Capítulo 18: Noite Eterna

Para viajarmos ao país da Escuridão, resolvemos trilhar as estradas neutras, uma área de divisa que não pertence a ninguém. Ela liga todos os países e serve como um sistema circulatório do continente, já que os mercadores viajam sempre por ali, levando suas mercadorias de um ponto ao outro, vendendo, comprando e trocando. O melhor dessas estradas é que elas são mais seguras que os países. Monstros selvagens não andam por elas, então os únicos inimigos possíveis são os ladrões e o clima. O clima nessa área muda constantemente, por estar tão perto de regiões diferentes ao mesmo tempo. Chuva cai por alguns minutos e voltam a dar lugar ao céu azul, passarela do Sol, que bronzeia a pele de meus amigos que não tem resistência ao fogo.

Já estava quase dormindo por causa do balanço contínuo e monótono da carroça, puxada por dois cavalos de cor castanhos. Eram cavalos bonitos, fortes e confiáveis, toda vez que algum grupo de ladrões estava próximo, os cavalos relinchavam baixinho, para que somente quem estivesse dentro da carroça pudesse ouvir. Quando eles faziam isso, a música da barda, uma maga que usa a canção ou a música para declamar seus feitiços, parava de tocar, dando lugar ao barulho de armas sendo postas em mão. Troiana, que estava sentada ao meu lado por toda a viagem desde a cidade da floresta, ajeitava seu escudo no braço, pronta para me dar cobertura. Como os cavalos previam, os ladrões apareciam e nós os atacávamos.

Na terceira vez que os cavalos relincharam não foi diferente. Todos estavam prontos para o combate quando um grupo de dez ladrões, armado de porretes e bestas, saiu de trás dos arbustos que haviam do lado da estrada calçada de pedregulhos. Dessa vez Ynad, Fear e Murrada desceram da carroça, prontos para a luta.

Então vocês querem nos roubar, né? – disse a barda, puxando seu violão das costas, pronta para tocar a canção da morte.

A barda vestia-se parecida comigo, só que em uma versão de roupa feminina e com cores diferentes. Ela usava uma armadura de couro por dentro de uma capa verde, bordada com desenhos curvos amarelos. Seu violão era feito de uma madeira castanha com cordas perfeitamente afinadas. Seus sapatos de couro escuro eram da mesma cor dos cabelos negros, que porventura também eram iguais aos olhos negros. Ela era uma helmen, assim como meu irmão. Sua pele era branca, mas não chegava a ser pálida.

— Passem toda a grana que vocês têm, jogadores — falou o possível líder dos ladrões em tom de deboche.

— A única coisa que irei dar a vocês é dor! — gritou Murrada, levantando a espada e correndo contra os ladrões.

— Hey, Murrada, guarde alguns para mim — meu irmão falou, ajustando o anel da morte em seu dedo.

Fear começou a liberar fumaça negra das palmas de suas mãos. Esse, talvez, fosse seu novo poder, que o qual ganhou de seu mestre em Einstein. Poeira começou a levantar em volta do pequeno ladino, que olhava fixamente para o chão e sibilava palavras mágicas calmamente. Quando parou de falar, ergueu as mãos repentinamente e dois zumbis se reergueram da terra. Os dois estavam vestidos com armaduras quebradas feitas de ferro e espadas curtas feitas de bronze. Como se controlasse marionetes, Fear mandou os zumbis atacarem os ladrões, que tremiam as pernas, seja pelos golpes violentos de Murrada, seja pelos zumbis correndo ferozmente para cima deles. Depois de comandar os zumbis, meu irmão correu de encontro aos ladrões que usavam bestas, tirando pedaços de carne com seus machados enquanto deslizava com um carrinho entre as pernas ensanguentadas dos inimigos.

Ynad começou a tocar uma música. Primeiramente suave, mas com o passar das notas começou a ficar mais rápida, dando lugar a notas graves que acompanhavam a canção que continha as palavras mágicas dos poderes dos bardos. Uma nuvem escura começou a se formar no céu, exatamente em cima de onde os adversários estavam. Ao chegar ao clímax da música, um raio caiu entre os bandidos, eletrocutando todos que estavam próximos, menos Fear e Murrada. Murrada aproveitou a chance para cravar a espada de um metro e meio nos bandidos, abrindo buracos horríveis no tórax, cabeça e braços. A luta não demorou nem um minuto. O último inimigo a morrer foi um besteiro que ganhou de presente, por ser o último sobrevivente, uma machadada na cabeça. Mesmo os machados de Fear tendo menos de trinta centímetros, com lâminas menores ainda, ele conseguia botar medo até em seus aliados.

Os zumbis retornaram para os buracos que cavaram, voltando ao seu sono eterno, ou eterno até meu irmão evoca-los algum dia. Os jogadores que ficaram na carroça aplaudiram a carnificina, assoviando e gritando vivas. Ynad começou a tocar rock para agradecer aos seus queridos fãs. Todos os lutadores voltaram à carroça e seguiram conversando, como se nem tivessem acabado de matar dez pessoas. Eu sei que eles são feitos pelo computador, mas depois de conhecer o Water eu vi que cada um tem sua história e esse mundo é como um mundo de verdade para quem não é jogador. Talvez matar os monstros seja errado. Pelo menos matar por matar é errado, mas monstros que nos atacam não merecem misericórdia. A S-War vai eliminar qualquer inimigo que nos afrontar.

Consegui ficar mais acordado depois desse ataque, mas outra coisa me deixava de olhos abertos: a cabeça da Troiana no meu ombro. Como ninguém estava nos vendo, ela não conseguiu se segurar e logo se aproximou de mim. Depois que demos as mãos, as coisas ficaram mais fáceis, o clima não parecia mais tão pesado. Era estranho estar com uma garota em um jogo. Mas eu não queria pensar nisso. O jogo estava quase totalmente real, tinha cheiro, temperatura, tudo. Poderia ser uma segunda vida para nós. Talvez nem precisássemos ir à Lua, talvez morássemos no Polo Norte e passarmos o resto da vida jogando enquanto vivíamos se alimentando só de soro.

O perfume de Troiana era indescritível. O calor de suas mãos era tão confortável quanto uma lareira durante um inverno. Eu conseguia ouvir a respiração leve e ritmada dela. Se eu morresse agora iria, com certeza, morrer feliz. Eu não queria que esse momento acabasse, mas lá estava o nosso objetivo, no fim da estrada, a quinhentos metros de distância. Eu sabia que quando chegássemos lá não teríamos mais tempo de ficar dando carinho um pro outro, então passei a mãos sobre os ombros dela e disse:

— Se alguma coisa der errado, cuide do meu irmão.

— Mas o que poderia dar errado? Isso é só um jogo.

— O medo de morrer ainda é igual. Por enquanto, nenhum de nós morreu, então não sabemos como é quando morremos. Você já percebeu que sentimos dor quando somos atingidos? Será que não sentiríamos dor quando morrêssemos? Além da experiência de morrer, mesmo que em jogo, sentiríamos como se estivéssemos morrendo. Não deve ser algo bom.

— Pensando desse jeito, temos que nos cuidar mesmo. Mas não se preocupe, cuidarei do seu irmão, mas você tem que me prometer que não fará idiotices, ok? — ela disse, me olhando sério.

— Não sei, isso é meio difícil, sabe como eu sou, né? Sempre fazendo idiotices. Prometa-me que não me deixará mais fazer idiotices — falei brincando.

— Eu prometo não te deixar mais fazer idiotices, meu garoto demônio.

Nós dois rimos e nos olhamos por alguns segundos. A minha respiração estava irregular. Aproximei-me da pele morena dela, pronto para dar um beijo, mas ela pôs um dedo entre nossos lábios e disse:

— Se você matar o chefão, você ganhará um como prêmio. Mas agora temos que descer.

Não tinha me dado conta, mas já estávamos a somente alguns metros da terra pobre e escura do país que abrigava a Montanha de Obsidiana. Imediatamente, parei a carroça e gritei para que todos descessem. Aos poucos, nossos aliados foram descendo e observando o ambiente.

Vamos dizer que não é o lugar perfeito para se passar as férias. Acho que nem prisioneiros devem vir para cá, de tão horrível. Um cheiro podre inundava meu nariz. Minha visão contemplava árvores mortas, grama escura, lama com pedaços de corpos, um céu coberto de nuvens escuras e, ao longe, mas não muito distante, uma montanha escura com um pico arredondado. Possivelmente, era a área de combate contra algum chefão. Todos nós já tínhamos decidido mentalmente que haveria algum monstro muito forte para lutar, mas ninguém tinha certeza.

Fear e Therin caminharam na frente, adentrando a floresta de árvores mortas. Troiana foi logo atrás deles e eu fui no meio do grupo que formava um círculo. Com minhas mãos acesas com um pouquinho de chama que eu conseguia produzir com as manoplas, iluminei o caminho, mas mesmo com o fogo que eu criava, não conseguia iluminar mais do que uns dez metros. Uma cortina de fumaça escura enchia o ar, como quando um vulcão entra em erupção. Possivelmente, essa era a causa da escuridão dali, já que os ventos que vinham do país da lava iam diretamente para lá. Talvez, depois de muitos anos de escuridão, o país ganhou esse nome, essa formação de rochas e vegetação lindamente morta.

Quanto mais tempo eu passava naquele lugar, mais eu sentia o meu coração ser dominado pelo medo de nunca mais conseguir sair dali. Eu já não enxergava mais a carroça que tinha ficado para trás, junto com o Reaper, que se ofereceu para ficar cuidando. Nós sabíamos que se alguém achasse iria com certeza roubar, então alguém teria de ficar protegendo.

Já devíamos estar andando há dez minutos quando ouvimos um uivar de lobo. Todos ficamos tensos com o barulho, prontos para um ataque vindo de qualquer lado. Continuamos andando, mas agora, cada vez mais lentos à medida que os uivos ficavam mais altos e frequentes, até o momento que:

— Se abaixem! — gritou Tartaruga, saindo da formação para atacar o primeiro lobisomem que surgiu de dentro da névoa escura.

O ninja fatiou o inimigo em vários pedaços usando suas katanas. Mas não era só um. Aos poucos outros lobisomens foram chegando, até que tinha um para cada um de nós do grupo.

— Dividam-se! — gritou Therin.

Talvez essa não fosse a melhor estratégia, mas era o que tínhamos. Tentei confiar no mago pelo menos uma vez, então saí correndo, me separando dos outros membros que corriam.

Fugi com todas as minhas forças pela floresta de troncos podres e folhas secas que cobriam o chão como um tapete que lembrava como ninguém sobreviveria naquele lugar. Subi em uma pedra, escalando a lateral totalmente vertical, ficando umas três vezes mais alto que o lobisomem que me perseguia. O lobisomem, para quem não sabe, é um ser metade homem metade lobo, mas que, diferente do minotauro, que tem metade do corpo de uma forma e metade de outra, o lobisomem é uma junção dos dois seres que o formam. O corpo é bípede, com dedos, polegares e tudo que um humano tem, mas coberto de pelos de lobo, com dentes de lobo e garras, músculos mais fortes, feitos para caçar e matar. O que me perseguia tinha cerca de dois metros, com pelos marrons por todo o corpo, olhos amarelos e babava feito um cachorro. Pedaços de roupas humanas ainda cobriam partes dos braços monstruosamente fortes do homem-lobo. Furiosamente, o lobisomem começou a atacar a base da pedra com as próprias mãos, tirando lascas até rachar a pedra. Com um estalo, meu porto-seguro desabou, me levando junto. Agora era só eu e o lobo, sem mais nada para me proteger.

Levantei-me, com meus punhos preparados para bater. O lobisomem avançou, tentando cortar minha cabeça fora, mas eu pendi meu corpo para trás, fazendo-o cortar vento. Em seguida, dei um gancho de direita, queimando a parte de baixo do queixo dele. Rapidamente, troquei uma sequência de socos nele. Eu sabia que a única coisa que eu não podia fazer era deixa-lo me morder. Se isso acontecesse, eu iria ganhar a maldição de lobisomem e a cada lua cheia eu iria me transformar em lobisomem e perder o controle sobre meu personagem, passando a atacar meus amigos. Então mantive a boca dele ocupada sangrando ou queimando. A cada soco que eu acertava o pelo dele entrava em rápida combustão, deixando tufos de pelos queimados, que cheiravam pior que o próprio lugar em que lutávamos. Aos poucos, o lobisomem foi cansando de tentar me acertar. Eu tinha reforçado minha defesa usando algumas habilidades específicas para desviar de golpes, então eu quase não perdia vida lutando contra o homem-lobo raivoso. Dando três socos seguidos consegui tirar um dente do inimigo, que se ajoelhou com as mãos na boca.

Prevendo a morte iminente, o lobisomem entendeu que só tinha duas opções, tentar me matar com golpes loucamente não pensados ou fugir. Ele foi sábio o bastante para me dar xp. Quando tentou me acertar com mordidas, eu acendi uma esfera de fogo frio e congelei-o. Em seguida, quebrei a estátua de gelo com um soco direto no meio do peito dele. Pedaços de churrasco congelado de lobo caíram pelo chão, fazendo um baque surdo na terra seca, já sem folhas por causa do movimento da luta.

Subi em outra pedra que tinha por perto, para tentar avistar algum dos meus amigos, mas a névoa negra era muito forte. Decidi então ir para a Montanha de Obsidiana, pois imaginava que todos fossem tentar fazer isso. Enquanto caminhava para lá, mandei uma mensagem, utilizando o menu do grupo para o grupo, informando para fazerem o mesmo que eu.

A montanha não era tão longe assim, mas era muito mais alta do que eu imaginava. Ela era feita inteiramente de uma rocha negra, tão dura quanto aço, se não mais. Por nossa sorte a montanha não era muito íngreme, fazendo um ângulo de, no máximo, 70 graus no ponto mais inclinado da parede negra, que era ainda perto do topo decepado. O topo era perfeitamente aparado.

Quando ia começar a subir, ouvi uma voz me chamando. Olhei em volta e avistei o Tartaruga acenando.

— Hey, amigo, venha cá.

Alguma coisa na voz dele era estranha. Mesmo assim, caminhei em direção ao ninja, que sorria alegremente para mim.

Quando já estava próximo o bastante para enxergar perfeitamente o ninja, avistei um corpo vestido inteiramente de preto atrás de uma árvore ao lado do Tartaruga. Observando atentamente o corpo, notei que se vestia igual ao meu amigo ninja, mas analisando cada vez com mais atenção, percebi e falei:

— O que você fez com o Tartaruga?

— Caiu na minha armadilha, garoto chifrudo!

— Não gosto que me chamem assim. Terei de dar uma lição em você, impostor!

— Cai dentro, moleque!