Quando Eu Me For, Não Deixe de Sorrir

Entre distrações e saudade, tente escovar os dentes


Tadashi encarou a página do seu caderno sem enxerga-la de verdade, mordendo distraidamente a ponta da sua caneta. Era o estudo para a prova de Biologia da próxima terça e não era uma matéria que ele podia relaxar se seus planos para faculdade quisessem virar realidade, mas mesmo assim Tadashi não conseguia se concentrar.

Era a terceira vez que tentava começar a estudar e, assim como todas as outras vezes, no momento em que se viu livre de todas as distrações, seu cérebro imediatamente pulou para o elefante cor-de-rosa, assim dizendo.

Ia fazer cinco dias que ele estava na casa da sua tia, a primeira noite um borrão confuso da sua mãe o acordando no meio da noite com um ar urgente e todo mundo indo para o carro. Na sua próxima piscadela, ele estava no seu quarto no Lucky´s Café com tia Cassandra o chamando para tomar café, para sua grande confusão. Por que ele estava ali? O que havia acontecido?

Sua tia entrou em visível pânico quando ele a fez essas perguntas, e numa óbvia artimanha para evitar ter que responder, enfiou uma rosquinha inteira na boca. O que acabou com ela engasgando e os dois correndo desesperados de um lado para o outro, tentando faze-la voltar a respirar.

Sabendo que isso definitivamente não a impediria de repetir o ato caso ele perguntasse de novo, Tadashi decidiu esperar por um dos seus pais para esclarecer sua confusão.

O que deu certo, se não do jeito que imaginava.

Quando seu pai apareceu no dia seguinte, em vez da notícia de que eles estavam voltando para casa, era com uma mala pequena contendo mudas de roupa e artigos de higiene o suficiente para alguns dias, talvez semanas. Isso somado a breve expressão exausta que ele vestiu quando Tadashi perguntou o que estava acontecendo haviam sido o suficiente para ele entender, mesmo com seu pai sorrindo suavemente no momento seguinte e respondendo vagamente algo sobre trabalho e reformas.

Tia Cassandra agindo toda afobada, seu pai claramente mentindo... se ele se encontrasse com sua mãe, Tadashi apostaria um ano de mesada que ela estaria com olheiras. Tudo isso, ao mesmo tempo, só podiam significar uma coisa.

Hiro estava de volta.

Seu irmão havia voltado para casa.

Tadashi sentiu algo perto de ansiedade apertando seu peito ao pensar nisso, nessa possibilidade que preenchia uma esperança fervorosa de dois meses de espera. A de que seu irmão estava vivo e bem o suficiente para ficar em casa e não desmaiado em algum beco ou do outro lado do mundo, esquecendo da família que havia deixado para trás, ou mesmo m-

Um arrepio subiu pela sua espinha e ele rapidamente empurrou o pensamento para longe. Não tinha porque pensar nisso, porque não era verdade. Hiro estava bem.

Tadashi suspirou uma vez, tirando a caneca da boca. Observando as marcas de mordida no plástico, ele nada podia fazer contra a queimação que sentiu nos olhos além de piscar furiosamente, esfregando a manga contra as pálpebras. Vivo e bem... e provavelmente não querendo ter nada a ver com ele, como sempre.

Seu irmãozinho estúpido.

Ele fungou uma vez, duas, e então decidiu parar de estudar, fechando o caderno com um movimento um tanto brusco. A última coisa que precisava agora era começar a chorar porque o irmão que ele não via a dois meses provavelmente não iria querer sequer ver sua cara, muito menos falar consigo, e acabar sendo pego por tia Cass que não precisaria pensar muito para adivinhar o motivo – e as coisas entre Hiro e tia Cass já estavam tensas o suficiente, ele não queria piorar ainda mais.

Ele precisava de distrações.

Com um aceno decisivo, Tadashi se ergueu da cadeira e se dirigiu para a porta, imaginando que sua tia provavelmente não negaria ajuda no café. Era sábado. A casa provavelmente estava cheia.

Porém, no caminho escada abaixo, entre uma passada e outra de repente Mochi surgiu de algum ponto cego e disparou por entre suas pernas e Tadashi automaticamente tentou desviar, um grito de alarmo explodindo pelo seu peito. Ele mal havia conseguido se segurar no corrimão, seu coração quase na boca, quando repentinamente um novo susto na forma da sua amiga Gogo que deveria estar em outro país surgiu, subindo os degraus acima gritando a plenos pulmões e ele automaticamente gritou de volta, completamente confuso. "Gogo!"

Viu a menina registrar sua presença, olhos escuros arregalando em susto. Ela freou com tudo, um degrau de colidir consigo, e ele chegou a sentir o vento do movimento soprando pelo seu rosto.

Seu coração era como um tambor onde estava preso na sua garganta.

"Tadashi!" Ela exclamou com um pequeno sorriso, completamente imperturbada com sua entrada, e prosseguiu em soca-lo com tudo no ombro, o que prontamente o lançou alguns centímetros para trás.

“Ai-! Gogo!”

Ignorando seu protesto de honesta dor, ela continuou. “É bom te ver, cara. Tenho um monte de coisa pra contar pra você e pro resto da galera. Eu falei com a Honey antes de vir pra cá e ela disse pra fazer uma reunião na casa dela hoje à tarde com todo mundo e a gente totalmente devia ir.”

Esfregando o local onde havia sido socado (provavelmente teria um hematoma ali amanhã), Tadashi franziu o cenho de leve, sentindo algo inquietantemente desconfortável no seu peito. Havia confusão demais e uma combinação do seu dia frustrante e tudo o que havia acontecido naquela semana que o impedia de sentir a alegria devida com o retorno da sua melhor amiga, mesmo depois de quase um mês sem vê-la, de modo que seu tom acabou saindo quase acusador quando indagou. "O que você está fazendo aqui?"

O meio sorriso surgindo no rosto da menina de repente parou no meio do caminho e deu caminho para uma expressão de uma sobrancelha erguida, completada com braços cruzados. “Olá pra você também, bundão.” Replicou ácida e Tadashi sabia que havia irritado a amiga.

Corou em vergonha da sua atitude e sua mão massageando o braço subiu para sua nuca num gesto sem graça. Gogo não tinha culpa pelo seu mal humor, e ele estava sendo um completo imbecil descontando nela, especialmente quando ela havia vindo visita-lo. “Eu quero dizer- eu achei que você voltava só amanhã.”

“Bom, para sua informação tivemos de voltar hoje porque o cabeça de bagre do meu padrasto marcou a data errada da viagem de volta. E como ainda é sábado, eles me liberaram para sair.”

“Oh... como você sabia que eu estava aqui?”

Teve um flash de uma expressão estranha no rosto da menina, mas rápido como veio ela se foi e Tadashi ficou se perguntando se havia sido de verdade. Ela passou uma das mãos com luvas sem dedos pelo cabelo, dessa vez com mechas rosas, e respondeu casualmente. “Hmn, seu pai me disse.”

“Ah, ok.” Ele deixou os olhos caírem no chão entre os dois. Houve uma pausa estranha, carregada de um constrangimento que Tadashi não se lembrava de ter jamais sentindo com Gogo, e ele sabia que era culpa dele.

Respirou fundo devagar e ignorando a pedra segurando seu humor firmemente no chão, tentou o seu máximo para sorrir para sua amiga. “Bem-vinda de volta, Gogo.”

A menina virou de leve o rosto, encarando-o parcialmente pelo canto dos olhos e ele sabia que ela estava avaliando seu pedido de desculpas não verbalizado. Ele sentiu músculos que não tinha notado que estavam tensos relaxarem quando no momento seguinte ela revirou os olhos e descruzou os braços. “Que seja, nerd.”

Tadashi riu de leve, entre o alivio e o início do que ele reconheceu como animação. Desencostando-se da parede, ele estava se preparando para aceitar o convite da reunião quando um alto miado soou de algum ponto do andar de cima, parecendo incrivelmente dessatisfeito, e o fez olhar para trás em reflexo. Mochi não estava em nenhum lugar à vista. “A propósito, por que você estava correndo atrás do Mochi? Ele quase me derrubou tentando fugir de você.”

Gogo olhou em direção ao miado com os lábios torcidos para baixo. “Eu ainda vou ter a minha vingança.”

Tadashi piscou para o tom da menina, pego desprevenido pelo seu tom intensamente sombrio até se lembrar e isso arrancar uma gargalhada surpresa de si. "Isso é por causa das panquecas do ano passado?! Gogo!”

Ela faz uma careta irritada em sua direção, os punhos cerrados erguidos num gesto indignado. “Eram panquecas perfeitamente boas e ele as destruiu! Destruiu! E pode ter certeza que esse saco de pelos vai pegar pelos seus crimes, nem que seja a última coisa que eu faça!”

Ele voltou a cair contra a parede diante a repentina falta de força que o atingiu, todas as suas energias focadas em tentar respirar pelos risos explodindo do seu peito. Haviam lágrimas nos seus olhos. “Oh, deuses, m-minha barriga! Eu não consigo respirar!” Arquejou, abraçando seu próprio tronco.

“Não tem graça, Tadashi! É minha honra em jogo aqui!”

“Gogo, é só um gato e você ganhou novas panquecas depois que ele derrubou as suas no chão. E você nem gosta tanto assim de panquecas!”

“Essa não é a questão!”

Afundou o rosto nas mãos, limpando ambos os olhos com a base das suas palmas, enquanto os risos diminuíam. Após um momento, finalmente foi capaz de puxar uma longa respiração de alivio, sentindo aquele momento se cristalizando dentro do seu peito e ao redor daquela nuvem negra que o vinha assombrando a dias. Ele se sentia melhor, um sorriso ainda nos seus lábios.

Não era o suficiente, ele tinha certeza, e com certeza era uma questão de tempo até a sensação de antes voltar, mas pelo menos naquele exato momento, Tadashi não se sentia tão para baixo.

Enxugando os cantos dos olhos, ele se virou para amiga com um sorriso. “Se tia Cass continuar alimentando-o do jeito que ela está, tenho certeza que eventualmente você vai conseguir alcança-lo.” Disse.

“Humpf, eu consigo pega-lo no auge dele. Não preciso do inimigo enfraquecido.”

Foi a vez de Tadashi de revirar os olhos, humorado. Aprimorando-se mais uma vez, desceu o degrau ao lado da amiga e a cutucou na lateral. “Podemos ir para a casa da Honey agora, se você quiser.” Ofereceu.

Gogo piscou surpresa para si. “Sério? Você não tem, tipo, nenhum dever super adiantado que quer fazer?”

Deu de ombros levemente. O lembrete do seu estudo paralisado e o motivo disso fez aquele novo bom humor cair um pouco, como havia previsto, mas ele faz um esforço para ignorar isso e sorrir de novo. "Nah... não estou conseguindo me concentrar o suficiente. Prefiro sair com você e a galera.”

“Tadashi Hamada não conseguindo estudar? Huh, existe mesmo uma primeira vez pra tudo.”

“Haha...” Ele replicou, sarcástico, sorrindo com a provocação. No final, entretanto, sua expressão voltou a cair mesmo contra sua vontade e ele deixou seus olhos caírem no chão entre os dois, suspirando de leve. “É que- esses últimos dias tem havido alguns problemas em casa e eu não... não estou conseguindo pensar-”

"Espera, você sabe?"

Olhou para cima confuso ao ouvir o tom horrorizado da amiga, prestes a perguntar 'sabe o que?'. Até ver a expressão cheia de aversão da menina com os lábios puxados para baixo numa careta e o modo como todo o seu corpo estava tenso e seus punhos cerrados dos seus lados. Era uma pose de alerta, que ela assumia quando estava prestes a entrar numa briga, seja física ou verbal.

Houve então um click dentro do seu cérebro, um encaixar de peças metafóricos que o fez avançar um passo quase sem pensar. "Você viu ele? Você viu, não viu?"

Gogo pareceu compreender seu erro imediatamente – sua expressão indo rapidamente de confusa para de entendimento para completa indignação e horror – e o mesmo passo que ele deu para frente ela deu para trás, descendo um degrau. Ela afundou o rosto nas mãos com um alto grunhido, gemendo entre os dedos. "Meu Deus, como sou idiota!"

Tadashi ignorou tudo isso e cobriu a distância entre os dois rapidamente, agarrando sua amiga pelos ombros. Havia algo ansioso no seu peito, borbulhando feito água fervendo que parecia roubar seu ar. "Ele está bem? Você viu se ele estava machucado ou- ou doente? Ele disse alguma coisa de onde ele estava? O que aconteceu com ele? Onde-"

"Não, não, não. Não." Gogo ergueu seus braços entre os deles e com um movimento brusco, empurrou ambas as suas mãos para longe dela. A repentina falta de apoio o fez cambalear para frente com um chio de alarmo e a menina aproveitou o movimento para agarrar a parte da frente da sua jaqueta e puxa-lo para perto e para cima, já que ela era uns cinco centímetros mais alta.

Tadashi arregalou os olhos para a expressão puta da amiga, fuzilando-o com os olhos. "Gogo-?"

"Não. Você fica quieto. Eu não quero ouvir mais nenhuma pergunta sobre o imbecil do seu irmão, a não que seja para perguntar se ele continua sendo um enorme babaca. Cuja a resposta é, a propósito, sim. Hiro ainda é um gigantesco babaca, ele nasceu sendo um gigantesco babaca e ele vai morrer sendo um gigantesco babaca, e pelo amor dos deuses, se eu te ouvir perdendo mais um segundo da sua vida se preocupando com aquele idiota, eu juro por Deus que queimo todos os seus quadrinhos com gasolina não ecológica, que não vai somente destruir totalmente sua coleção nerd como vai abrir um enorme buraco na camada de ozônio que vai derreter ainda mais o polo norte ou qualquer que seja a merda que você tá sempre falando, e a culpa vai ser toda sua!"

Como uma pontuação no final do seu discurso, Gogo sacudiu-o agressivamente uma vez antes de empurra-lo não inteiramente delicada e Tadashi cambaleou dois degraus acima, quase perdendo o equilíbrio. Quando ele finalmente parou, ele encarou a amiga em algo relativo a choque, pego de surpresa pela intensidade da raiva dela. "Mas-"

"Não. Sem 'mas', não há nenhum 'mas' aqui." Ela o interrompeu, fazendo um movimento de corte com a mão no ar entre os dois antes de espetar o indicador na sua direção. "Você vai vir comigo até a casa da Honey e vamos chamar Wasabi e Fred e vamos jogar vídeo games e comer besteira e você vai se divertir e esquecer qualquer coisa relacionado ao babaca do Hiro, entendeu?"

"Pare de chama-lo assim!"

"Pare de defende-lo, Tadashi!"

Seus punhos se cerram sozinhos e Tadashi sentiu uma onda de- não de raiva, de- de frustração, de pura e inalterável frustração, preenchendo-o. Desaguando dentro do seu peito como chama líquida até roubar todo espaço e subir pela sua garganta, ácido, queimando a carne que pareceu encolher, antes de continuar o caminho até os nervos atrás dos seus olhos, queimando-os Quando ele finalmente conseguiu falar, sua visão estava embaçada. "Eu só quero saber! Ninguém me diz nada, só ficam mentindo ou fingindo que não me ouviram! Eu só quero saber o que está acontecendo!" Sua voz vacilou diversas vezes e ele odiou como já estava soando como um choro.

Tadashi não ligava em chorar, mas de alguma forma daquela vez parecia como uma derrota. Uma admissão de algo.

Gogo cerrou os dentes para si, parecendo frustrada também. "Ninguém te disse nada porque todo mundo sabia que você ia ficar desse jeito! Pare com isso, Tadashi! Ele não merece uma grama da sua preocupação! Quantas vezes ele já te machucou e machucou a sua família? Alguma vez ele sequer pediu desculpas? Pareceu arrependido? Culpado?"

Havia um gosto amargo na sua boca que ele não conseguia engolir. "Ele não- as coisas não são tão simples assim, Gogo! Ele não tinha como- não depois da briga com o papai-!"

Tadashi se interrompeu ao sentir ser agarrado pelos braços com força e automaticamente ergueu os olhos para o rosto da amiga, dessa vez mais próximo. Gogo não parecia tão frustrada como confusa, encarando-o numa incompreensão quase desesperada. "Por que você o defende depois de tudo o que ele já fez? Depois do que ele fez dois anos atrás? Você quase morreu, Tadashi."

"Não foi-"

"Não se atreva a dizer que a culpa não foi dele! Ele que te levou naquela fábrica, se não tivesse sido pelo seu pai-"

Numa imitação do que Gogo havia feito minutos atrás, Tadashi soltou-se dela rispidamente e se afastou, sentindo-se sufocado de repente. "Eu já disse que não foi desse jeito! Hiro- ele não sabia que eles iam trazer a arma, okay? E mesmo se ele tivesse sabido, ele não ia- ele jamais-"

"Ele te levou lá, não levou? Ele mentiu e te levou lá e você-"

Nesse momento algo se arrebentou dentro de si, feito um elástico forçado a conter mais do que podia, e de repente o mundo estava inundado sem contornos definidos com as lágrimas finalmente caindo depois de dias ameaçando. E a raiva que antes queimava por sua pele pareceu evaporar num gás tóxico dentro dos seus pulmões, feito de algo mais desesperado, mais irracionalmente em pânico, como se não fosse mais uma questão de revidar e sim de defender. Defender- defender o que? O que ele podia defender? Era só negação a essa altura. Todo mundo sabia a verdade.

A miséria finalmente pareceu vencer a batalha, a miséria que sentia desde o momento que se tocou que seu irmão havia voltado e que a primeira coisa que todo mundo havia decidido que tinha que ser feito era assegurar que os dois não se encontrassem.

Porque todo mundo sabia o quanto Hiro o odiava.

Porque as coisas sempre eram melhores se Tadashi ficasse longe do caminho do seu irmão.

O incidente da fábrica dois anos atrás era uma culminação de tudo isso, mais dolorosamente humilhante porque ele nunca havia compreendido o que exatamente ele havia feito para fazer seu irmão detesta-lo tanto e por isso mesmo que quando surgiu a possibilidade de mudar isso ele se agarrou a ela e ignorou todos os seus instintos de preservação, toda sua experiência envolvendo Hiro. E o resultado havia sido a total separação da sua família.

E as palavras de Gogo naquele momento eram como cutucadas de sal naquela ferida longe de ter cicatrizado, e era doloroso e vergonhoso e ergueram o pânico, o desespero em se proteger e todo pensamento racional voou pela janela.

Dessa vez, em vez de simplesmente afastar, ele estapeou com força as mãos o segurando. "Cala a boca, Gogo, você não sabe de nada!"

Gogo imediatamente se calou, recuando com as mãos e uma expressão magoada que durou um único segundo de choque e arrependimento para os dois. Mas antes que ele pudesse dizer algo, talvez pedir desculpas, a magoa logo foi substituída por raiva avassaladora e as mãos abertas vulneravelmente se fecharam em punhos afiados. "Então tá! Fique preso no seu mundinho idiota, achando que magicamente um dia Hiro vai subitamente mudar e querer ser seu irmão enquanto você ignora tudo de errado que ele faz! Vê se eu me importo!"

O arrependimento pareceu sumir feito vapor diante essas palavras e Tadashi voltou a gritar de volta, tão furioso e desesperado quanto antes. "Ele é meu irmão!"

"Talvez ele seja seu irmão, mas você com certeza não é irmão dele!"

A frase chicoteia no ar feito um tiro de revolver, o alto timbre dominando o ambiente que repentinamente perdeu todo som como se todo o local tivesse decidido puxar o ar ao mesmo tempo, prendendo a respiração num ímpeto. Um único momento de pausa. Estática.

Os olhos de Gogo se arregalaram no momento seguinte, límpidos da raiva de antes.

Não eram um exato reflexo dos de Tadashi, mas algo próximo, perdido na semelhança pelo modo como todo o sangue pareceu sumir do rosto do menino, a boca ligeiramente aberta num gesto de desprevenida vulnerabilidade.

E há então um arquejo chocado vindo de algum ponto da frente da sala, anunciando a presença de Cassandra pela porta com uma expressão perdida entre alarmo e a preocupação, a mão pousada na frente da boca como para conter a meia frase irritada que estivera um segundo antes prestes a fazer. Um bravo ‘Mas que gritaria é essa?’, que perdeu o significado no momento que ela ouviu a discussão e o que ela implicava.

O som pareceu quebrar a pausa, como pedra jogada contra vidro.

Os cacos se cristalizam no horror de Gogo e na sua mão esticando para segurar o amigo e no fato que quando ela o fez, Tadashi já estava virando a esquina da escada sem um segundo olhar para trás.

"Tadashi, espera-!"

"Tadashi!"

A porta e seu alto estrondo contra o batente parecem pontuar isso, tremendo o chão da casa.

Hiro espirrou e foi tão violentamente e tão repentinamente que ele quase acertou a testa contra a pia.

“Wow.” Fungou uma vez e limpou por hábito o nariz com o pulso, já que não tinha nada. Sentia que podia mapear todo seu sistema respiratório depois dessa. “Jesus. Ainda bem que não achei minha escova ainda.” Murmurou para si mesmo, encarando o copo com só duas escovas. Morrer por auto empalamento com uma escova seria simplesmente patético.

Não que morrer esmagado por um carro fosse tão melhor, mas tinha algum nível de dignidade maior, mesmo que ele não conseguisse banir a imagem de alguém tendo que raspar seu corpo da calçada, como se faz com um mosquito esmagado no para-brisa.

Urgh.

Empurrando os pensamentos desagradáveis para o lado, Hiro voltou-se para o espelho do banheiro e o abriu, revelando uma sequência de prateleiras contendo uma variedade de cremes, remédios e outros produtos que ele não se incomodou em tentar identificar. Uma rápida vasculhada revelou que ali, também, não havia nenhuma outra escova. Fechou a portinha com um grunhido frustrado.

Por um lado, só duas escovas podia indicar que seu eu alternativo possuía um senso de higiene e a havia levado consigo quando fugira de casa, dois meses atrás. O que, hey, seria a primeira coisa boa que ele podia dizer do cara até agora. Por outro, havia uma grande possibilidade que ela havia sido simplesmente jogada fora pela sua família após o “seu” sumiço, porque ninguém queria um lembrete da sua existência e isso era um outro gigantesco prato de assuntos totalmente desagradáveis.

Hiro esfregou a testa furiosamente. Ele só queria escovar os dentes!

Ia fazer quase uma semana que ele havia chegado e embora esse não fosse de longe seu recorde de maior tempo sem tomar banho (algo em torno de números duplos, e vamos deixar o assunto morrer por aqui), era certamente seu maior tempo sem escovar os dentes e mesmo Hiro tinha alguns limites que ele não ultrapassava na higiene pessoal. Pasta de dente com data de validade duvidosa achada atrás da mesa e seu indicador só podiam ir até certo ponto, ele imaginava. Não ajudava que o gosto do seu próprio bafo perpetuava desde o dia três.

Ele se virou para o pequeno armário atrás da porta e iniciou sua procura pelo precioso item ali também, remexendo entre estoques de papel higiênico e toalhas de banho dobradas. Achou eventualmente uma pequena caixa de madeira trançada e a visão de pacotes fechados pelos vãos lhe era grandemente promissora, de modo que a puxou para perto e a abriu num ímpeto. “Oh, yeah.” Sorriu. Havia pacotes de pastas de dentes e escovas fechados e novinhos para uso e Hiro sente uma breve sensação de vitória, mão pairando sobre uma escova cor-de-rosa para agarrar seu prêmio.

Até que seus olhos inadvertidamente pousam sobre uma inócua figura no meio das caixas.

Um pato de borracha.

Sua mão congelou no ar como se pega por uma armadilha, as mandíbulas de ferro imaginarias se fechando sobre seus dedos e os impedindo de continuar sua trajetória. Ele encarou, mente em completo branco, por um momento de pura perplexidade.

Um pato de borracha. Amarelo. Feio. Normal. Daqueles que se pode comprar em qualquer loja de bugiganga por menos de um real. Hiro hesitou por um momento antes de desviar o alvo da sua mão e agarrar o pequeno objeto quase que cautelosamente, pinçado entre seu indicador e polegar como algo que pudesse morde-lo do contrário. A textura era ordinária e quando ele apertou, o irritante squeak! esperado saiu, quase pateticamente.

Sua mente traz ociosamente uma cena de Toy Story, com aquele pinguim de borracha com o apito quebrado. ‘Meu apito ainda está quebrado.’

Uma careta involuntariamente retorceu seus lábios e ele apertou o pato de novo, buscando um som melhor. O mesmo guincho patético de antes se repetiu, esvaecendo-se exatamente como o brinquedo do filme numa expiração sem ar. “Brinquedo quebrado.” Murmurou, observando o pato pousado sobre sua palma por um momento.

Era meio ridículo se sentir daquele jeito, pensar daquele jeito por causa de um pato de borracha, mas Hiro se sentiu e pensou de qualquer jeito, porque não era como se ele tivesse algum tipo de controle sobre seu próprio cérebro. Ele o lembrou sem nenhuma contribuição sua que ele – Hiro – odiava brinquedos com apito com quase selvageria desde que tinha três e viu Mochi engasgando em um por meio minuto, honestamente achando que estava prestes a ver o gato morrer sufocado por causa de um dos seus brinquedos. Cass não parecia ter nenhuma opinião já que era uma adulta desde o início da sua vida e Tadashi já era velho demais mesmo nas suas memórias mais antigas para ter um brinquedo desse tipo.

Resumidamente, sua mente pareceu falar quase que pomposamente, na minha casa não havia patos de borracha desde nunca.

Franziu o cenho devagar e esmagou o pato entre os dedos, só deixando a cabeça de fora, e o trouxe para perto do seu rosto. “De quem você é?”

A única resposta a sua acusação é o final do chiado do apito quebrado.

Era quase... frustrante. Não o fato do pato não o ter respondido (porque isso certamente teria sido aterrorizante em muitos sentidos), mas sim o fato de que ele quase literalmente era o único para o qual ele podia perguntar. Qualquer outro indivíduo dentro daquela casa provavelmente não aceitaria sua pergunta honestamente.

Não só da casa. Ele de repente se lembra de hoje de manhã e a visão inquietante de uma versão em miniatura de Gogo o encarando de punhos erguidos e expressão azeda, parecendo inteiramente e honestamente aterrorizada (o que era simplesmente-... errado). Era perturbador, não só porque Hiro quase não a havia reconhecido, mas sim também porque ele sequer havia cogitado a ideia de que haveria outras mudanças tão drásticas nas pessoas da sua vida naquela realidade além de Tadashi. Ele mal havia conseguido conciliar a noção de que seu irmão mais velho morto era ali seu irmão mais novo vivo, agora teria também que aceitar que aqui uma das suas melhores amigas mal alcançava seu peito?

Isso podia significar que todos os outros membros do Big Hero 6 eram crianças? Pessoas da sua idade no seu mundo haviam trocado de lugar com as pessoas da idade de Tadashi aqui? E por que seus pais estavam (aparentemente) iguais se fosse esse o caso? Quais eram as regras das diferenças? Tia Cass estaria diferente aqui também?

De repente veio a imagem de uma mulher loira de dois metros de altura mordendo uma rosquinha e exclamando de boca cheia na sua direção, ‘É isso que vocês fazem comigo!’.

A imagem fez sua cabeça doer e ele rapidamente a empurrou para longe.

Suspirou e então deixou sua mão relaxar, abrindo a palma com o pato dentro. O animal falso pareceu encara-lo descontente da sua pose toda torta, seu pequeno corpo amarelo amassado e murcho tentando lentamente voltar ao estado normal.

Hiro pensou, subitamente cansado, que no final não fazia muita diferença. Nem seus pais e nem Gogo pareceram dispostos a conversar consigo por mais do que sua presença na sala parecia exigir como necessário – algo resumido num ríspido ‘O que você está fazendo aqui?’. E, francamente, mesmo se alguém tentasse Hiro estava pouco a pouco se tornando exausto de lidar com a reação certa que viria a seguir.

Fosse dos outros, fosse... de si mesmo.

O modo como, por um inteiro segundo, ele pareceu não só agir como pareceu ser o outro Hiro – o Hiro daquela dimensão, o Hiro cuzão, o Hiro eu-não-quero-pensar-que-eu-poderia-ser-ele Hiro – ainda o assombrava feito uma segunda sombra, parecendo estar escondida atrás de cada movimento seu e sumindo no momento em que tentava olhar direito. Ele não tinha notado antes-... antes de falar com seu pai, mas depois era quase impossível não se sentir inteiramente consciente disso o tempo inteiro.

Era- era algo, no fundo da sua mente de um modo quase literal, como se ele pudesse roçar naquilo se levantasse sua mão para nuca.

Algo raivoso, irritado o tempo todo. Uma sensação de uma bomba quase na beirada de explodir.

Estava ali desde a prisão, desde que havia recebido as memórias do Hiro daquele mundo. Ou o que ele supôs que fossem memórias. Agora ele não tinha ideia do que classificar aquilo e isso trazia um nó terrível no seu estomago, porque o que é que fosse o estava afetando 24 horas por dia e ele não tinha armas contra aquilo além de tentar se vigiar constantemente para evitar que falasse ou fizesse algo não-... não-ele.

Hiro encarou o pato, agora já inteiramente inflado novamente, parecendo examina-lo de volta de modo quase desafiador.

“Você tem sorte, sabia?” Falou. “Pelo menos você tem história aqui. Já eu sou basicamente um substituto de última hora, com apenas um manual randomizado dentro do meu cérebro pra me explicar como sobreviver por aqui.”

O pato, novamente, não disse nada.

“Talvez nem seja um manual! Quero dizer, existe também a possibilidade que seja o antigo dono dessa vida tentando me possuir ou me fazer agir feito o babaca que ele era, ou talvez as memórias estejam me corrompendo devagar e eu esteja-”

Hiro interrompeu-se, parte porque a compreensão de que ele estava desabafando literalmente com um pato de borracha velho o atingiu embaraçosamente e parte porque ele realmente, realmente não queria terminar aquele pensamento, fosse em voz alto ou dentro da sua cabeça.

Deixou sua mão cair no seu colo e relaxou o pescoço para frente, batendo a testa de leve contra a porta do armário.

Pela primeira vez desde que havia parado naquele lugar, Hiro se deixou pensar na terrível saudade construindo-se dentro de si e olhou novamente para o pato de plástico, passando o dedo de leve no material. Não podia evitar de achar que vinil era muito mais agradável.

“Você realmente faz falta, Baymax.”

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.