Radiação Arcana: Totem De Arquivo

Capítulo 34: O Anjo da Guarda


Os gritos de dor de Limcon quebraram o ritmo das ruas silenciosas do subúrbio empobrecido. Os bandidos pareciam ter pena de nós, e talvez por isso não nos assaltaram. Eles se escondiam nas ruas tortuosas que cortavam o nosso caminho que serpenteava entre as casas de madeira coladas umas as outras, para economizar espaço. Ratos passavam correndo de um buraco a outro, assim como assassinos passavam quase despercebidos pelas nossas costas.

− Não estou gostando desse lugar, Fear − Supreme reclamou.

− Não se preocupe, eles sabem que eu sou um assassino também, não vão me incomodar, nem quem estiver comigo. É como um respeito mútuo entre ladrões, assassinos, bandidos, coisas desse gênero. Por mais que aqui todos eles tenham um símbolo no peito, como aquele ali atrás da gente − Fear disse sem nunca ter olhado para trás.

O bárbaro olhou e o homem se escondeu.

− Como você viu? − ele perguntou surpreso.

− Eu presto mais atenção as coisas do que você. E você não pode olhar diretamente para eles. Aliás, o símbolo está por dentro da capa dele, mas eu pude ver quando ele se descuidou.

− Não dá pra esconder nada de ti, não é? − falei em tom de elogio.

− Tive um duro treinamento para conseguir fazer essas coisas − Fear disse em tom de desculpas. − Está lá!

Olhei para onde o pequeno apontava e vi uma construção levemente mais arrumada que as outras. Muito barulho saia dela, mas as pessoas somente entravam. Uma garrafa quebrou uma janela trincada, espalhando vidro pela rua. Aos poucos um coro começou a se formando, gritando:

− Briga! Briga! Briga! Briga!

Por mais que todos fossem de continentes diferentes, o jogo nos fazia entender a língua deles. Olhei para Limcon, verificando se podíamos entrar ali, mas só encontrei motivos para nos apressar. Os olhos do garoto estavam brancos e a espuma em sua boca estava misturada com um pouco de sangue, os lábios roxos tremiam junto com os dentes, as mãos tateavam o ar por causa das alucinações, o ombro parecia ter começado a necrosar. Olhei para Skarlatte, que estava pensando a mesma coisa que eu, com certeza.

− Vamos entrar logo, não temos muito tempo − ela disse.

Todos nos apressamos para dentro da taverna. O ar quente e mal cheiroso me fez querer fugir de lá, mas tinha de continuar. Olhei ao redor e ninguém parecia ter nos percebido. Vi piratas, ladrões, assassinos, pilantras, todos gargalhando em um círculo, onde possivelmente alguém brigava. Espiei para entender o que era e vi duas pessoas. Um era um homem forte, alto, moreno e mal vestido, com trapos sujos e velhos. Ele tinha uma adaga na mão e a jogava de uma palma a outra. Ele ria e tentava estocar sua inimiga, mas sempre era bloqueado. E sim, era uma inimiga.

Com o lindo cabelo castanho, pele morena, olhos pálidos e uma armadura de aço cravejada de cristais, a garota lutava incrivelmente bem. Ela arrancou a adaga da mão do adversário com sua espada curta facilmente e depois cortou a mão do inimigo fora.

− Saia daqui, cretino miserável! − a morena gritou.

O homem saiu correndo da roda, gritando de dor e segurando o local onde sua mão estivera. Todos os bandidos desfizeram a roda, com medo da guerreira. Para aumentar a glória da vitória, ela abriu um magnífico par de asas brancas, que reluziam mesmo com a pouca luz do ambiente imundo. Antes de dizer suas palavras de vencedora, ergueu o braço, com a cruz de ouro que era sua espada, um símbolo dos lutadores religiosos.

− A partir de hoje, nenhum de vocês vai tentar me impedir de beber nesse maldito bar, ouviram? − o anjo intimidou.

Todos assentiram, inclusive eu. Ela podia ser muito intimidante, mas eu sabia que era a pessoa que procurávamos. Sendo uma paladina, devia ter poderes de cura e conseguiria ajudar o Limcon. Porém, não tive tempo para chamar a atenção dela, pois o anjo passou batendo no meu ombro, e eu pude jurar de que ela me olhou nos olhos rapidamente. Pude ver de relance quando a pequena paladina passou cheia de fúria pela porta, batendo ela com força e levantando pó. Todos voltaram as suas atividades, jogando cartas, bebendo, cantando e xingando um ao outro e suas mães.

− Skarlatte, talvez ela possa nos ajudar. Ela é uma paladina ou uma clériga, luta por algum deus, deve ter algum poder de cura, algo que vá nos ajudar − falei.

− Concordo com meu irmão, vamos rápido antes que eu não possa mais rastrear ela.

Corremos para fora do bar e Limcon deu um gemido de dor. Skarlatte parecia a ponto de explodir de preocupação. O sangue cobria o braço de Limcon, que estava tomando mais uma poção, dada por Supreme.

− Ela foi por ali − Fear disse, disparando na nossa frente. Eu e Skarlatte seguimos ele logo atrás enquanto Supreme, furiosamente, tinha que andar com o atirador nos ombros. Depois de alguns segundos de corrida, chegamos a uma encruzilhada.

− Para onde? − perguntei.

− Para… − Fear olhou ao redor, prestou atenção no chão e nos empurrou − Cuidado.

Com reflexos incríveis, meu irmão cruzou as machadinhas acima da cabeça, bloqueando o golpe de espada. O anjo pousou suavemente no chão, continuando o combo, que foi totalmente bloqueado com movimentos rápidos e calculados, até mesmo as estocadas desleais e poderosas.

− O que… vocês querem… comigo? − a habilidosa lutadora disse entre os golpes.

− Precisamos que você… cure nosso… amigo − Fear disse, quase sendo acertado na perna.

A garota bateu com o punho da espada contra a arma da mão esquerda do ladino, fazendo ele soltar com um grunhido e perdendo a vantagem de combate.

− Já percebi… que vocês… são estrangeiros − a garota pulou para trás, desviando de um chute do pequeno soldado, que era pouco menor que ela. − Estão fazendo o que aqui?

O assassino recolheu a sua arma rapidamente e observou friamente a única chance de salvar nosso soldado envenenado, aquela linda e feroz garota. Ele pareceu ter ponderado bastante antes de responder:

− Estamos em busca do Totem de Arquivo. Conhece ele e pode nos ajudar com nosso amigo?

A garota angelical mexeu as asas surpresa, colocou a mão no queixo e pareceu pensar um pouco. Finalmente guardou a espada e disse:

− Conheço, qualquer um conhece. Mas quanto a curar seu amigo… Eu não sou uma paladina devotada a um deus de cura, sigo o grande deus da sabedoria, Mudrost.

− Então você é inútil para nós, até logo − Fear se virou e começou a caminhar em direção ao centro de bagunça que era aquele bar.

− Calma aí, pequeno − a morena disse.

− Não me chame assim, garota − meu irmão apontou a arma para o anjo.

− Ok, desculpe… Bem, se vocês fizerem três coisas, eu talvez possa curar ele… Sabe, vai que minha deusa me dê a sabedoria que eu tanto peço e eu descubra como o curar.

− Cretina! − o ladino sombrio fechou o punho com força em volta da letal arma de obsidiana − O que precisamos fazer?

− Primeiro, terão que me ganhar em um jogo de tiro ao alvo − ela deu uma risada curta e maligna − Pegue quatro facas e demonstre que é melhor que eu, não importa como, só demonstre. Quem irá competir comigo?

Todos sabíamos quem iria fazer isso, então eu e Skarlatte nem nos movemos.

− Comece você, paladina − Fear desafiou.

− Está bem… Vou atirar… − ela olhou ao redor, procurando um alvo − Vou atirar naquele espaço entre as duas tábuas.

Olhei para onde ela apontava e achei uma casa feita de madeira, na direita da rua, a vinte metros de distância. No canto da casa apodrecida havia um pequeno vão, onde uma faca podia cravar, mas não passar. Com um rápido movimento, a garota conseguiu acertar bem no vão. A segunda faca acertou um pouco mais abaixo, mas ainda no alvo. A terceira bateu no lado esquerdo da casa, caindo no espaço vago entre uma construção e outra. A quarta faca bateu entre as duas primeiras, mas cravou de forma superficial, caindo em seguida.

− Bem, faça melhor que isso, meu jovem − ela gargalhou em desafio.

− Fácil. Está vendo aquele rato? − Fear apontou para um que estava correndo pela rua, cheirando o ar.

Antes que o rato saísse do campo de visão, mesmo sem esperar resposta, o garoto atirou uma faca. Eu não vi ele pegar a faca nunca, mas ela estava lá na mão de em um segundo, e no outro o rabo do roedor estava preso no chão de terra por uma lâmina afiadíssima.

− E o que vai fazer agora, ladino? − a paladina perguntou.

Novamente uma faca voou pelos ares, mas não em direção ao rato. Na verdade, para o lado contrário. Fear atirou sem olhar para trás e acertou dentro de um elo da corrente de Supreme, que quase deixou Limcon cair.

− Meu deus! − o bárbaro gritou − Que merda é essa?

− Não se mexa, grandão − o atirador de facas pediu.

Intimidado pela habilidade e a calma do meu irmão, Supreme paralisou. O espião fez duas facas surgirem misteriosamente, uma em cada mão. De olhos fechados, moveu os braços rapidamente, fazendo dois longos arcos. Quando suas mãos pararam, pude notar que as facas haviam sumido. Primeiro olhei para a direita, em direção ao rato. O projétil tinha acertado no cabo da primeira faca lançada. Olhei para esquerda e a faca que quase acertou Supreme também tinha sido acertada bem no meio.

− Mas… Isso não... não é possível − a morena angelical disse, alisando os cabelos lisos e castanhos.

Pude perceber que as pontas eram avermelhadas e fiquei curioso para saber como isso podia acontecer. Talvez ela tivesse pintado, talvez fosse assim mesmo.

− Garota, você é desse mundo ou é jogadora? − perguntei.

− Sou jogadora. Por quê? Algum problema? − ela respondeu rispidamente.

− Só pra saber − disse irritado com o tom de voz dela.

− E vocês? − ela questionou.

− Também somos − Supreme disse devolvendo as facas para Fear.

− Bem, vamos para a segunda parte do nosso campeonato. Duvido que vão conseguir essa, eu sou muito boa nisso. Um de vocês terá de me pegar. Eu sairei correndo e, cinco segundos depois, um de vocês tem que conseguir me capturar e trazer aqui de novo. Escolham quem fará isso e me avisem.

Supreme deu um passo a frente, me entrando o corpo mole e frio de Limcon. Chequei a pulsação, que continuava no mesmo ritmo lento. O cabelo negro parecia ter perdido a vida, me deixando tão preocupado quanto a namorada dele.

− Eu irei fazer isso. Corra!

Sem esperar mais nada, o anjo saiu correndo pela rua principal. O bárbaro contou até cinco, se preparou para correr e, repentinamente, estava com a paladina nos braços.

− O que acharam?

− Vocês… Isso não é possível, ninguém pode ser tão rápido, muito menos se for tão forte quanto ele − a pilantra disse surpresa.

− Parece que só falta mais um desafio. Diga o que é e vamos acabar logo com isso − falei.

− Esse vocês não ganham de forma alguma. Sou especialista nisso, nunca perdi uma luta. Um de vocês terá de me ganhar em uma luta. O critério de derrota será ou desistência ou perder muita vida. Como todos somos jogadores, sabemos quanta vida ainda nos resta.

− Bem, no nosso caso não. Talvez nesse continente vocês ainda possam ver a vida e a mana, mas de onde viemos não é assim.

− Aqui também não, por isso todos os jogadores tem esse colar − ela disse tirando de entre os seios uma corrente dourada com uma esfera verde − Essa esfera mostra quanto de vida temos. O dano recebido é a parte vermelha. Pegue essa minha corrente reserva e se prepare.

Peguei a corrente e coloquei no pescoço. Olhei para a garota e sorri, dando um passo a frente. Estralei meus dedos, devolvi Limcon para Supreme e disse:

− Vamos lutar, gatinha!