Emma mantinha a boca aberta, ainda sem acreditar no que via. Anna respirava de uma forma tensa, também com uma cara assustada.

– Me desculpe – disparou a loura secamente.

Como se o "desculpe" significasse algo para Emma naquele momento.

Emma esperou ela falar mais. Mas não aconteceu. Respirava exaltada, seus nervos estavam lá em cima. Passou os dedos trêmulos no cabelo, sua boca ainda levemente aberta. Mantinha o olhar para Anna. Respirou fundo e tornou a falar.

– Vo-você é louca, sabia? – falou quase sussurrando – Como tem coragem de aparecer assim... Aqui? Tem gente atrás de você! – gritou na ultima frase.

– Sim, eu sei – fez um sinal de defesa com as mãos, sem conseguir olhar diretamente à Emma – olha, eu vi sua mensagem pra mim no facebook hoje a tarde – Anna limpou a garganta ao perceber que sua voz falhava – estou desesperada! Não fui eu quem fez aquilo e você dizendo que acreditava em mim, achei que poderia ajudar.

– O que? – perguntou da forma mais chocada, se ainda era possível. Não acreditou no que acabou de ouvir. Apesar de estarem devidamente afastadas de suas poltronas, Emma se afastava dela como se tivesse alguma doença contagiosa.

– É, parece loucura, mas eu estou desesperada! Eu vi sua mensagem e fiz tudo no ímpeto. Me passei por "Amy" no facebook e te chamei pra isso.

Emma realmente não esperava que uma mensagem boba pudesse causar aquilo. O arrependimento começou a brotar.

Não sabia quem era mais estúpida se era ela ou Anna.

– Eu mal te conheço! Por que não procura seus amigos ou familiares para te ajudarem? Não tem nada do que eu possa fazer!

Anna ia falar alguma coisa, mas evitou. Desviou o olhar sobre Emma e começou a olhar para o horizonte, pensativa. Emma, olhando-a agora de perfil, jurou ter visto os olhos dela se encherem d'água.

Até que o barulho da água da chuva, que chegou forte lá fora, tomou conta do ambiente no interior do carro, preenchendo o silêncio que havia nele.

Anna fez uma careta ao perceber que chovia.

– Droga! Preciso ir, foi mal por tudo isso e não comente com ninguém o que passou aqui – olhou para Emma – foi burrice minha.

– Espera – disse Emma rapidamente antes de Anna destravar a porta – a chuva está muito grossa, espere um pouco.

– Já incomodei o bastante.

– Olha... Se quiser posso te dar uma carona. – Emma pausou a fala percebendo o convite que fizera.

– Péssima ideia. O lugar onde eu tô é longe daqui e... Precário. Seria estranho chegar lá num carrão como esse.

Emma meneou a cabeça.

– Você está numa roubada.

Emma repassou na cabeça todas as informações sobre o tal crime. Tentou deixar de lado a ponta de medo que sentia ao estar do lado de uma suspeita.

– Duplamente – Anna disse e deu uma risada forçada. Mudou de expressão rapidamente, ficando séria em seguida.

Emma estranhou.

– Como assim?

Anna se virou para encarar Emma. O olhar parecia obscuro e isso fez Emma se arrepiar.

– Quem matou o Leonard, também está atrás de mim – disse com a voz trêmula.

Emma teve 10 segundos para processar aquilo. Olhava confusa nos olhos castanhos da outra esperando que ela falasse mais. E ela o fez.

– Logo que sai da casa do Leo, fui direto para a minha – Anna engoliu em seco – entrei no meu quarto, tirei meu casaco e sapatos. Quando ia tirar minhas roupas, ouvi um barulho no quintal como se fosse de galhos sendo pisados. Calcei meus chinelos e por curiosidade fui em direção a janela olhar o que tinha ou quem estava lá. No momento que me aproximei melhor, vi uma sombra. Não sei dizer, mas acho que era de um homem. Logo fiquei tensa. Eu morava sozinha e apesar da rua onde morasse ser do tipo segura, sempre tinha meus medos. Então, fiquei em alerta. Fui caminhando para porta da frente checar se era alguém que estaria a minha procura, mesmo que naquele dia eu não esperasse por ninguém.

"Fui tomada por um susto quando a campainha tocou. Logo fui me despreocupando porque se fosse um ladrão ele não apertaria a campainha para pedir licença etc, não é? Enfim. Mas ainda assim fui em alerta para atender a porta. Porém vi que a maçaneta estava em movimento constante, como se a pessoa quisesse entrar de qualquer maneira. Tremi de vez ali. Fiquei petrificada com um mal pressentimento. A pessoa aquele momento estava empurrando a porta, sutilmente. Era uma tentativa de arrombamento, só podia ser. Eu queria muito gritar, perguntar quem era, só que meu racional falou mais alto. Sai correndo silenciosamente até o meu banheiro. Lá, havia uma pequena janela do tamanho suficiente para eu passar por ela. A abri e..."

– E você fugiu por lá?

Emma se perguntava como ela estava se mantendo esses dias fugindo sem nada de casa.

– Não.

Anna pareceu ter dado um sorriso de canto da boca. Emma levantou uma de suas sobrancelhas, estava surpresa e intrigada.

– De baixo da minha pia, havia um armário que colocava coisas de limpeza. Entrei e fiquei por lá muito desconfortável ao lado de garrafas e pacotes de produtos higiênicos. Rezei para que meu plano desse certo. Daí ouvi passos vindo da sala, presumi que ele finalmente conseguiu entrar em casa. Não sei como, mas nem arrombar ele arrombou da forma como imagino um arrombamento. Nossa, você não tem ideia do pânico que passei – começou a rir de nervoso – mil filmes de terror passaram na minha cabeça. Eu tinha certeza que iria morrer ali, na porra do meu banheiro.

– Meu Deus – Emma disse tão baixo que não teve certeza se Anna escutou.

– Meu corpo tremia de medo, meu coração na boca... Horrível. Mas o mais estranho é que não ouvi outros barulhos. Nenhum.

– Devia ser um assalto. Podia estar procurando por dinheiro.

Disse Emma, mesmo sentindo que não era nada disso.

– Não. Ele estava me procurando. Procurou por mim por toda casa e por último veio até o banheiro. Ouvi os passos do calçado dele. Prendi minha respiração o quanto pude. Alguns segundos depois, ele deixava o banheiro dizendo muitos palavrões, um deles pareceu que estava se dirigindo a mim. Ele possivelmente viu a janela do banheiro aberta e presumiu que fugi. Meu plano deu certo.

Emma quase soltou um "arrasou" mas se conteve.

– Acho que ainda fiquei naquele armário por uns 10 minutos por segurança e em seguida fui recolher algumas roupas e dinheiro para dar o fora dali. E reparei que nada havia sido revirado. Nada. Até a porta estava no lugar.

– Isso é muito estranho – Concluiu Emma – E o Leonard? Como soube que ele havia sido morto?

– Não tentei contato com ele depois de sair de casa, nem pensei nisso. Soube da morte dele no dia seguinte pelos jornais. Só relacionei com a invasão à minha casa depois do choque que levei de ter sido culpada pela morte dele.

Muita coisa passou na cabeça de Emma. Ouvir aquilo a deixou muito mais confusa com toda aquela estória do homicidio. Havia tanta coisa por trás e talvez nem tenha sido coincidência Leonard morrer e na mesma noite Anna também virar alvo. Mas segundo a policia Anna ainda estava sob suspeita. Eram dois grandes lados da moeda.

E até horas atrás ela não acreditava fielmente que Anna pudesse fazer aquilo. Agora, com as mil voltas que o mundo deu nesses últimos minutos, com Anna Rossi a sua frente demonstrando na cara a fragilidade e o desespero humano, Emma ainda tinha receios e insegurança.

– Olha, você não precisa acreditar em mim e muito menos me ajudar. Foi estupidez minha me arriscar e arriscar você numa situação surreal dessas.

Emma sentiu no olhar de Anna que ela estava sendo sincera.

– Mesmo que eu acreditasse... eu não saberia como te ajudar. Porque pensou que eu, justamente eu, te ajudaria?

Esperou ouvir "porque te salvei de um afogamento anos atrás e você me deve essa, vadia!".

– Você é jornalista, não é? Sei que os jornalistas também podem ser investigadores.

Emma não resistiu e riu. A gargalhada foi alta.

Anna não a acompanhou.

– O que foi?

– "Investigadora". Sério? No máximo investigo o paradeiro do prefeito que foge das nossas perguntas.

Anna revirou os olhos.

– Você deve ter acesso a internet e contatos para conseguir o que procura. E além do mais, eu poderia te ajudar. Imagina: você está com uma informação quentíssima aqui. Está a um passo da policia. Eles não fazem ideia do que realmente está acontecendo. Têm caras por aí que mataram o Leo e querem me matar também!

– Você não tem certeza disso. Pode ser uma terrível coincidência – disse Emma, sem total segurança.

– Que seja! Eu não posso ser acusada por algo que não cometi e muito menos morrer tachada como assassina! – disparou Anna furiosa.

Emma sabia que aquele terreno era muito perigoso. O "não vou te ajudar" estava na ponta da língua, desde o momento em que a outra pedia ajuda. Mas no fundo, aquilo que Anna despejou nela, fazia certo sentido e isso a desequilibrou. Foi o que Emma sempre soube ou o que torcia para que aquilo fosse verdade, que Anna não podia ser uma criminosa. E se tudo fazia sentido e era verdade, Anna estava correndo perigo. Lembrou novamente de Anna a salvando do mar naquele acampamento e se sentiu mal por isso. Talvez ajudar, nem que fosse o mínimo possível, seria algo que Emma devia a Anna. Mas não queria reconhecer isso. Nunca que iria falar para Anna que toparia ajuda-la por conta de uma coisa boba que ela fez a Emma: salvar sua vida.

Emma precisou ser egoísta.

– O que ganho em troca?

Anna se ficou surpresa com a pergunta, não demonstrou.

– Qualquer coisa. Qualquer coisa mesmo.

Os olhos de Anna iam de um lado a outro para os olhos de Emma, como se procurassem alguma coisa. Alguma resposta.

Emma sentiu um frio na barriga da invasão que sentia no olhar de Anna.

Desviou o olhar e respirou fundo.

– Tudo bem. No momento certo eu irei cobrar.

Anna fechou os olhos, agradecida. Aos poucos um sorriso ia se formando em seu rosto pálido. Abriu os olhos e olhou para Emma.

– Obrigada. De verdade.

Emma por um momento se esqueceu de que situação ela estava agora. Foi como se o sorriso de Anna a mandasse de volta a anos atrás, na época da escola. Lembrou-se do quanto invejava a luz que Anna costumava ter e emanar, de sempre sorrir apesar das dificuldades sociais que ela viveu como estudante por ter sido quem era.

Nunca imaginou que o momento que falasse com Anna por mais de 5 minutos seria um momento de tensão, risco e medo.

Ao observar Anna agradecendo com um sorriso genuíno, Emma percebeu que estaria fazendo a coisa certa.

E sorriu de volta.