Radiação Arcana: Totem De Arquivo

Capítulo 29: Espelho de Sal


O barulho da fogueira era reconfortante, ainda mais com o fogo vermelho sangue criado pelo dragão. Às vezes nuvens de fumaça eram expelidas de suas narinas, como se ele fosse um vulcão voador escamado. Ele nos olhava atenciosamente com os olhos vermelhos. Para ele não seria difícil nos incinerar com um leve sopro. Talvez nossos mestres conseguissem escapar, mas ainda assim não ganhariam do monstro gigantesco. Não tínhamos porque desconfiar dele, pois ele poderia fazer qualquer coisa com a gente e nós não teríamos nem chance de se defender.

− Como é o seu nome, senhor dragão? − Fear perguntou já consciente.

− Os seres do mundo me chamaram de diversas coisas, mas meu nome verdadeiro é Savra Thermótita.

− Existem outros dragões no mundo? − Supreme questionou.

− Sim e não. Normalmente, eles existiriam, mas todos estão amaldiçoados pelos deuses, presos em lugares que servem como ovos de dragões. Por exemplo, eu estava preso em uma montanha de obsidiana, a única pedra que eu não consigo derreter. Parentes meus e outros dragões estão presos em diversos lugares. Mas todos os lugares estão protegidos por guardiões e somente derrotando o guardião é possível libertar o dragão. Este ser que guarda a montanha é como a “vida” dela, sendo destruído, a prisão também é.

− Interessante, do jeito que você conta os deuses parecem cruéis em aprisionar os monstros alados que destruíam civilizações por puro prazer e se julgavam superiores a todos − Water falou encarando a fera.

− E os deuses não são cruéis, Water? Controlando a vida dos heróis, protegidos pela imortalidade imposta pelo jogo!

− Como você sabe do jogo? − perguntei.

− Dragões sabem de quase tudo, viveram muito tempo e aprenderam muitas coisas. Nós fomos os primeiros seres criados pelos deuses, prontos para enfrentar os heróis. Mas éramos fortes demais e tínhamos feito muita coisa no planeta, então nos deletar era impossível, pois arruinaria toda a história desse universo programado. Foi melhor aprisionar todos os monstros.

− E como você se sente sabendo que não existe de verdade? − Fear perguntou.

− Como assim não existo de verdade? Estou aqui, posso interagir com vocês, posso viver, tenho uma história, objetivos, desejos, dores, sentimentos. Eu existo, mas em um universo diferente de vocês. Eu fui programado para ter essas características, mas vocês escolheram como seriam antes de nascer? O que me torna diferente de vocês para eu não estar vivo?

Pensei naquilo filosoficamente. Realmente nós não éramos diferentes, mas ele vivia em um computador. Porém ele ainda vivia. Não importa ao que está dependente, se é de uma tomada ou a existência do meu universo, ambos são vida. A minha vida vale tanto quanto a dele, ambos tomamos decisões.

− Você está certo, ambos somos vidas. Você não merecia ser preso, também tem o direito de viver − concluí.

− Isso não é verdade! Ele é um programa, não existe. Se desligarem o computador, ele desaparecerá. Não tem sentimentos e não tem decisões, só acha que tem! − End gritou irritado.

− Mas você é isso também, End. Não fale dele como se fosse diferente − Skarlatte disse.

− Não, eu sou diferente dessa máquina. Ele é um pro… − o assassino parou de falar subitamente, percebendo os olhares de seus colegas tutores.

− Acabe o que ia falar, End. Conte para eles − o dragão flamejante disse.

− Não, ainda está muito cedo, tenho fé que eles vão descobrir na hora certa, todos nós temos essa fé.

Nós, alunos, nos entreolhamos desconfiados, mas sabíamos que eles não diriam o que queríamos saber. Todos já deviam ter passado por interrogatórios e não contado nada sobre qualquer coisa que quisessem proteger. Não seriam simples aprendizes de herói que tirariam informações deles.

− Temos que focar no que é importante agora. Quanto tempo levará para chegar ao outro continente? − Water perguntou mudando de assunto.

− O mundo tem seis continentes, cada qual com uma maneira de viver diferente. Cada continente está igualmente longe de outros quatro, seus vizinhos, e duas vezes mais longe do último, o oposto. No pólo sul tem um continente e no pólo norte tem outro. Na “frente” do mundo e na “traseira” têm outros dois. E por último, na “direita” e na “esquerda” do mundo, têm mais dois. Cada um deles está a dez mil quilômetros de distância um do outro, então na minha velocidade atual… Levaria uns quatro dias. Não haverá pausas na viagem, pois vocês precisam chegar lá rápido.

− Por que rápido e como sem pausas? − Limcon questionou surpreso.

− Não é só vocês que querem esse totem. Totens são amuletos poderosos. Alguns são grandes, gigantescos, outros pequenos. Muitos soldados tentam passar pelos desafios para pegar o totem, mas ninguém conseguem, todos morrem no caminho. Talvez alguém consiga roubar até o dia que vocês chegarão lá. E não terá pausas porque vocês vão acampar nas minhas costas. Muitas coisas vivem nelas, mas vocês vão ficar atrás da minha cabeça, embaixo dos meus chifres. Lá nada pode viver sem minha permissão. Levem sua própria comida e não se preocupem em cair de mim, já aprendi muitas magias, então não terão como cair.

− Legal − Supreme falou impressionado − Você é muito rápido!

Supreme parecia ser fanático por coisas rápidas. Uma vez o vi perguntando para Limcon como as balas se moviam tão rápido. Ele corria em todos os momentos que podia durante a viagem e sempre estava querendo apostar uma corrida com alguém.

− Durmam que amanhã de manhã sairemos − Savra disse.

Todos fomos descansar em nossas pequenas tendas de couro. Os únicos que não dormiam sozinhos eram Skarlatte e Limcon, mas ninguém reclamava, pois a intimidade era deles. End fazia a maior parte da patrulha noturna, pois dizia que não precisava dormir. Meu irmão pegava um turno e Igor outro. Ao nascer do sol, pegamos o máximo de comida possível e depois escalamos o dragão. Olhei para trás e vi que nossos mestres não estavam escalando.

− Subam molengas. Não conseguem?

− Nós não vamos. A missão é sua, nós só dissemos que iríamos levar vocês até aqui. Mas lembrem-se do que ensinamos.

Antes que eu pudesse questionar, cada um sumiu de um jeito diferente. Water entrou em combustão e sumiu, Fear se desmanchou em uma nuvem negra, Igor se teletransportou, Roah correu como um raio para longe e Tânia correu para dentro da floresta. Eu juro que logo escutei um barulho de motor ligando.

A equipe ficou com um clima triste com a repentina despedida dos nossos professores, mas todos nós sabíamos o que tínhamos de fazer: treinar.

Assim que montamos acampamento nas costas do monstro, as asas bateram e saímos do chão em uma velocidade incrível, mas, por causa do feitiço criado pelo réptil voador, nós não sentimos nenhuma turbulência. As árvores ficaram pequenas rapidamente e se transformaram em um tapete verde. Vimos monstros gigantescos lutando entre si.

− Parecem formigas daqui de cima! − Limcon falou olhando dois trolls da floresta lutando contra um mamute de pedra.

− Formigas? Isso é só lenda, não é? − Savra perguntou.

Todos rimos.

− Não é lenda, você só deve ser grande demais para enxergá-las. Acho que você deve nos enxergar como nós enxergamos as formigas − Fear disse.

− Então elas devem ser muito pequenas mesmo! − O dragão falou.

Mesmo se movendo a uma velocidade gigantesca, nós conseguíamos entender um ao outro. Era como se uma bolha cobrisse toda a extensão do réptil. O vento era fraco, o som normal, o corpo do dragão não tremia. Claro, depois de milênios voando, era de se esperar que o voo fosse perfeito.

− Aproveitem o voo para treinar, vocês ficarão em mim por quatro dias. Eu não preciso fazer pausas, pois não canso tão rápido. Mas vou precisar comer de vez em quando, então vou descer até o nível do mar às vezes.

Concordamos em coro e começamos a nos preparar para treinar. Olhei para baixo e a paisagem já não era mais de uma floresta, mas sim de uma cidade feita de rochas negras com fumaça saindo de chaminés. Em poucos segundos a cidade era um pequeno ponto negro no horizonte. Passamos divisas e países em muito pouco tempo. Ao contrário dos outros, eu não fui treinar.

− O que está pensando, demmarc? − Savra me questionou.

− Você… você é tão grande e poderoso, entendo porque destruía cidades sem pena. Simplesmente elas não eram nada além de pedras empilhadas e pontos que se movem o dia todo.

− Alguém já pensou parecido com o que você pensou. E essa mesma pessoa foi ambiciosa demais procurando por poder. Foi assim que os demmarcs nasceram.

− Como assim? − indaguei.

− Os demmarcs eram humanos inicialmente, mas uma seita dedicada a um mago poderoso decidiu invadir o submundo e adquirir o poder demoníaco. Porém o poder dominou eles, transformando-os em demmarcs. A maior parte dos seres inteligentes e humanóides desse mundo surgiu por algo parecido. Os dracônicos tentaram usar magia de dragão, os seres elementais usaram magias de diferentes elementos até um nível perigoso, os anjos usaram poderes divinos exageradamente. Sim, até os anjos são seres amaldiçoados. Eles não podem subir ao reino dos deuses se não cumprirem a missão dada a cada um deles.

− Você viu todas essas coisas acontecerem?

− Sim, cada uma delas. Eu só não vi a chegada dos deuses nesse mundo, pois eles que me criaram, mas conheço as histórias verdadeiras.

− Pode me contar? − pedi.

− Claro. Esses deuses não são desse universo, não seguem a mesma regra que nós, sobre química, física, biologia e outras coisas. Quando entraram nesse universo, eram pura mana. Mas eles têm uma singularidade. Sempre que um deles encontra algo novo no nosso universo… não sei como explicar muito bem… bem, eles “armazenam” neles mesmo isso. O primeiro que entrou, encontrou a escuridão. Este é o deus da escuridão. O segundo, encontrou a luz. Com o passar da viagem, passaram perto demais do Sol. Lá ficou o deus do sol, que pode vir até a Terra em questão de minutos. Ao se aproximar do nosso planeta, um deles esbarrou com a Lua, e ficou descansando lá, no lado escuro do satélite.

Exclamei admirado e percebi meus colegas tinham parado de treinar para prestar atenção na história. A voz ressoante do dragão voltou a contar a história.

− O primeiro a entrar no planeta, se transformou no ar, o segundo foi o fogo, pois seu corpo de mana foi coberto de chamas, mas eles não sentiam nada, pois são imortais. O terceiro caiu no mar e se transformou na água. Por último, caindo em uma pequena ilha, o deus da terra surgiu.

− Mas e os deuses do metal, floresta, areia e esse tipo de coisa?

− Os deuses podem ter filhos com o passar dos anos. Seu corpo se enche de mana, até se tornar instável. Se juntando com outro ser de mana, eles podem criar uma nova entidade. Mas como tem material armazenado em seus corpos, ao fundir o excesso de energia em seu corpo, a nova criatura já nasce com um elemento definido. Já que os deuses não são machos ou fêmeas, somente em aparência, tiveram uniões entre si, originando os Filhos, como eles chamam. Assim a linhagem continuou, criando mais deuses menores, semideuses, monstros.

− Como as mitologias antigas? − Limcon perguntou.

− É… Como isso.

− Isso me lembra uma coisa… Todos aqueles deuses de diversas mitologias, eles nunca existiram nesse mundo? − disse o atirador.

− Na verdade eles todos existiram, eram como seres que viviam aqui, mas dependiam da fé para ter força. Eles são imortais, mas fracos. Os novos deuses os usam como escravos.

− Mas eles não reagem? − Skarlatte perguntou.

− Com que força eles vão reagir? São poucos os seres que rezam pra eles, como irão ter poder para derrotar deuses como os nossos?

Ficamos quietos, surpreso com a crueldade dos deuses com outros deuses.

− E quanto aos outros continentes? − perguntei.

− São seis no total − a voz rouca do dragão disse − Mas vocês só tem o direito de habitar três desses.

− Como assim? − questionei.

− Os três continentes que vocês não podem ir… Bem, são habitados por coisas que não devem se relacionar com esses continentes, somente alguns deles vieram para cá. Todos que tentaram navegar para o outro lado do mundo, para o Norte ou para o Sul, nunca voltaram. Não se sabe nem se chegaram lá. Mas todos sabem que existem outros continentes, pois os deuses contaram para nós.

− Desses que vieram, quem eram? − Fear indagou.

− Eu sou um deles. Um dos continentes é habitado por dragão. Um reino inteiro deles, com tantos habitantes que um décimo do exército dizimaria qualquer outro no mundo.

− Porra! Deve ter muitos dragões − Supreme falou.

− Tem sim, e muitos mais poderosos do que eu. Se eles começarem a se relacionar com quem vive aqui, vão criar uma ditadura − o lagarto disse.

− Espero que eles nunca venham para cá. Mas e os outros continentes?

Savra ficou inquieto, procurando algo para mudar de assunto.

− Olhe, chegamos no mar! − ele disse.

Realmente acabávamos de cruzar a praia e abaixo de nós um gigante oceano se estendia até onde não podíamos ver. O dragão desceu até perto do mar. Seus olhos cravaram em algo e para lá ele se direcionou com um voo silencioso. Rapidamente abaixou a cabeça, abocanhando uma baleia e a tirando da água. Pude ver o espelho de sal se sujar de sangue de baleia. Savra engoliu o mamífero de uma só vez, fazendo sua garganta se mexer desconfortavelmente sob meus pés.

− Como você sabia que ela estava lá? − meu irmão quis saber.

− Minha visão é de caçador, criança. Eu vi o calor do corpo da baleia. Geralmente como fogo, mas só para manter meu poder no auge, mas preciso comer carne também.

O pequeno ladrão exclamou de admiração.

Uma dúvida que parecia importante nasceu na minha mente, mas tive de juntar coragem para perguntar, com medo das consequências que essa pergunta poderia ter.

− Savra… Os deuses podem morrer? Tipo… Tem um jeito de derrotá-los?

O corpo do dragão estremeceu e fumaça saiu de suas narinas.

− Há alguns jeitos. Uns os deuses conhecem, outros não. Só posso falar os que os deuses conhecem, pois eles estão nos escutando agora, como sempre. Quando vocês usam muita magia, ela acaba, não é?

Concordei com a cabeça.

− Os deuses são feito de pura mana, então, se usarem muito poder, morrem. É assim que se resolve as guerras entre deuses. Mas também perdem a magia quando são atingidos, pois é como perder parte do corpo para eles. Quando algo atinge um deus, tira tão pouca vida dele, que este parece imortal. Porém ele sofreu, mas muito pouco.

− Entendi. Então precisaria atacar muito um deus para que ele desmanchasse por completo − Skarlatte disse.

− Sim, mas nenhum ser mortal duraria tempo o bastante para derrotar um ser divino. Por isso alguns magos não muito corretos criam coisas que matam os deuses. Porém estas divindades não sabem que artefatos são esses, pois até dos deuses pode-se esconder.

− Que artefatos são esses? − Fear perguntou com um tom de voz parecido com o de End.

− Eu não posso contar, não aqui. Como disse antes, os deuses escutariam. Mas um de vocês tinha algo que ajudaria a matar um deus − Savra disse.

− Quem? − Limcon perguntou.

− Você mesmo. Você tinha um diário que contava sobre o futuro.

− Eu ainda tenho − o atirador disse sorrindo.

− Não tem mais, o mestre assassino lhe furtou de noite.

− O que?! − eu e meu amigo dissemos surpresos.

− Isso mesmo que ouviram. Hoje de madrugada ele roubou durante o turno de vigia. Como eu não dormi, vi tudo.

− E por que não nos avisou? − disse com um pouco de raiva.

− Ele tem motivos maiores que os seus para ter aquele livro.

− Tipo o que? − rosnei.

− Vocês não podem saber, desculpe. Um dia saberão, eu acho.

− Só nos coloca mais dúvidas, muito obrigado, Savra!

Fogo nasceu na boca da fera, refletindo no calmo mar que sobrevoávamos. Rugindo como um vulcão, o dragão disse:

− Eu ajudo vocês a cumprirem sua missão e é assim que me tratam? Não têm medo de morrerem aqui, todos juntos, carbonizados pela chama mais quente dos seis reinos? Moleques insolentes!

− Não se esqueça, Savra, que eu lhe tirei daquela montanha, e se não fosse por isso, você não poderia estar aqui, voando livremente e comendo baleias e golens como bem entende!

− Demmarc maldito, se eu não lhe devesse uma, mataria-o aqui, agora. Tem sorte, muita sorte.

Estava prestes a me gabar pela vitória de discussão, quando uma mão gigantesca, maior que o próprio dragão, emergindo do espelho de água e tentando fechar o punho em nós. Porém o golpe era lento demais e o réptil voador conseguiu ascender, escapando por pouco das garras de um monstro humanóide gigantesco.

Seus cabelos eram longas cachoeiras que desciam por pedras cheias de corais. Os olhos eram safiras e os dentes parecidos com de tubarão, mas muito maiores. O corpo todo era feito de uma mistura de rochas, areia, algas e água. Alguns peixes ou até baleias viviam em suas grandes poças de água salgada.

− O que é isso?! − Supreme perguntou − É tão lento, mas é forte. Um ótimo inimigo para um grande guerreiro.

− Nem se anime, bárbaro. Você pode ter vantagem contra a água, mas não fará nada contra esse ser. Ele é um guardião do oceano. Dragões temem este ser, mas não é difícil fugir deles. Porém, tenho que tomar cuidado quando for pegar mais baleias, pois posso ser capturado se estiver perto demais do mar.

Supreme murmurou alguns xingamentos e sentou de braços cruzados. Savra voou mais para cima e desviou de alguns jatos de água que o guardião cuspia. Em alguns minutos, o monstro estava longe de nós, levantando os braços em fúria.

− Esses seres tentam matar qualquer um que sabe como matar um deus, por isso muitos barcos não conseguem ir de um continente ao outro, já que quase todo mundo sabe que os deuses morrem se lutarem demais. Me avisem se virem alguma coisa estranha no mar para que eu possa mudar a rota. Agora… vão treinar.

Me afastei pensando em tudo que aprendi com o lagarto. Ele realmente sabia muito e talvez poderia me ensinar algo. Acendi chamas e comecei a treinar até o sol sumir.