente. — Um suspiro cansado fugiu de meus lábios, minhas mãos se fincaram nas rodas da cadeira e as girei, a cadeira seguiu alguns passos para frente, para mais perto de papai. —Naquela noite, poderíamos ter morrido, mas os deuses foram bondosos e aqui estamos: respirando e seguros, resmungões como duas mulas teimosas por um assunto que já acabou. Eu estou bem e nada que aconteceu foi sua culpa.

— Essa não era a vida que eu queria para minha herdeira, minha primogênita. Eu seria o pior dos pais por não tentar.

— E suas tentativas apenas mostram o bom tipo de pai que o senhor é. Merci. Mas é hora de parar, você está obcecado com uma ideia que, no fundo, sabe que não levará a lugar algum. — Talvez aquilo fosse um tanto áspero e meu plano inicial era pegar leve, mas aquele era um assunto delicado. — Uma cadeira de rodas não muda quem eu sou e o que eu estou destinada a ser. Estou bem, mas você não...

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OS OPOSTOS, DE FATO, SE ATRAEM.

Vicent Vert e sua bela esposa, Belladona Calore, eram os exemplos vivos de tal. Havia uma serie de diferenças que eu poderia listar aqui para você, a pessoa que está lendo pacientemente esse relato. Mas creio que ficaríamos meses aqui, até mesmo anos. Então para resumir, pois estou realmente cansada e quero dormir, posso dizer que o conflito que ameaçava destruir o casamento bem sucedido de meus pais acabou algumas noites depois. Bem rápido, graças aos deuses. Eles sentaram e conversaram sobre seus problemas como dois adultos. E no fim, estava acabado. Não pareciam mais duas maquinas programada para viver no mesmo teto em prol de duas crianças. Eles voltaram a ser quase o que eram antes. Quase. Por sorte, as demonstrações de afeto eram guardadas entre ambos. Para tudo voltar a sua forma anterior, eles precisavam primeiro quebrar o muro que fora construído algum tempo após o acidente de Janeiro.

Eles faziam terapia de casal. A ideia parecia absurda no início, porque papai odiava psicólogos. (E eu também. Era terapia de casal e Jonathan Wayne trabalhando para compreender meu comportamento.) Mas com o tempo ele se aqueceu a ideia e foi na onda de minha mãe. Nas noites que eles usaram para conversar, finalmente eles entenderam o qual bem eu estava com toda aquela situação. Quero dizer, o mundo poderia está se acabando, mas eu sempre teria um argumento e estaria bem relaxada.

Se minha família estivesse bem, segura e ao meu lado, tudo ficaria, eventualmente, bem.

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