Quando Ravena retomou a consciência ainda pode ouvir as ultimas palavras do que parecia ser um cântico. Seu corpo estava intacto, pode constatar. Não sentia absolutamente nenhuma dor, ou melhor, não sentia nada. Não pode sentir um temor se apoderar de seu corpo, não sentiu raiva, tranquilidade, tristeza... A única coisa que sentia era uma sensação avassaladora de vazio.

Virou-se para trás e constatou a presença do Irmão Sangue, como temia... Ou não temia mais, já não sabia o que podia entender como temor, só uma vaga lembrança que lhe pareceu desagradável. Olhou-o friamente no fundo de seus olhos sem desfiar o olhar nem por um súbito instante, mas a frieza de seu olhar parecia deixa-lo ainda mais satisfeito. Ravena não sentiu raiva daquilo.

Olhou para Tara, procurando ter certeza de que suas ultimas suspeitas eram reais e a garota pareceu ter percebido pois deu outro tapa em Garfield. A explosão de ódio não veio, na verdade Ravena não sentiu absolutamente nada, mas ainda assim se lembrou de sua ameaça.

“Não ouse encostar novamente nele” suas próprias palavras resoaram por sua cabeça como um eco estranho e impessoal. Parecia que havia dito aquilo a séculos, as palavras eram tão distantes e tão frias como as memórias e pensamentos que passavam por sua mente no momento. Sabia que algo devia ser feito, não podia deixar que aquelas palavras jazessem vazias como soavam agora em sua mente, mas o que poderia fazer? Se suas suspeitas realmente fosse reais ela era tão inútil quanto um fósforo aceso em meio a uma tempestade.

–“Não ouse encostar nele” – Tara Markov mastigou aquelas palavras como se cada uma tivesse um saboroso e exótico gosto.

A empata continuou encarando-a com a expressão impassível e começou a se levantar lentamente, dessa vez prestando mais atenção a qualquer movimento de Sangue. Aquela sensação de vazio a corroia por dentro, uma sensação cada vez mais evidente de ter algo faltando em cada brecha de seu ser. Seus pensamentos corriam mais claros e só resaltando para a empata que suas emoções não estavam ali para turva-los, algo que poderia ser considerado desesperador se o desespero, é claro, estivesse presente.

Olhou de relance para Garfield que se encontrava tão impotente quanto ela, e nem ao menos podia partilhar o sentimento do rapaz. Sem desespero, sem dor, sem medo... Somente a sensação de fim iminente e a consciência da responsabilidade que tinha sobre aquilo tudo. Ah, aquele lancinante e insistente sentimento de responsabilidade que... Sentimento? Será que... Responsabilidade, tão fria, calculista e realista, não podia ser um sentimento. Não podia imaginar sentimento nenhum que fosse tão racio... Racional? Lembrou-se das inúmeras vezes que se sentira responsável por Trigon. Era sua culpa ter nascido? Ela nunca quis ser a Gema, mas era filha de Trigon mesmo assim...

– ...como se sente sobre isso, Rae? – Tara sorriu maliciosamente apesar de saber que suas provocações não atingiriam em nada Ravena – Aliais, posso te chamar de Rae, né? Tenho certeza que você não ficou chateada por eu acertar o verdinho aqui, não é?

Olhando de Tara para Gar com uma indiferença mórbida, Ravena continuou parada. Atônito com a reação da empata, Garfield ficou encarando-a, boquiaberto. É certo que Ravena já se mostrara indiferente em muitas ocasiões e a muitas coisas, mas Gar sempre soube que por baixo de muitas camadas dessa mascara de apatiahavia um sentimento qualquer escondido. Dessa vez a indiferença era real.

‘Chateada?’ pensou a empata consigo mesma. Não havia ficado chateada, nem irritada ou muito menos feliz e Tara sabia muito bem disso. Agora, sem as emoções para interferir, todos os pensamentos corriam rápidos e frios como um córrego depois da chuva. Agora era visível para ela que a ironia de Terra era na verdade uma mascara, assim como tantas que ela própria já havia usado. Havia uma crescente ansiedade em Tara que, apesar de ser empata, Ravena não havia sentido antes.

Cansada de decifrar Tara, Ravena virou-se para Sangue, imperturbável. Qualquer idiota perceberia que Sebastian estava em êxtase com a ideia de que seu mestre logo estaria postado diante dele para recompensa-lo, ou simplesmente para deixar a Irmandade adora-lo ainda mais. Se pudesse, Ravena estaria sentindo nojo daquele ser repulsivo que tinha seu pai como um deus. O que tinha de divino em Trigon, afinal?

Então era isso? Pai e filha reunidos novamente. Reinando, nos ideais de seu pai, lado a lado, como as criaturas superiores que eram, nos destroços da Terra. Não. Não podia deixar isso acontecer.

Olhou de repente para Gar, desprotegido como ela nunca o vira antes mas, ainda assim, podia ver em seu rosto que estava lutando para achar uma saída. Seus olhos se cruzaram por breves segundos e ela pode ver o medo estampado no olhar de Gar. Soube então que ele se sentia responsável também, que aquele olhar era um apelo mudo para que ela fosse embora, para bem longe do perigo.

Ravena permaneceu imóvel mais alguns curtos segundos calculando todo tempo que poderia ter até que percebeu que, com certeza, não era muito.

‘Não tem outra saída... É agora ou nunca’ pensou correndo na direção de Garfield.

Terra e Irmão Sangue foram pegos de surpresa e demoraram um pouco para prever as intenções da empata. Quando se deram conta que tinham que agir Ravena já estava segurando Gar em um abraço sem sentimento e, num piscar de olhos, já não estavam mais ali.

Markov piscou duas vezes os olhos e virou-se, furiosa, para Sebastian, que por sua vez continuou a olhar para o vazio onde os dois titãs estiveram a pouco.

–Você tinha dito que essa droga de encantamento ia ferrar com as emoções dela! – Esbravejou Tara aos sete ventos.

–E é isso que ele faz... – Sangue disse, quase inaudível e com ódio na voz – De todo modo, ela não pode ter ido muito longe... Você viu como ela esta fraca. Temos que procura-los – Falou Sebastian, um pouco mais alto dessa vez.

–“Temos que procura-la”? Nem vem... Já cumpri minha parte! To indo emb...

–Você acha mesmo que Trigon vai te dar o que você quer se você não lhe der a Gema? – Perguntou Sebastian em tom de provocação.

Tara, que já havia se virado para ir embora, parou, de punhos cerrados.

–Certo. Eu vou por ali – Disse o rapaz apontando para o lado oposto ao barracão que Tara fez de “covil” – E você por lá – A ordem pareceu deixar Terra ainda mais irritada.

Não muito longe, no barracão onde Gar esteve a poucas horas, Ravena tentava recuperar o fôlego enquanto ouvia atentamente os dois antagonistas discutirem. Olhou para o lado, ao fim da discussão, a fim de checar se realmente tinha levado Gar consigo quando se teleportou. Exceto pela cara de espanto, ele estava bem.