Eu não era mais a mesma, minha conduta estava alterada. Ontem a fracassada, hoje a vitoriosa, ontem a chorona, hoje a sorridente, ontem a menininha que se feria com uma gilete, hoje a mulher que golpeia com apenas palavras àqueles que me usaram como objeto. Não tem precisão de desatar-se em lágrimas por criaturas malfazejas e que te apunhalam por trás. Sinta, viva, desemparede-se de seu sofrimento, abandone suas futilidades de que ninguém lhe dá a mínima atenção. Foi com força de vontade e assistência do altíssimo Deus que estou agrupando esforço para obter vitória daqueles que me calcaram.

Já fiz meus 17 anos, meu pai quis brindar-me com uma festança, mas rejeitei, comemorações de aniversários originam-me náuseas. Bom, saí de Los Angeles para Seattle, sem o assentimento e o conhecimento do meu projeto de mãe. Responsável desde a infância, matutei sobre todo o esquema para sair de L.A, tive o auxílio de minha prima, Hayley, fundadora de uma banda de rock alternativo de garagem aqui em Seattle chamada Paramore, a quem também me ajudou a mudar todo meu visual de nerd para roqueira. Dei mechas roxas, lilás e azuis em algumas madeixas, passei a fazer uso de lentes de contato ao invés de óculos, e todas as manhãs, passei a exercitar o corpo na academia e também acudi a Hay nas composições da banda.

Hay possui 17 anos, é meio baixa, pele branca, cabelos alaranjados e louros nas pontas, olhos verdes. Ela é uma pessoa simples, fidedigna, meio alienada, sarcástica, às vezes meio precipitada, astuciosa e muito espevitada. Ela tinha um hábito de quando criança ir sempre visitar-me, compartilhávamos evidências, dedilhávamos no violão e na guitarra, gargalhávamos das coisas mais estúpidas, mas ficávamos jubilosas, alegres, contentes. Tão companheira, tão solidária.

A manhã começara a ser pintada no azulado céu de Seattle, da janela do meu quarto era nítida a paisagem encantadora relatada ali. O sol ainda estava para romper, despertei-me pelo aviso dado de meu despertador. Grande dia o de hoje!

- I'm living in a dark and dying day, and everything is lost along the way, the feeling in my heart is not the same, so what’s to say? – Brotava uma voz no corredor, ecoando airosamente. Era a voz da cabelo de laranja, emitindo as letras da canção Dying Day, de uma de suas bandas prediletas, Saves The Day.

- Dá pra parar, sua coisa nanica? Eu to tentando dormir! – Bradei para ela escutar e cessar com aquela cantoria.

- Sua chata! Estou cantando justamente para a bela adormecida reanimar de seu sono! – Exclamou revidando, sarcasticamente.

- Só que eu ainda estou sonolenta! – Dito isso, voltei a minha colocação, afundando a cabeça dentre as cobertas.

Houve-se tranquilidade, sinal de que ela emudeceu-se. Pro meu repouso, preguei novamente as pálpebras, futurando o porvir. Entre devaneios e outras quimeras, ouvi o ranger da minha porta, é crível que pode ser a minha prima querendo cravar-me um pânico, mas resolvi ficar aquietada na minha, bem pacata.

Não adquiri mais nenhum movimento brusco ou familiar, talvez tenha sido tudo fruto da minha imaginação fértil.

- Surpresa Belle! – Aquela entoação de voz acriançada soou e um líquido gelado, inteiramente glacial – sem exageros – chocou-se contra meu corpo.

Oh My God!

Embasbacada, saí de debaixo dos lençóis, tremelicando de frio, ouvindo meus dentes se colidindo e as altas risadas ruidosas daquele meio metro de gente e de cabelo estrambótico. Hayley segurava um balde vermelho em sua mão esquerda e a outra servia para ela abafar os risos azucrinantes. Muito foliona ela né? Essa chihuahua!

- Por que fez isso hein? Tamborete de forró! – Indago ainda tremeleando e meu corpo arrefecendo.

- Aqui em casa temos que ter disposição de ferro, minha querida parenta. – Desenhou uma linha fina em sua boca.

- Não tinha outro método de me acordar não? – O frio permanecia, mas a tremedeira desaparecia aos poucos.

- Era isso ou jogar uma montoeira de aranhas que eu tenho reservadas ali, para a utilização de algum ato atroz que eu possa vir a cometer. Agradeça a Deus por eu não ter te escolhido como vítima! – Sorriu cheia de diabruras.

- Maléfica.

- Eu sei.

Encarei o chão, depois cimentei o olhar em sua pessoa, fitei meus cobertores embebidos, voltei a lhe mirar e do nada, subitamente, estreamos gargalhadas escandalosas. Pois é, nossa relação é deste jeito, afetuosa, divertida e demente.

- E então... – Pausei com todos aqueles risos simultâneos, retomando a pose de séria. – Preparada para ir comigo?

Notei o quão ela estava receosa, hesitante sobre voltar comigo, acompanhar-me eu meu regresso a Los Angeles, a cidade dos anjos.

- E a banda? Como é que vai ficar tudo aqui? Estávamos começando a progredir, aperfeiçoar nosso som, dando avanços tremendos e de repentino, você me faz uma proposta dessas. É tenso e isso me deixa confusa. – Evidente o seu temor, apreensão, uma cisma em tomar a decisão inexata.

- Eu sei que nada daria certo... – Suspirei tristemente.

Desejo tanto que ela venha comigo, não queria só ela, como o papai. Sinto como se ela não fosse tão satisfeita aqui, meus tios morreram em um acidente de carros chocante, a ponto de ter deixado-a em estado depressivo. Debatendo-se, esgoelando por seus nomes, com fastio, soturna. Aqui não é exatamente o local em que a Hayley deveria estar.

Fitando-a outra vez, vejo um sorriso de ideia eclodindo em sua mente.

- Os garotos já são de maiores, obviamente vão poder alugar algum canto por lá para ficarmos. Desmontamos alguns instrumentos e mandamos a um caminhoneiro que é colega de seu pai trazê-los! – Deve de ser genética, pois as pessoas que são do lado do meu pai são bem habilidosas em ideias, uma sabedoria nata e impressionante.

- Detonou chaveirinho! – Vociferei alegremente. Contudo, ela encarou-me aborrecida.

- Dá pra parar de pôr apelidos em mim? Pernas de saracura!

- Ah mocinha... – Rosnei. – Você ultrapassou os limites!

Apanhei uma almofada enxuta que estava caída no piso de cerâmica e lhe desferi uma travisseirada. Revoltada, ela largou o balde e também pegou um travesseiro. Concluído! Agora podemos inaugurar a nossa guerra de almofadas.

Risos, cabelos despenteados, almofadadas, mais risadas, quedas, gargalhadas alvoroçadas, tudo isso sumaria o nosso entretenimento.

-x-

I think we have an emergency
I think we have an emergency
If you thought I'd leave then you were wrong
Cause I won't stop holding on

Hay ensaiava pela última vez com o conjunto na garage de meu pai. Música? Emergency.

So are you listening?
So are you watching me?
If you thought I'd leave then you were wrong
Cause I won't stop holding on

Eu, favorecendo como plateia, sibilava surdamente a canção e batendo os pés no chão, ao ritmo da bateria.

This is an emergency
So are you listening?
And I can't pretend that I don't see this
It's really not your fault
That no one cares to talk about it (talk about it)
To talk about it

Possuo essa melodia como uma de minhas favoritas. Ela se identifica com a conturbada relação de meus autores, ou seja, meus pais.

'Cause I've seen love die way too many times
When it deserved to be alive (when it deserved to be alive)
And I've seen you cry way too many times
When you deserved to be alive, alive

So you give up every chance you get
Just to feel new again
I think we have an emergency
I think we have an emergency
And you do your best to show me love
But you don't know what love is

So are you listening?
So are you watching me?
Well, I can't pretend that I don't see this
It's really not your fault
That no one cares to talk about it (talk about it)
To talk about it

Para meu espanto, Hayley produz um gesto chamando-me para acompanhá-la. Sem timidez, desgrudo-me do pufe e parto para mais próximo deles. Minha prima entrega-me um microfone todo decorado de caveiras, minha paixão.

'Cause I've seen love die way too many times
When it deserved to be alive (when it deserved to be alive)
And I've seen you cry way too many times
When you deserved to be alive, alive

Ficamos de costas uma para outra, apreciando aquele momento recreativo, mas que ela honra muito. O seu soprano popular comum arrasa, combinando com seu estilo musical.

These scars they will not fade away
No one cares to talk about it, to talk about it

'Cause I've seen love die way too many times
When it deserved to be alive (when it deserved to be alive)
And I've seen you cry way too many times
When you deserved to be alive (when you deserved to be...)

Alive
(Alive)

Arfantes, ficamos.

- Caramba! – Pronuncia-se ela, ajeitando o microfone no pedestal, impressionada com algo extraordinário. – To até pensando em te convidar pra ser uma das integrantes da banda.

Sorri acanhada.

- Não, não. Tenho outras coisas para resolver. – A olhei de canto, e ela reparou.

- Será que consigo ir com você para lá?

- Meu pai deixou, ele sabe que aqui não é certamente o lugar que você deve morar. Já está tudo planejado para os instrumentos virem em seguida!

- Você tem medo de encarar novas coisas, Hayley. – Jeremy, o baixista, manifesta-se com a verdade. Tem horas que a insegurança da SpongeBob – apelido carinhoso – excede.

- O tio vai ficar aqui solitário, sem companhia. – Utilizou meu pai como argumento.

- Artifício maneiro para me convencer, mas isso só colaria se eu tivesse nove anos! O papai já é bem grandinho, embora em sinta muitas saudades dele lá em L.A, eu preciso voltar, eu necessito por em prática tudo aquilo que esquematizei! – Supliquei.

- E eu sou louco para morar em Los Angeles, como somos maiores de idade, podemos tomar conta de você! – Taylor, que tinha várias funções, como teclado e bateria, mas optava por ficar mesmo é com a guitarra, também se expressou.

Indecisa, Hayley lançou sua mirada para uma janela pequena no alto da parede, como se estivesse meditando sobre suas escolhas.

Suspira pesadamente umas quinze vezes, girou o pescoço para nos olhar novamente e entreabriu a boca, dando o sinal de que algo falaria.

- Tudo bem... – Esbocei um sorriso espontâneo. – Eu topo, porém, se algo sair da linha, eu culpo você.

Olhou-me detalhadamente e severamente, levantei os braços como se estivesse rendendo-me.

- Você vai ser essencial, minha prima. – A abracei, refletindo de novo sobre o futuro.

O jogo agora é diferente, queridos. Vocês não mexeram apenas com o leão, foi com a selva toda.

Continua...