– Pode me soltar. Agora.

Empurra-o com a telecinese cuidando para que pense que é um movimento involuntário.

– Ah... Desculpa. – ignora a sensação de “puxão” acreditando que é o vento. - Acho que nunca te vi por aqui, é turista? Está de férias?

O modo como fala é carregado de um sotaque britânico e um charme urbano. Suas íris irradiam intenções caçadoras, que são camufladas com a naturalidade com que o sorriso pinta-se sobre seus lábios. Ligeiramente passa a mão na cintura dela, conduzindo-a para a mesa dos coquetéis.

– Cheguei hoje – responde, resistindo brevemente ao toque do garoto. Que mal teria em se divertir um pouco com o humano? Possuía muito tempo para matar até que Krad volte com suas explicações.

Das fileiras elaboradas de taças com coquetéis de várias cores, pega a taça com um líquido rosa. Já havia visto igual na segunda cidade que o companheiro a levara e se lembrou de ter gostado. Beberica, o sabor era suave com pouco álcool. Enquanto o loiro escolhe uma taça verde com rodela de limão.

– Então... – ele resolve iniciar a conversa, caprichando em cada sorriso, o que atraía o olhar de algumas esposas de magnatas. – De onde você veio?

– De muitos lugares.

– Viajada? Legal. Viaja sozinha? – uma cartada para descobrir se tinha namorado sempre eficaz.

– Com o meu pai. – procura conter o riso.

Krad ficaria furioso se soubesse. Mas o intuito era se divertir. O rapaz continuaria flertando com as perguntas e ela poderia responder qualquer coisa. Não era obrigada a falar a verdade. A mente dele também não mostrava nenhuma séria intenção. Caso se torne desinteressante bastava apagar suas memórias.

– Minha vez. Será que pode matar uma curiosidade?

– Diga e eu mato.

Recosta na cadeira. O sol bate apenas na metade do rosto, cintila na íris verde selvagem e clareia o sorriso branco, criando a imagem digna da capa de uma revista.

– Sabe o que aconteceu no quarto do quinto andar? Sobre um... assassinato?

– Sorte sua, investiguei isso há um mês. – dá uma piscadinha. – Morte de m cara qualquer, só que no meio da briga de duas máfias. Estava no lugar errado, na hora errada. Acontece.

Fala como se já tivesse visto acontecer inúmeras vezes. Pela quantidade de mortos só em Sant’Anna, talvez fosse verdade.

– Gosta de mistérios? – recolhe outra taça verde.

– Romances policiais. Com um pouco de fantasia. – isso era verdade. Era praticamente o resumo da vida dela.

Ele a fita intensamente, tanto que a certa altura a médium foge seu olhar violeta para a piscina. O rapaz sorri vitorioso.

– Gostei de você. – e vira a bebida de uma vez. Levanta-se, meche no bolso da bermuda, acha uma caixa de pastilhas de hortelã e leva uma à boca. Toma Fay pela mão. – Vem comigo.

Entram de volta ao hotel. Atravessam alguns corredores, passam por três portas até pararem na dos itens de limpeza.

– O que tem em mente?

Nunca precisou fazer tal pergunta, entretanto, após a cachoeira de álcool que ele virou no estômago, sua mente estava muito nebulosa. Fay tinha dificuldade em ler pensamentos dos bêbados. Até de um vampiro era mais fácil. O humano não estava definitivamente alcoolizado, não captava nenhum rabo das segundas intenções, mas não conseguia a certeza de que ele agia com sinceridade.

– Esse hotel atrai muitos mafiosos, alguns procurados em vários estados até... – explica, fazendo a menina engolir em seco; LA’RÚBIA já tinha os olhos da polícia. – Por isso eles construíram algumas salas secretas.

Bate com a ponta dos dedos à extremidade da porta, em ordem e em vários locais ao redor da fechadura, como um código secreto. E a porta é destrancada.

– Legal. – nunca havia visto alguém destrancar a porta sem chave, ou grampo, ou cartão de crédito. Embora ainda prefira o seu modo: duas piscadas e Pronto!

– Truque simples. É questão de prática. – vangloria-se da habilidade.

– Então vive arrombando portas? – questiona um pouco interessada. Um pouco.

O humano contempla-a novamente. Responde à pergunta com apenas um sorriso de canto. E a leva pela escadaria camuflada com vassouras.

Sobem os degraus de cimento, a iluminação é fraca e discreta. Chegam a uma saleta. Ele tateia a parede e, encontrando o interruptor, acende o lustre.

É uma Sala de Jogos. Há uma grande mesa retangular de sinuca coberta com forro verde de pôquer. Estão expostas estantes de livros antigos e cabeças de elefantes e veados empalados. No chão, espalhados estão os trilhos de trens de brinquedo, tacos de golfes, baralhos e tabuleiros de várias cores e tamanhos. Nas paredes estão pendurados vários círculos de alvos para dardo.

– Incrível... – murmura.

– Sim. Para qualquer jogo que imaginar. – a voz é carregada com uma sugestão.

Fay circunda a mesa de sinuca, passando os dedos no forro, enquanto sua saia verde menta movimenta-se com suaves balanços. Ele a acompanha com o olhar intenso de antes.

– O que sugere?

– Dardos.

Ela posiciona-se ao lado de um dos alvos, o azul escuro, com o centro bem pequeno pintado de vermelho. E como adorava desafiar: – Duvido que acerte o centro.

O loiro levanta o rosto e mostra um sorriso malicioso.

– Ah, é? Vamos fazer o seguinte: você fica aí e eu aqui, à exatamente cinco passos da marca mínima. A cada dardo que eu acertar o ponto central, eu irei aproximar um passo.

Pondera um pouco. Tenta em vão ler a mente ainda nebulosa do sujeito. Bem, havia outros meios de trapacear. Concorda com um aceno de cabeça. – Mas você terá apenas cinco dardos para jogar.

Dessa vez é ele quem concorda, sem nem hesitar. Pega na caixa de dardos exatamente cinco. Posiciona e atira.

– Um passo. Faltam quatro. – cantarola.

Joga mais uma. E acerta.

– Cada vez mais perto, cada vez mais fácil. – sorri, já certo da vitória. O jogo de dardos era uma das suas especialidades.

– Não fique tão confiante, ou sua mão irá falhar. – roga a praga.

E quando o próximo é lançado, afina o olhar, pronta para fazê-lo errar. Contem-se, no entanto, ao ver o dardo curvar-se sozinho. Mostra um meio sorriso, ele iria errar. Enganou-se: o dardo curvou, mas voltou ao curso normal e acerta o alvo vermelho.

– Impressionante, não acha? Demorei a aprender lançar em trajetória curvilínea. É como atirar uma bala, só que não basta saber apertar o gatilho.

Fay está boquiaberta para reagir. E ele gosta de vê-la assim. Dá mais um passo, já aproveita e lança o dardo, acertando outra vez o alvo.

– Essa foi rápida... – ela não tinha mais certeza se venceria. Não. Ela poderia desviar o último. Ela era capaz. Nem que seja um pouco e ganharia. Mesmo se curvilínea, ela conseguiria.

O rapaz já estava bem perto. Podia ver com clareza suas íris selvagens. O sorriso que ele pinta, pela primeira vez surte efeito. No peito começa a queimar certa emoção. Ele não era um simples humano. Fay ainda não tinha certeza, mas queria ter. Queria conhecê-lo melhor. Descobrir seu passado e seus planos. Saber de onde veio e para onde vai. E se ele era mesmo do lado sombrio da vida, como sugeria sua intuição. Estava curiosa. Interessada.

No turbilhão da ideia, percebe apenas o vento do último dardo lançado. Procura com hesitação o lugar onde o dardo acertou. E surpreende-se. Ele errou. O dardo pousou na faixa ao lado do círculo vermelho. Olha para o autor do lançamento. Nem mesmo ele acredita que errou. Fay vasculha a própria mente. Talvez inconscientemente tenha feito errar. Mas, não. Simplesmente aconteceu. O humano tão perto dela mostra uma feição frustrada, os olhos verdes e selvagens estão tristonhos como um lobo que foi domesticado. Só então repara como ele é bonito. E a frustração lhe concedia feições adoráveis.

Ergue o braço esquerdo para pegar o dardo que falhou em acertar o alvo e o coloca na marca vermelha.

– Aproxime-se.

Confuso, ele obedece com mais um passo, alcançando a marca no chão que indica a distância mínima para o jogo de dardos.

– Venha até mim. – o tom é de ordem, porém esconde uma gentileza de dona.

Ele o faz. Chega perto. Muito perto. Os corpos quase se tocam. O cheiro de hortelã e de rosa se misturam com harmonia. Ambos encaram-se. As íris violeta são furacões envolventes e os verdes estão serenos como o bosque no inverno. Ela consegue ler sua mente, suas intenções.

Abrindo os lábios com delicados movimentos, Fay sussurra:

– Sempre quis saber como é ser amada por um humano.