Quando você vai se cansar de mim?

Nenhum monstro consegue vencer minha baixa autoestima


Os dias se passaram em relativa tranquilidade após a visita ao parque. A rotina de treino dos Rangers se resumiu e não houveram ataques de Nighloks para ameaçar os cidadãos de Panorama City.

Após um mês e meio nessa nova vida, Emily já estava mais do que acostumada com o ambiente e com as pessoas com quem ela agora convive.

O Mentor é quieto e não interage muito com eles, mas é perceptível que ele se importa com todos mesmo assim. De uma certa forma, ele me lembra meu pai.

Kevin também prefere ficar na dele, treinando ou lendo, mas ocasionalmente se deixa levar pelas brincadeiras do grupo e consegue ser bem divertido quando não está levando as coisas tão a sério.

Jayden é...uma inspiração pra ela. Demorou um pouco, mas, depois que ele se abriu para as novas amizades, ele se tornou mais que um líder samurai. Ela nunca imaginou como seria ter um irmão mais velho, mas acha que seria algo parecido com a relação entre eles.

Mia com certeza já assumiu o papel de melhor amiga em seu coração. Como as únicas garotas da equipe elas logo se uniram e Emily não poderia estar mais feliz com isso. Tirando Serena, ela nunca tinha tido amigos antes, muito menos uma melhor amiga. A mudança repentina de realidade era um pouco estranha, mas certamente bem vinda.

E então tem o Mike. Depois que o medo que ela sentia por ele passou e os dois se entenderam, viraram bons amigos. Ela não o via como um irmão igual Jayden, mas com certeza era mais próxima a ele que com o Kevin, sentindo como se pudesse lhe confidenciar qualquer coisa, assim como fazia com a Mia. A amizade entre eles era leve e descomplicada.

Até mesmo depois daquilo que ela disse no parque. ‘Pra você se lembrar de mim.’ Francamente né Emily.

Ela não tinha tido nenhuma segunda intensão com aquela frase e Mike também não pareceu se importar, mas o sobressalto que seu coração deu no momento não pôde ser ignorado. O frio na barriga e as bochechas corando também não.

Depois daquela interação atrapalhada as coisas voltaram ao normal entre eles, mas vez ou outra, durante uma conversa, treino, ou até mesmo se preparando pra dormir, ela lembra do que sentiu naquela hora e a mínima menção ao Ranger Verde traz tudo de volta. O que é péssimo no momento, já que no treino de luta com espada de hoje eles foram colocados um contra o outro.

Emily usava parte da sua energia para lutar e a outra parte para não se deixar distrair com seus pensamentos. Para com isso. Foi só um deslize, uma coisa que você disse sem pensar e agora tá tendo uma reação completamente desproporcional a ela. Ainda por cima com o Mike. Seu amigo, Mike. Não é certo pensar essas coisas dele. Os dois usaram a shinai para bloquear um ao outro e se aproximaram, tentando exercer predominância na batalha usando da força física. Da distância que eles estavam ela pôde perceber...o tanto que os olhos verdes dele são bonitos.

Ah, chega! Movida por pura frustração, Emily conseguiu força o bastante para empurrar Mike e passou a desferir golpe atrás de golpe. Nem mesmo pensava no que estava fazendo, até que um de seus ataques o desequilibrou, fazendo o garoto cair de costas no chão de pedra do jardim.

“Ai não! Você tá bem?”

Um grunhido de dor foi sua única resposta e ela rapidamente ajudou o outro a se levantar. Eu sou uma idiota mesmo. Acabei machucado ele por causa dessa bobeira. Agora ele vai ficar bravo comigo.

“Se machucou? Deixa eu ver!”

Na medida que ela se aproximou pra examinar as costas dele, ele se afastou de suas mãos.

“Não, valeu, eu tô bem."

Quando ela insistiu, ele começou a correr. Mas ela não iria deixar por isso mesmo. A culpa foi dela, que deixou suas emoções tomarem o controle durante o treino. Ela vai ajudá-lo, queira ele ou não. Então ela correu atrás dele.

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Assim que eles entraram na casa, Mike se sentou com a mão nas costas e evitou dirigir sua atenção a garota. Ele parecia bravo, olhando fixamente o chão com a testa franzida e apertando um dos punhos. A visão fez Emily parar e considerar sua próxima ação. O desespero de perder o amigo tomou conta de seu corpo e sua mente começou a procurar um jeito de resolver a situação. Ele não tá me deixando ver onde machucou, então o que eu posso fazer?

Vagamente ela reparou que Mia e Kevin tinham se juntado a eles quando uma ideia surgiu. Ah! Já sei! Correndo até a cozinha, ela colocou dois pacotes de ervilhas congeladas em um prato e retornou pra mesa de reuniões. Tomara que eu consiga fazer igual a Serena fazia comigo.

Colocando o prato no chão, ela estendeu um dos pacotes ao Ranger Verde com um sorriso esperançoso.

“Pra você.”

Ele olhou o item em suas mãos sem entender e parecia até um pouco assustado.

“Ervilha congelada?”

“Pra usar como compressa. Eu sofria muitos acidentes quando era criança e isso sempre me curava.” A guarda dele baixou por um momento e ela interpretou isso como uma concessão. “Deixa que eu-"

“Não não não, brigado."

Ele se levantou e começou a se afastar dela de novo.

“Peraí, deixa eu te ajudar.” Por que ele não me deixa ajudar? Será que eu irritei ele tanto assim? “Mike! Qual é, vai se sentir melhor!"

Antes que ela pudesse processar o que estava acontecendo, seu pé foi de encontro ao prato com uma das compressas improvisadas no chão, a gravidade fez o quê faz de melhor, e em questão de segundos Emily se encontrava caída com a cara afundada num saco de ervilhas congeladas.

“Emily, você tá legal?”

Ela levantou a cabeça e cuspiu algumas das ervilhas que acabaram entrando na sua boca. Olhando em volta deu pra ver a bagunça que ela causou. Os pequenos grãos verdes praticamente cobriam o chão do cômodo. Ela conseguiu rasgar os dois pacotes de uma só vez. É... não era assim que a Serena fazia.

“Eu derrubei tudo. Sou um desastre."

“Não é não. Você só queria ajudar."

Mia estava do seu lado e passava um pano no seu rosto, provavelmente coberto de ervilhinhas. Mike se aproximou delas com cara de quem queria rir mas sabia que era errado. Se eu fosse ele ia rir mesmo. Eu devo estar ridícula.

“Eu sinto muito.” Ele disse e ela já esperava por isso. Mas ela não ia deixar ele se culpar por algo que foi responsabilidade dela.

“Não, foi tudo culpa minha. Eu tava sendo boba.” Não só correndo atrás dele, mas pensando aquelas coisas sobre ele também foi bobeira da parte dela. Ela não vai deixar acontecer de novo. Ela vai controlar as borboletas no seu estômago. “Eu sempre bagunço tudo. Desculpa. Eu vou limpar.”

Mas parece que o universo não queria que ela fizesse nada certo nesse momento, já que, assim que Emily apoiou o pé no chão pra se levantar, escorregou de novo e espalhou mais ainda as ervilhas pela sala.

“De novo não.”

Será que algum dia ela vai parar de passar vergonha na frente dos outros? Assim eles nunca a levariam a sério. Kevin e Mia sorriam como se tentassem dizer pra ela não se importar com aquilo. Mas não ia ser fácil deixar pra lá e esquecer. Não quando Mike parecia tão desapontado com ela. O olhar gelou seu sangue e pela primeira depois que eles se tornaram amigos, Emily sentiu medo em relação ao Ranger Verde. Mas não era medo dele dessa vez. Era medo de perder sua amizade.

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No fim, os três acabaram a expulsando da sala pra ela se limpar. Tendo feito isso rapidamente no banheiro, Emily sentiu um desconforto na garganta, provavelmente por ter engolindo algumas ervilhas sem querer, motivo pelo qual ela se encontrava atualmente na cozinha. Enquanto enchia um copo com água, seus pensamentos fluíam em torno de Serena. Já havia tempo que ela não se questionava sobre sua capacidade em ser Ranger, mas, depois de hoje, a realidade de que sua irmã seria a melhor opção para a equipe a atingiu com força.

Eu sou desastrada demais pra isso. Nunca tive a agilidade e leveza que sempre via em Serena quando ela treinava com a mamãe. Não importa o quão “boa” eu seja lutando, eventualmente vou acabar me machucado ou machucando os outros sem querer. Assim como eu fiz com o Jayden aquela vez. Assim como eu fiz com o Mike hoje.

Um suspiro escapou seus lábios ao pensar no Ranger Verde e relembrar o motivo de toda a confusão do dia. Ela colocou um pouco de água na boca e, inconscientemente, começou a gargarejar. Outra coisa que me falta além de graciosidade é maturidade. Tudo isso aconteceu só porque eu não consigo controlar o nervosismo perto dele depois de flertar sem querer. O primeiro cara bonito que te trata bem e você já fica assim, Emily? Francamente. Se continuar assim, imagina se um dia ele te der um abraço-

“Cê tá bem?”

O questionamento inesperado a assustou e ela cuspiu (sem querer) a água no rosto da pessoa que interrompeu seu monólogo interno, ninguém mais ninguém menos que o próprio Mike. Seus olhos arregalaram e ela se sentiu paralisada de vergonha, observando as gotas escorrerem pelo rosto do amigo, que parecia estar sentindo um misto de irritação e vontade de rir ao mesmo tempo.

“Ai não!” O estado de imobilidade logo se desfez e ela se virou para pegar um pano no balcão que pudesse usar para limpá-lo. “Eu tô sempre fazendo bagunça...”

Mike tirou o paninho de suas mãos de repente enquanto ela estava ocupada tentando secar a água (e saliva também. Que nojo!) para fazer o trabalho ele mesmo. Agora ele deve estar ainda mais irritado comigo. Por que eu sou tão burra? Não consigo nem manter uma amizade por mais de um mês?

Uma enorme onda de ansiedade tomou conta de Emily e ela procurou desesperadamente por uma forma de reverter a situação. Seus olhos pousaram nos materiais de limpeza na mão do Ranger Verde e ela se lembrou subitamente de todas as ervilhas que espalhou pelo chão da sala.

“Eu varro! A culpa foi minha, então...”

Ele tirou os materiais de seu alcance e lhe ofereceu um pequeno sorriso que, apesar de não conter a energia usual, foi sincero o suficiente para acalmar seus sentimentos conturbados e ela sentiu como se pudesse respirar novamente. Talvez ele não esteja tão bravo assim.

“Não precisa se desculpar por tudo. Todo mundo ajudou a limpar. Você só tava tentando ajudar.”

Emily sorriu de volta, um pouco aliviada e, olhando nos olhos verdes (Muito lindos os olhos dele...PARA!) do amigo, decidiu desabafar com ele.

Com um suspiro, ela começou “É que...eu só pioro as coisas. Eu queria ser como a Mia.” Eles se apoiaram no balcão da cozinha e ela sorriu com o pensamento. Por um lado era verdade. “Ela é linda, graciosa, inteligente e cozinha bem.”

“É... Não tenho certeza sobre a parte de cozinhar.”

“Mas-” A piada de Mike passou despercebida pela loira. Caso contrário ela provavelmente teria rido e concordado. “-sempre que tento fazer alguma coisa legal ou boa vira a maior bagunça. Não faço nada certo. Não tem jeito.”

“Emily, eu tô falando sério.” A gravidade em seu tom de voz a fez levantar o rosto e se fixar em seus olhos novamente. Quando foi que ela começou a olhar o chão mesmo? “Não é legal ficar falando de você desse jeito. É muito exigente.”

Ha! Tá bom. Muito exigente, sei. Mesmo que as intenções de Mike fossem as melhores, tentando animá-la, Emily sabe a verdade. Ela não é muito exigente consigo mesma, muito pelo contrário. Por ela estar tão relaxada é que os erros que anda cometendo acontecem. De qualquer forma ela sorri em agradecimento. Ele não precisa se preocupar com isso. Talvez ela devesse dizer mais alguma coisa para assegurá-lo de que se sente melhor, mas o sensor Gap soou na hora certa e ela não poderia se sentir mais grata à interrupção.

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Negatron. Esse é o nome do novo Nighlok que apareceu para aterrorizar a cidade e criar confusão. Uma criatura víl capaz de transformar insultos em ataques físicos, que imobilizou quatro dos cinco Power Rangers. Emily suspirou profundamente. Eles estavam de volta na casa Shiba depois da batalha, sentados em volta da mesa de reuniões e discutindo o que havia acontecido.

Aquele bicho feio conseguiu derrubar Mike dizendo que ele usava rodinhas na bicicleta até os 10 anos, chamando Kevin de chato, jogando na cara da Mia que ela cozinha mal e afirmando que Jayden esconde um segredo. Mas, quando tentou usar seus insultos contra Emily, nada aconteceu. Nada que os outros pudessem ver, pelo menos. Porque cada palavra que ele dizia, cada 'burra', 'cabeça de vento', 'boba atrapalhada', 'chorona', resultavam numa onda de choque por todo seu corpo. Doeu. Doeu demais. Mas ela já estava acostumada a lidar com xingamentos e conseguiu transformar os ataques em determinação para continuar lutando.

Os outros tentavam se consolar quanto às suas inseguranças e buscar apoio uns nos outros. Eles não precisavam se preocupar com aquelas bobeiras. Cada um deles era melhor que essas supostas fraquezas e, com certeza conseguiriam passar por esse obstáculo sem problemas, Emily não tinha dúvidas. A dúvida aqui era se ela conseguiria aguentar outro ataque.

“A Emily foi a única que não foi afetada.” A menção ao seu nome trouxe-a de volta à realidade e ela se virou em direção a Mike esperando que ele continuasse. “O Nighlok sabia exatamente como afetar a gente, por que não conseguiu com ela?"

“Quem sabe a Emily não tem algum poder especial."

A sugestão absurda do Mentor foi o suficiente para dissipar qualquer receio que ainda restava de contar aos outros sua “maravilhosa” experiência nos ensinos fundamental e médio e ela não conseguiu conter uma risadinha da ironia. É, legal. Meu poder especial é ser vítima de bullying.

“Não é nada de fantástico. Eu fui muito ofendida quando criança. Me deixava muito triste. Mas a minha irmã me ensinou a fingir que a pessoa que implicava comigo não tava falando nada. E acabou funcionando. Então quando o nighlok falou aquelas coisas pra mim foi como se não tivesse dito nada.”

Ela observou as expressões de seus amigos. Todos com um misto de pena e simpatia, como ela esperava e queria ter evitado. Eles são pessoas muito boas e se preocupam de verdade com ela, mas eles não deviam se importar com algo tão insignificante. Foi o passado. Ela já superou e esqueceu.

“Então por que fica se colocando pra baixo? Não faz sentido. A menos que seja o que você realmente pensa."

Mike a encarava intensamente, sua feição de contorcendo em irritação e suas palavras pesaram nas costas de Emily.

“Ah, não, mas..." Mas então por que ela achava que o que foi dito era verdade? Por que as ofensas de sua infância a atingiam com tanta força e agora ela consegue ignorar? Seria porque ela acredita que aquelas palavras realmente a definem?

Kevin repreendeu Mike mas ela já não estava mais atenta ao seu arredor, perdida nos questionamentos que surgiram e no olhar de quase raiva do outro. Ela queria sair dali. Agora.

“Desculpa... Eu..." Só sai. Sai, sai, sai. Então ela correu.

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Emily se encontrava no jardim, tocando na flauta aquela melodia que Serena havia a ensinado e que sempre a acalmava. Pensava em tudo que já viveu, sentiu e fez até esse momento, em todas as decisões que tomou, conscientemente ou não, e que a moldaram na pessoa que é hoje.

Ela não sabe quando começou. Talvez tenha sido na quinta série, quando Mary Elisabeth e as amigas perceberam que era divertido puxar seu cabelo e humilha-la das formas mais criativas possíveis e Serena a confortou pela primeira vez, com a flauta e com o mantra que ela passou a repetir sempre que a importunavam na escola.

Sim, esse foi o momento que Emily decidiu que seria igual a irmã mais velha um dia e passou a usá-la de exemplo em tudo que fazia. Mas a realidade logo se fez presente. Ela jamais seria como Serena. Lhe faltavam muitos atributos pra isso. Então ela usou os xingamentos como uma desculpa por não ser o suficiente. Mike estava parcialmente certo. Ela não pensa essas coisas de si mesma, mas usa elas pra justificar sua incompetência em ser como a irmã, que precisava dela mais do que tudo depois da sua doença. Por um lado, isso é ainda pior.

O som de passos a fez parar e ela se virou, já esperando quem iria ver.

“Emily... Olha... Acho que eu falei demais. Não foi legal o que eu disse. Desculpa.”

“Tudo bem. Você tem razão.” Ele pareceu confuso e ela decidiu explicar, ou desabafar, ou o que quer que seja. Sinceramente ela só queria tirar algumas coisas do peito. “Olha, eu costumava chorar o tempo todo. Eu não não ia bem na escola. Não fazia nada direito. Sempre implicavam comigo. Quando Serena tocava flauta eu me sentia melhor. Era só ela começar a tocar que logo eu me esquecia que tava triste. Mas aí ela ficou doente. Quando chegou a minha vez de tomar o lugar dela como Ranger Samurai, era ela que tava chorando. Foi quando eu disse pra mim mesma, ‘você não pode chorar’. Eu precisava ser forte pelo bem da minha irmã. Eu acho que tentar ficar no lugar dela trouxe de volta as minhas inseguranças. Como posso esperar que os outros parem de me menosprezar se eu mesma não faço isso?.....Desculpa.”

Eu falei demais, não falei? E ainda assim não disse tudo o que queria. Não tenho jeito mesmo....e acabei me menosprezando de novo. Que droga.

“Emily, para de pedir desculpas. Você não tem do que se desculpar. A culpa foi minha. Aqui tô eu, tentando ser mais forte que o Jayden, e aí eu perco pra você. Você vive se chamando de insegura, então eu sou o que?” Mike estava se abrindo com ela pela primeira vez, dizendo coisas que a deixaram curiosa. Ela não tinha ideia que o amigo se sentia assim. Ele demonstrava tanta confiança que a ideia de que ele pudesse ter qualquer tipo de insegurança nem lhe passou pela cabeça. Sem perceber ela começou a se aproximar dele. Queria saber mais. Ele aparentou querer dizer mais alguma coisa, ou talvez elaborar melhor o que havia dito antes, mas no fim tudo o que saiu foi... “Foi uma idiotice eu pegar pesado com você.”

Ela sorriu. Sabia que ele queria ter dito outra coisa. Ela também queria. Ele restribuiu o sorriso. Eles continuaram assim, apenas sorrindo um para o outro, até que o celular de Mike tocou. Ele apenas ouviu por alguns segundos antes de desligar e Emily já sabia o que era. Mas antes deles irem ela tinha que dizer só mais uma coisa.

“Ai não. Alerta de nighlok.”

Ele começou a sair e ela rapidamente segurou seu braço.

“Você não tem medo de ser quem é. Admiro isso. E vai melhorar com a espada, tenho certeza.”

O sorriso de Mike se abriu ainda mais e ela soube que conseguiu ajudar, pelo menos um pouco, a desfazer as incertezas dentro dele.

“Valeu.”

Com isso eles se dirigiram à batalha contra o Negatron. A dor no peito que Emily sentia da última interação entre eles servia de lembrança constante que ela não podia falhar agora. Ela não sabia o que ia acontecer se falhasse.

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Tudo estava escuro. Não havia nenhum sinal de vida a seu redor. Não havia nada, apenas a escuridão. Como ela chegou nesse lugar? Que lugar é esse? Tentando entender o que aconteceu, Emily se recordou da luta contra o Nighlok.

Estava indo tudo bem. Negatron focava todos os seus insultos a ela que resistia com toda a sua força. Paus e pedras você pode me jogar, mas palavras nunca vão me machucar. O mantra ensinado por Serena anos atrás era repetido em sua mente, ajudando-a a se manter de pé, mesmo com toda a dor que sentia. Emily estava certa que conseguiria aguentar qualquer coisa que o monstro jogasse contra ela, até o momento que ele lançou seu pior ataque:

“Garota tola, nunca será tão boa quanto a sua irmã.”

Foi como ser esfaqueada diretamente no coração. Uma dor tão intensa que ela tinha certeza que desmaiaria instantâneamente. Mas ela não ia desistir assim. Ela só iria cair depois que o inimigo caísse.

Paus e pedras. Paus e pedras. Paus e pedras.

Seu corpo não respondia. Ela implorava para que suas pernas, seus braços, suas mãos, qualquer coisa se mexesse mas nada acontecia. Estava paralisada de cansaço, ou talvez de dor. Só depois que Mike apareceu para ajudá-la seus músculos voltaram a obedecer os comandos que recebiam e, juntos, Rangers Verde e Amarela derrotaram o Nighlok.

Deu tudo certo. Até depois da batalha com os zords, quando Negatron explodiu pela última vez e a força de Emily se foi. Ela não se lembra de nada, apenas de finalmente sentir alívio enquanto perdia a consciência.

Entendi. Eu desmaiei. Ao seu redor ela começou a ouvir uns murmúrios e podia sentir seu corpo balançando de leve. Sem sombra de dúvida os outros estavam levando ela de volta pra casa e alguém a carregava nas costas. Conforme seu corpo acordava, as vozes foram ficando mais nítidas.

“A Emily disse que tava bem, mas acho que as palavras do nighlok machucaram ela sim”

Era a Mia falando. Parecia que ela estava perto, andando um pouco atrás de Emily e seu carregador.

“Ela escondeu bem, mas todo mundo tem alguma coisa que não quer ouvir.”

A voz de Jayden vinha da mesma direção da Mia e foi seguida por um instante de silêncio. Nenhum deles quis comentar o assunto, mas todos estavam curiosos quanto ao suposto segredo que o líder estava escondendo. Talvez um dia ele se sinta a vontade o bastante para compartilhar com os amigos, mas, por enquanto, é melhor deixar pra lá.

“Ela foi incrível!” Mike interrompeu o silêncio. Sua voz soou perto. Muito perto. Quase em seu ouvido e Emily descobriu nas costas de quem ela estava deitada “O jeito que ela combateu o nighlok foi demais! Ela tem garra.”

“A irmã dela ficaria orgulhosa.”

Não deu pra evitar o sorriso que enfeitou seu rosto com isso. Até às bochechas coradas e as borboletas no estômago foram bem vindas no momento. Serena ficaria sim orgulhosa, mas o mais importante é que Emily se sentia orgulhosa de si mesma. Nem sei qual foi a última vez que isso aconteceu. É uma sensação muito boa. Quase inconscientemente ela se aninhou um pouco mais no ombro de Mike e sentiu o amigo ajeitando-a melhor na nova posição.

“Esse é um som que eu nunca esqueço. Eu adoro esses caminhões de sorvete.”

“Será que alguém falou em sorvete?”

“Acordou é?”

Em sua defesa ela já estava pensando em mostrar pra eles que tinha acordado há um tempinho. A Mia ter mencionado sorvete foi só um incentivo extra. Ela riu pra Mike que parecia se divertir com a situação e fez menção de descer das costas dele. Ele, por outro lado, só segurou suas pernas com mais força e, assim que Kevin gritou “A gente tem que alcançar aquele caminhão!” ele se disparou a correr, assim como os outros, em direção ao caminhão de sorvete.

Ela se sentia uma criança de novo, andando de cavalinho nas costas de alguém, gargalhando, enquanto corria pra tomar sorvete.

“Moço! Moço! Você não pode ir embora ainda!” Kevin foi o primeiro a alcançar o caminhão, que já estava partindo. Ele parecia muito empolgado. Será que gostava tanto assim de sorvete? “Valeu. Eu quero uma casquinha de baunilha. Vão querer o quê? Mia? Jayden?”

“Chocolate.”

“Morango. Se você estiver pagando, Kevin, pode ser duas.”

“Há há há, muito engraçado Jayden. Achei que o palhaço aqui fosse o Mike. E vocês dois? Vão querer o quê? Você vai ficar carregando ela até quando, Mike?”

Emily só riu de seu lugar e respondeu que queria de chocolate também. Mike se virou para Kevin.

“Eu quero uma de chocomenta. E quer saber, Kevin? Aposto com você que eu consigo levar ela assim até lá na casa Shiba sem parar nenhuma vez. Se eu ganhar, você paga meu sorvete. Se eu perder, pago o seu. E aí, fechado?”

O Ranger Azul pareceu considerar a oferta, olhando para os dois como se indagando se o amigo era capaz, pensando na trajetória até a casa, quão pesada a garota deve ser...

“Tá bom. Eu topo.”

“Beleza! Espero que não se importe comigo te usando pra ganhar sorvete de graça, Emy. Prometo te dar um pouco depois que eu vencer.”

“Não me importo Mike. Só quero saber como você vai tomar ele enquanto me carrega.”

“Simples. É só você me dar ele na boca. Aaaaaa...”

Não fosse pela careta ridícula que ele fez, Emily tinha certeza que desmaiaria de novo de vergonha. Mas conseguiu conter o familiar frio na barriga e apenas rir, dando um tapinha de leve no ombro dele.

“Você é muito bobo.”

“Eu sei. É o meu charme... Aí, eu queria falar com você hoje à noite, depois do jantar, pode ser? Não acho que eu falei tudo que queria mais cedo.”

A mudança repentina no clima da conversa a deixou um pouco tensa, mas a curiosidade falou mais alto que o nervosismo.

“Claro. Eu também preciso esclarecer algumas coisas, eu acho.”

“Ótimo. Pode ser no seu quarto?”

“Sim, sim. Te espero lá.”

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O silêncio reinava absoluto no quarto da loira. Emily se encontrava sentada na cama de pernas cruzadas olhando para Mike, sentado no chão do outro lado do cômodo. Ele tinha pedido alguns minutos para poder organizar seus pensamentos e conseguir dizer tudo o que queria, mas depois de quase cinco minutos sem falar nada, a tensão começou a ser demais para ela.

“Então... Parabéns pela sua vitória na aposta contra o Kevin.”

“Ah, valeu. Foi moleza. Você é levinha e não tava tão longe assim.” Sua expressão rapidamente ficou séria e ele a olhou nos olhos “Olha só, hoje mais cedo eu dei a entender que eu tinha ficado irritado por ter perdido pra você. E, tá, eu fiquei bravo por ter perdido sim, mas não foi porque eu perdi pra você. Perder pra você na espada é um privilégio até. Você arrasa. Eu devia ter ficado feliz de conseguir te peitar por mais de cinco minutos de luta.”

“Valeu. Não se preocupe, eu entendi o que você quis dizer.” Um detalhe da conversa de mais cedo lhe veio a mente e ela decidiu questioná-lo sobre aquilo “Por que você tá querendo ser mais forte que o Jayden? Se não quiser me falar tudo bem, eu só tava curiosa.”

“Não, não. Eu quero te contar. É só...” Ele abaixou a cabeça, parecia exitante em olha-la nos olhos “... difícil de admitir o motivo em voz alta. Você vai me achar um perdedor.”

“Ei, eu nunca vou pensar isso de você. Eu juro.”

Ele sorriu mas ainda evitava olhar em sua direção, ficou em silêncio por mais alguns segundos até que...”Você pode tocar sua flauta pra mim? Vai ajudar. Por favor.”

Mesmo um pouco confusa com o pedido inesperado, Emily pegou a flauta da gaveta e começou a tocar aquela mesma melodia que a acalmava. Mike fechou os olhos.

“Eu acho que quero vencer o Jayden, ser melhor do que ele, pra provar que consigo ser um Ranger. Provar pra mim mesmo, sim, mas, principalmente, provar pros meus pais. Eles nunca tiveram confiança em mim. Em nada. Meu pai começou a me treinar como samurai quando eu tinha 10 anos. A gente ficava meia hora no treino até ele decidir que já tava bom e me levava pra jogar videogame, ou comer pizza, ou ir na festa de um dos amigos dele. E a gente sempre treinava só ataque e defesa. Ele só me ensinou os símbolos básicos. Com certeza pensou que eu não ia precisar de outros. Minha mãe não foi melhor. Ela começou a me ensinar a dançar aos 6 anos. No começo achei que era só pra ter minha companhia durante as aulas, mas depois de um tempo percebi que ela tava tentando me deixar mais ágil. Ela não confiava nem em mim nem no meu pai. Você tinha que ver a cara deles quando a carta do Mentor chegou avisando pra me preparar. Eles disseram 'Você vai se dar bem, Mike', 'Não dê trabalho pros outros, Mike', mas a expressão de medo que faziam... Tava na cara que queriam dizer 'Tente não morrer, Mike', 'Não atrapalhe os outros Rangers, Mike’. Não acreditavam em mim. Aí eu sinto que, se eu conseguir vencer o Jayden, nosso líder, consigo fazer eles acreditarem, entende?”

Emily ouvia a tudo do seu lugar na cama, tocando flauta o tempo todo como lhe foi pedido. Mas levantou e se agachou ao lado do amigo no mesmo segundo que percebeu que ele havia começado a chorar, o envolvendo em um abraço. A posição era um pouco desconfortável mas nenhum dos dois se importou naquele instante.

“E-Eu só quero, uma vez, ver que eles sentem o-orgulho de m-mim...”

“Eu entendo, Mike. Eu entendo.”

Ficaram daquele jeito por vários minutos, apenas o som do choro do garoto preenchia o silêncio do quarto. Quando ele se acalmou, desfez o abraço e olhou-a nos olhos, um sorriso genuíno em sem rosto.

“Obrigado por me ouvir. Tava precisando desabafar. Pena que você teve que ver esse meu lado patético, heh.”

“Não é patético. Patética sou eu. Não consegui te explicar mais cedo, mas descobri porque fico me pondo pra baixo. Prometi pra Serena que seria forte, mas, pra mim, ser forte é ser ela. Então eu tentei fazer tudo que ela fazia. Mas, pra surpresa de ninguém, eu não sou minha irmã. Então passei a usar os xingamentos que usavam contra mim na escola pra justificar minhas falhas. E eu sei que eu não preciso ser ela, mas é difícil sair dessa sombra.”

Ela sentiu a mão dele repousar sobre sua cabeça e afagar seus cabelos cuidadosamente.

“Você não é patética, Emily. É a pessoa mais incrível que eu já conheci. Tenho certeza que sua irmã é legal, mas aposto minha vida que você é mais bacana.”

“Ha ha, vou contar pra ela que você falou isso. E você, senhor Mike Parry, consegue fazer tudo o que quiser. E se seus pais não acreditarem nisso, eu acredito.”

Eles sorriram um para o outro. Emily esperava que suas palavras tivessem ajudado tanto quanto as dele. Porque, depois dessa conversa, ela se sentia pronta para tentar ser ela mesma.

“Ah, mais uma coisa. Eu tenho que te pedir desculpas por hoje.”

“Ah Emily, te falei pra parar de-“

“Me desculpar por tudo. Eu sei. Só que, eu te irritei hoje, não adianta negar, com toda aquela história de ter te machucado, e as ervilhas, e ficar insistindo pra ver onde foi, eu ainda não entendi por que você não deixou, mas você ficou bravo com isso então... O quê?”

Ele estava rindo agora. Seria algo bom durante uma conversa, se Emily estivesse contando uma piada, o que não era o caso.

“Emy, eu machuquei a bunda. Tem certeza que queria ver?”

Ah.

A risada de Mike só ficou mais alta quando Emily escondeu o rosto com as mãos pra ele não ver o quão vermelha ela tava. Sinceramente, ela não tinha certeza se teria se incomodado muito caso visse a bunda dele. Emily má. Para com isso. Malditas borboletas no estômago. Me deixem em paz.

“V-V-Você podia ter me falado isso antes do fiasco com as ervilhas, né? E para de rir!”

“Foi mal. Você fica engraçada vermelhinha desse jeito. Mas fica muito fofa também! Não me olha assim.” Ela lançou seu melhor olhar assassino em sua direção, mas não deve ter tido tanto efeito com essa cara de tomate maduro. “Eu devia ter te contado e não fugido daquele jeito, mas eu fiquei com vergonha. Juntou isso com a frustração de ter perdido e a raiva que eu tava sentindo de te ouvir se pondo pra baixo e eu acabei te tratando muito mal hoje. Desculpa.”

“Você ficou com raiva?”

“Fiquei. Não me entra na cabeça que alguém não veja o quão maravilhosa você é. Principalmente você mesma. Se eu tivesse a chance ia na sua cidade só pra dar uma lição nos babacas que te ofendiam.”

“V-Você é um amor.” Por que ele é assim? Tão gentil. Tão fofo. Assim fica difícil controlar as borboletas, Mike.

“Não, você que é. Às vezes eu não controlo o que eu falo e acabo ofendendo as pessoas sem querer. Me ajuda com isso? Toda vez que eu disser uma coisa que possa magoar alguém, me dá um cutucão ou, sei lá, um tapa na cara. E, uh, se você pudesse me ajudar com a espada também seria ótimo.”

“Combinado. Eu te ensino a melhorar com a espada e te lembro de ser bonzinho, se você aceitar me ajudar com as lutas corpo a corpo e, bem, me lembrar de ser a Emily, não a Serena.”

“Fechado.”

Eles sorriram um para o outro e Emily vagamente pensou que essa era a terceira promessa que eles faziam entre si. Alguns segundos depois Mike se levantou e estendeu a mão para que ela fizesse o mesmo.

“Bom senhorita Emy, acho que já está bem tarde e bons Samurais dormem cedo. É melhor eu ir pra cama. Muito obrigado por me ouvir desabafar. Tava precisando. Boa noite.”

Ele a abraçou forte e deixou um beijo suave na sua testa, antes de sair do quarto sem esperar uma resposta. Foi melhor assim. Se ele tivesse ficado teria visto o efeito paralisante que seu gesto carinhoso teve na amiga, que ficou parada no meio do quarto por um minuto inteiro, com a mão na testa, murmurando 'boa noite' para si mesma. Quando finalmente saiu do transe, apenas conseguiu sorrir. Talvez não quisesse mais controlar as borboletas, afinal.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.