Sua cabeça estava coçando incessantemente e o estava deixando louco.

Hiro estava deixado sobre um monte de cobertas bem abaixo da janela, de onde vinha uma corrente de ar fresca que ajudava a manter o pó longe. Não havia tido coragem de deitar na cama, que provavelmente estava tão empeirada quanto todo o resto. Havia se despido até os boxers e se encolhido no colchão improvisado, tentando ignorar o incomodo dos seus machucados e o fato de que ele não havia tomado banho.

Mesmo assim, quando a noite pareceu atingir o seu auge, Hiro estava prestes a abrir o machucado de novo de tanto coçar o sangue seco. Ele se revirou pela milionésima vez e pela milionésima vez se imaginou lavando a sujeira num chuveiro quente.

A visão do quarto vazio, oco como uma grande boca negra, não ajudava seu espirito também.

Fechou os olhos com determinação e grunhiu, escondendo o rosto embaixo do cobertor.

Atchim!

Esfregou o nariz, sentindo-o escorrer e uma coceira familiar começou a incomodar seus ouvidos.

Oh, merda.

Andou com cuidado pelo escuro, usando da sua mão limpa para se guiar pela parede. Embora o sangue já tivesse secado, ele preferia não arriscar deixar a marca de cinco dedos vermelhos contra o bege perfeitamente limpo. As pessoas em geral não reagem bem com alguém sujando a casa delas, em especial em algo semelhante a um filme de terror.

Oh, maravilha. É claro que seus pensamentos tinham que se voltar para esse lado. Filmes de terror. Monstros que atacam durante a noite, quando não há nenhuma luz. O garoto bonitão e sarcástico não era sempre um dos primeiros a morrer? Você é a porra de um adulto de 24 anos, Hamada! Uma voz que parecia com Gogo gritou na sua cabeça, com o tom gentil e carinhoso característico dela. Vira mulher, homem!

Respirou fundo pelo nariz, resistindo à vontade enlouquecedora de olhar para trás e se forçou a andar destemidamente para qualquer coisa que o estivesse observando no escuro.

Foi desse modo que ele prosseguiu em quase gritar feito uma mulher loira estereotipada de filmes de terror ao dar o próximo passo e encontrar o nada. O grito entalou na sua garganta quando ele o impediu, engasgando-o e Hiro quase vomitou seu coração no milésimo de segundo que levou para seu pé encontrar a superfície do primeiro degrau da escada.

Cambaleou para frente e então parou, respirando ruidosamente. Seus batimentos soavam nos seus ouvidos como tambores. Suas pernas pareciam ser feitas de gelatina.

De verdade, como ele havia atuado como um super-herói por dez anos, Hiro às vezes não tinha ideia.

O espirro explodiu antes que ele pudesse se controlar e ocou feito um megafone pela casa inteira, alto o suficiente para erguer os esqueletos do cemitério mais próximo. Hiro congelou, feito um veado pego num feixe de luz, a mão batendo contra seus lábios e nariz e parando de respirar. Segundos passaram feitos grãos de areia, o tic-tac de um relógio ao longe. Um minuto passou e quando Hiro teve a certeza de que não havia despertado os mortos e seus avós com o barulho, deixou a respiração sair.

Resfolegou. Então sacudiu o corpo inteiro feito um cão molhado e seguiu em frente determinado a ignorar qualquer outro pensamento estúpido seu.

Desceu as escadas devagar, ainda usando sua mão limpa como guia, não ousando ligar as luzes ainda. Já passava das três da manhã e a casa estava absolutamente silenciosa, mas ele preferia não arriscar. Assim como ele não havia arriscado tentar achar o banheiro do andar superior. Se por acaso se encontrasse com Mary e Tomeo, não sabia como as coisas iriam acabar.

Provavelmente não muito bem.

Com cuidado, chegou a sala, que ele havia visto muito brevemente algumas horas antes e foi na direção do que ele jugou ser a cozinha, um vão mais escuro do mar negro em que estava. Quando chegou lá, tendo quase derrubado pelo menos umas quatro coisas e acertado ambos os dedinhos em duas quinas diferentes, Hiro finalmente desistiu e procurou o interruptor. Não acorda-los não adiantaria nada se na manhã ele tivesse destruído tudo que fosse quebrável.

Seus dedos deslizaram por azulejos gélidos até que encontraram o que queria e o ambiente foi repentinamente iluminado por um choque de luz branca. Grunhiu ao sentir a dor nos olhos e com pontos brancos dançando sobre sua visão enquanto se aproximava da pia. Sem cerimônia, abriu a torneira da água quente e enfiou a cabeça debaixo.

Um gemido de alivio escapou ao sentir o liquido deslizar pelo seu machucado e aliviar a coceira enlouquecedora e ele ficou nessa posição por vários minutos, apenas vendo alguns pontículos vermelhos escorrerem pelo ralo conforme parte do sangue dissolvia, até que seu pescoço começar a doer com a postura forçada. Suspirou e se moveu, deslizando ambas as mãos pelo cabelo afim de tirar os coágulos dos fios e raspar as partes do seu machucado que não doíam.

Ficou assim por um tempo, aproveitando a sensação morna da água, até que mais um espirro o interrompeu e Hiro se forçou a fechar a torneira. Puxou a camiseta que havia voltado a usar e a usou para enxugar os fios negros. Então ergueu a mão para a cabine e a abriu, sem pensar. A visão de pratos e copos foi o que o fez se tocar do que estava fazendo.

Piscou os olhos e se sacudiu, fechando a cabine com um estalo.

Encarou o nada por um momento, deixando afundar o que ele havia acabado de fazer. Não estava em casa, não estava na sua casa, onde ele guardava a caixa de remédios na cabine em cima da pia e onde estava seu remédio antialérgico. Por que havia feito aquilo? Aquela não era sua casa. Era a de seus supostos pais, de uma outra realidade, que o detestavam.

Onde ele estava preso após ter morrido num acidente de carro.

O pensamento causou uma dor aguda repentina, diretamente no seu peito, esfaqueando sem nenhum aviso prévio e Hiro soluçou. Surpreso, viu sua visão se embaçar, olhos queimando de um jeito familiar. Puxou um longo suspiro, tentando se controlar e dois segundos e meio depois, quando se virou para sair da cozinha, se viu repentinamente cego de lagrimas.

Suas pernas cederam como se atingidas por um muro de tijolos e ele desabou contra o armário da pia, tentando respirar entre soluços que irrompiam violentamente do seu peito.

Violentamente, mas silenciosamente.

[Nesse sentindo ele sabia, desde que tinha 14 anos, que era silencioso]

Pressionou uma mão contra seus olhos, tentando limpar as lagrimas. O esforço inútil logo o fez desistir e Hiro apenas pressionou os dedos contra a testa, os soluços sacudindo seus ombros.

Era uma coisa estúpida, talvez. Uma reação tardia para um choque que ele julgou já ter superado, porque haviam lhe explicado a situação, haviam lhe exposto as opções e ele havia escolhido o seu próprio caminho nessa confusão.

Mesmo assim, Hiro chorou de luto pela sua vida que havia acabado.

Quando Mary desceu naquela manhã, ela esperava fielmente que não veria seu filho mais velho por pelo menos o resto do dia e estava se resignando a uma casa silenciosa pelas próximas 24 horas. Não que Tomeo e Tadashi fossem pessoas barulhentas, mas outro ser vivo andando pela casa é um som que conforta a alma.

E ela não mais esperava conseguir tirar algum tipo de conforto da presença de Hiro, além, talvez, do alivio de saber onde e o que ele estava fazendo. Em saber que ele estava apenas no seu... no antigo quarto da casa, ignorando o mundo e não em algum lugar perigoso, fazendo o que é que ele gostava de fazer nesses lugares.

Suspirou e empurrou a memória de uma bola de energia de cabelos negros descontrolados, correndo pela casa aos gritos e risos.

[Esse puxou a mãe, com certeza-]

Não tinha nem quarenta anos. Se recusava em se tornar uma velha melancólica tão cedo, ainda mais sem café.

Arrumou o roupão ao redor do seu corpo, sentindo o ar frio de uma manhã quieta e bocejou, adentrando a sala. Seus olhos passaram distraidamente pelo local, notando o sofá bagunçado e fazendo uma nota automática de arruma-lo mais tarde, depois do seu café-da-manhã. Café. Hmnn.

Quase pode ouvir o riso de Tomeo em sua cabeça. Sua viciada.

Foi com assim que entrou na cozinha, um meio sorriso no rosto, e foi assim que congelou quando abriu os olhos marejados e viu a figura deitada sobre a mesa, cabeça de cabelos rebeldes inconfundíveis entre os braços.

Se fosse a cena dramática de um filme – daqueles que Tadashi está sempre assistindo – ela teria uma caneca nas mãos e a câmera filmaria sua queda lenta até o chão, quebrando em vários pedaços e espalhando seu liquido precioso.

Como esse não era o caso, Mary só pode encarar a cena diante de si, paralisada onde estava.

Seus olhos ergueram rápidos para o relógio na parede e mais uma vez choque percorreu o seu corpo. Não eram nem 6h30 ainda. Voltou a encarar a figura desacordada de seu filho mais velho, ressonando tranquilamente na mesa da cozinha com... aquilo era a sua caneca? E... a jarra de café?

De todas as coisas com o qual ficar escandalizada – Hiro estar usando as mesmas roupas de ontem, Hiro estar dormindo na mesa da cozinha onde as chances de se esbarrar com alguém era de 100%, as manchas suspeitosamente vermelhas na camiseta de Hiro – era obvio que seu cérebro se focaria no café. E o fato de Hiro ter claramente feito uma jarra para si e ter estado bebendo-o. Com a sua caneca.

Hiro sabia que aquela era a sua caneca.

A Melhor Mãe do Mundo.

Se a escrita infantil não denunciasse, ela sabia que ele sabia porque a memória do comentário maldoso que ele havia feito quando Tadashi trouxe o presente da escola ainda lhe era facilmente recordável. E Hiro, talvez porque a própria Mary amava tanto o liquido, havia declarado seu nojo por café mais de uma vez.

Então... o que, exatamente, ela estava vendo?

Antes que se tocasse do que estava fazendo, seus pés estavam se movendo em silencio e ela de repente estava parada diante da mesa. Seus olhos percorreram a figura de seu filho, do corpo relaxado e de guarda aberta, e pararam no rosto tranquilo. Em sono, de olhos fechados, Hiro parecia um adolescente normal – sem rugas irritadas entre as sobrancelhas, ou expressão erguida em desdém, apenas... a boca levemente aberta para respirar (porque a rinite sempre o tampara o nariz, mesmo usando remédios e Neosoro e-), os ombros subindo e descendo ritmados...

Com um sobressalto violento Mary recuou, agarrando a mão que inescrupulosamente havia se estendido como se para deslizar pelos fios rebeldes do garoto dormindo.

Puxou um longo suspiro pelo nariz e se virou. Café-da-manhã. Certo. Ela ainda não havia tomado seu café. Café primeiro e então ela lidaria com... o que é que aquilo fosse.

Hiro acordou ao cheiro do paraíso.

Bacon frito e ovos mexidos.

Seu estomago roncou de antecipação antes mesmo dos seus olhos abrirem e quando o fez, eles pareciam cheios de areia e sensíveis e Hiro demorou um segundo para lembrar porque parecia que ele havia chorado até dormir. Ah, é verdade. É porque ele havia chorado até dormir. Urgh, que patético. Odiava chorar. Seus olhos ficavam parecendo dois tomates e era como se toda sua cara caísse. Sério, nada bom para sua reputação.

Um bocejou subiu pelo seu peito e Hiro sentiu as lagrimas pinicarem as bordas dos olhos, enquanto espreguiçava feito um gato sobre a mesa. Seus ombros protestaram e ele permitiu um pensamento de arrependimento de ter perdido a batalha do Dormir Bem No Sofá Ali Na Sala Vs. Estar Em Casa Alheia e Sem Saber O Que Posso Ou Não Fazer... apesar de que ele havia tomado a liberdade de fazer café, com utensílios que não lhe pertenciam.

Esfregou os olhos distraidamente, vendo sem ver a caneca diante de si. Um vago pensamento se agitou dentro de si, tentando-o lembrar de algo importante, mas Hiro ignorou. Ele ainda estava com sono e metade do seu ser continuava dormindo. Só com mais duas horas e vários litros de café que ele conseguia se tornar plenamente funcional... Piscou os olhos, sonolentamente surpreso, quando sua caneca pareceu se reencher milagrosamente de liquido escuro e fumegante.

Huh. Quem era ele para questionar milagres? Ainda mais tão cedo de manhã?

Se esforçou para deslizar os braços pela mesa, até conseguir envolver a caneca com as mãos. Quente e perfeito. Feito a lesma preguiçosa que era, puxou o copo até o seu rosto apoiado na mesa e entornou assim mesmo a bebida, entorpecido demais para os avisos o relembrando que ele queimara a cara mais de uma vez fazendo algo assim. Muito esforço se erguer e agir feito um ser humano normal. O risco valia o não-mover.

“Você vai queimar o rosto assim.” Seu cérebro registrou a voz feminina e Hiro se indagou o que Honey estava fazendo aqui – afinal, se fosse Gogo ele já teria levado no mínimo um chute porque estar semi-dormindo.

Grunhiu, sem tom, e respondeu sem entonação. “Hai, okaasan.”

CLANG!

Hiro pulou sobressaltado, sono esquecido imediatamente. Estava de pé e em total alerta, adrenalina em suas veias enquanto retomava seu ambiente rapidamente. Foi então que ele entendeu o que tinha acontecido.

Uma mulher na casa dos trinta com longos cabelos negros e de descendência nipônica o encarava, uma expressão de choque no rosto. Havia uma frigideira no chão, com ovos ainda moles pintando o azulejo branco de amarelo. Ela era pequena e imediatamente Hiro foi lembrado de uma versão mais nova de Tia Cass, só que mais frágil e-... oh.

Oh.

Tudo rapidamente voltou para si. Onde, quando ele estava e o que estava acontecendo e, é, aquela era a sua mãe que o estava encarando como se ele fosse o fantasma voltando a vida e ele havia acabado de- é, ele havia acabado de chamar sua mãe de mãe, pensando que era Honey e era para ser uma brincadeira e talvez o ele dali – que era um punk mal-educado ingrato agressivo, seu cérebro o relembrou alegremente – não chamasse sua mãe de mãe ou talvez fosse um tabu falar japonês ali ou talvez okaasan fosse aqui um xingamento horrível e, deuses, o cheiro de bacon era maravilhoso.

Dois dos seus sentimentos mais fundamentais entrarem em conflito: Putz, fudeu e estou com fome. O que ele fazia agora?

Hiro se viu totalmente congelado, sem ousar se mexer por vários segundos de total silêncio. Sua mãe o encarou de volta sem parecer notar nada, ainda de olhos arregalados de choque.

Por fim, num murmuro que pareceu um grito na quietude, veio um angustiado. “O que você disse?

Hiro engoliu em seco. “Eu...” Procurou o que dizer desesperadamente, mas se via com um nó na garganta sob o olhar furiosamente ferido de sua mãe. Era o momento na prisão tudo de novo. “eu-... eu sinto muito...?”

A frase acabou saindo como uma pergunta e talvez não devesse ou fosse outra coisa completamente, mas no segundo em que ele falou os dois olhos castanhos tão parecidos com o seu pareceram se arregalar mais ainda por um momento, antes de se fecharem em fendas iradas e o corpo pequeno inteiro pareceu se endurecer.

Aquela expressão era tão dolorosamente familiar que Hiro imediatamente se sentiu com 12 anos de novo, tia Cass no lugar da sua mãe. Com a simples adição de não ter ideia de onde havia errado.

“Você acha que isso é uma brincadeira?” Ela falou, intensa em cada palavra e era como se estivesse gritando sem sequer erguer a voz.

Hiro automaticamente recuou. “O que- eu não...!”

Eu não vou tolerar esse tipo de atitude, ouviu bem? Essa família já teve o suficiente de você brincando com ela e eu não vou permitir que você faça isso de novo!

Sem querer sentiu-se se irritar, injustiçado diante um tratamento o qual ele não havia feito nada para receber além de ter morrido e vindo parar aqui, sem querer. Não importa o quão estupido era e que fosse em detrimento da sua decisão de não causar problemas, Hiro se viu replicando no mesmo tom que sua mãe. “Eu não fiz nada!

“Não fez nada?” Mary repetiu incrédula. “Não fez nada? Como você se atreve a dizer isso!?”

“Eu me atrevo porque eu não fiz droga nenhuma além de acordar a cinco minutos, só para ter você na minha garganta no momento seguinte!”

“E eu deveria ignorar sua zombaria, sua provocação?

“Quando foi que eu zombei de você?!”

“Quando? Quando?” Ela repetiu, tom agudo. "Você cospe na minha cara pelos últimos oito anos que eu não sou sua mãe e de repente quer me chamar de okaa-san depois de-"

E algo simplesmente quebrou por um segundo dentro do seu cérebro, um momento de insanidade em fúria e dor, porque no momento seguinte Hiro se ouviu interrompendo e- "E você não é?!

Um momento de choque pareceu congelar a realidade, com um segundo impossivelmente silencioso.

Seus ouvidos pareceram explodir pela pressão.

Seus olhos se arregalaram ao mesmo tempo em que viu sua mãe recuar, a expressão de um animal ferido.

Aberta e sensível.

A raiva, rápida e incompreensível como veio, se foi, desinflando-o como um balão furado. Hiro pode sentir seu ser murchar e cair, dobrando-se sobre si mesmo no chão da cozinha.

Não. Boca má. Você deveria passar essas coisas pelo cérebro antes de dize-las.

Mary o olhou com um rosto despido de emoções que fez Hiro querer dar um passo para trás, mas antes que o pudesse faze-lo a mulher fechou os olhos e suspirou, fazendo-o congelar. “Vá tomar banho.” Falou e ele demorou um minuto para entender que aquilo era uma ordem.

Engoliu a saliva acumulada na sua boca. Sem dizer nada, virou e saiu o mais rápido que pode da cozinha.