Ryan espera pacientemente enquanto ela troca seu pijama de linho branco por um vestido florido lindo com cores laranja, verde-claro e azulado, feito sob medida para o verão. Fay enfeitou o pescoço com um grosso laço de cetim para esconder o estigma, e, por precaução, deixa os cabelos longos soltos. Sempre quis fazer um piquenique ao ar livre do dia, entretanto, visto que o sol não faz bem à pele do vampiro, os eventos românticos possíveis, entre a correria de um assalto e outro, eram noturnos.

Caminham um ao lado do outro em direção ao terraço. A sensação de andar espontaneamente próximo a ele é agradável, ao contrário de Krad, que insistia em ficar dois passos à frente. Deixá-la andar ao seu lado parece mais fácil para o vampiro, se quer tanto “protege-la”, como prova Ryan que não para um minuto se quer de observá-la enquanto a conduz.

Não havia visitado o terraço desde que se hospedara; a visão é maravilhosa. O local é enfeitado para imitar um bosque. Há grama, arbustos, árvores de pequeno porte, e um minúsculo lago com carpas. Flores de lavanda e algumas margaridas colorem o tapete verde bem aparado. É possível sentir o cheiro da natureza quando o vento sopra. O lugar é relaxante e acolhedor. Mesmo que sinta uma escuridão aos seus pés, Fay não encontra nenhuma alma penada. Talvez o jardim seja um lugar sagrado, e é assim que ele parece aos seus olhos. Suspira admirada.

– Não pense em correr pelo bosque, princesa, isso aqui ainda é o terraço e você vai cair. – diz Ryan com sorriso travesso ao adivinhar as intenções da garota.

– Há! – ri com desdém. Mostra a ele o verdadeiro sorriso travesso. – Eu não caio, eu flutuo. Já esqueceu?

– Claro que não. É impossível esquecer o quanto você pode ser surpreendente.

A voz dele é mais séria que a que usa em suas cantadas fajutas. Ela vira para ele, a brisa parece aproximar seus rostos. As íris verdes estão tão selvagens que Fay logo foge do olhar.

Ryan escolhe uma região mais plana e aberta do bosque para estender o forro azul. Senta cruzando os pés sob a bermuda cinza que veste, deixa o cesto ao lado e começa a tirar o almoço. Trouxe uma variedade incrível de sanduíches guardados em caixas menores: de presunto, de peru, de frango e queijo, de queijo e tomate, de atum e molho, de salmão e abacate, de banana e canela, de amendoim com geleia, de chocolate à prestígio.

– Eu não sabia qual você gosta mais – explica entre um riso sem graça ao vê-la de olhos esbugalhados.

Retira também uma jarra de suco de laranja. Uma única opção, que faz Fay rir.

– Você não pensou que, talvez, eu não goste de suco de laranja?

Ele interrompe a procura por guardanapos e fita-a de lábios cerrados.

– Todo mundo gosta de suco de laranja. – afirma convicto. – Se não, eu teria que te odiar.

– Não precisa, porque eu gosto. Todo mundo gosta de suco de laranja – reafirma.

Combinaram de dividir cada tipo de sanduíche ao meio, em diagonal, para que ambos pudessem experimentar um pouco de cada sabor. Seria um desperdício não experimentar as misturas mirabolantes. Ao terminarem, é hora da sobremesa: uma grande tigela de frutas picadas em forma de estrelas e corações. A mutante pega um pedaço de estrela de abacaxi com a ponta dos dedos e contempla o corte sobre a luz do sol.

– Como você conseguiu fazer isso?

– Eu tenho os meus truques – responde enigmático.

– Sei. Sabe abrir portas, tem ótima habilidade com facas de cozinha... Por que sinto que sabe muito sobre mim, mas ao contrário, não sei nada sobre você? – essa é uma das perguntas que Fay queria fazer a Krad. A facilidade com que o diálogo flui entre ela e Ryan sugere que talvez ganhe uma resposta satisfatória.

– Pensei que não tinha interesse nenhum por mim. – entrega uma colher de haste longa para a amiga e fica com outra para si. Despeja um quarto do suco da jarra na tigela, mistura e permite que aproveitem a salada de frutas.

– Por que eu não teria? – indaga enquanto pesca pedaços de pêssego e manga da salada.

– O seu olhar. – deita sobre o braço esquerdo, à direita da garota, esticando os pés sobre o pano xadrez, a fim de facilitar sua pesca de frutas. – As rajadas violetas demonstram desinteresse.

Ela fica um tempo procurando a resposta. Pensa em ler a mente dele, mas, pela primeira vez, sente que seria invasiva. Às vezes, prefere ouvir da boca das pessoas o que elas pensam.

– Agora, eu quero saber.

O amigo está satisfeito com a fala. Termina de engolir pedaços de corações.

– Desde que minha mãe morreu, eu trabalho com o meu pai. Na maioria das vezes são trabalhos menores, mais fáceis, como juntar informações ou cobrar dívidas. Ele só me deixa participar das grandes operações quando descubro demais sobre. Minha função é quase sempre arrombar as portas e manter os vigias ocupados. – fala como se quisesse mais. Provar ao pai que é útil e capaz de grandes proezas.

Fay nota a semelhança no desejo de ambos e é capaz de compreendê-lo. Vê uma carpa saltar no lago. A brisa passa pelo seu cabelo, espalha seu perfume de rosas e leva-o de encontro ao cheiro de hortelã do aprendiz de ladrão.

– Vamos provar a todos essa noite, Ryan. Nós somos capazes. – diz séria, relembrando todos os passos do plano na mente e transferindo o pensamento a ele ao tocar mão que apoia todo o corpo do dono.

Ryan devolve o gesto com íris serenos.

– Você e Bill farão a maior parte. Eu sou só o ajudante.

– Eu acredito em você. – aperta firme a mão.

Ele pondera, tenta decifrá-la. Senta-se sem soltar a mão da menina. Entrelaça seus dedos nos dela, uma confidencia silenciosa paira no ar.

– Eu também acredito em você, Fay.

A frase é a que os dois mais desejavam ouvir, do pai e do Krad. No instante, porém, agarram-se um ao outro pelo calor das palmas conectadas. A confiança corre pelas suas artérias como nunca. Fay repara que nesse tempo que passaram juntos não deixou de pensar em Krad, mas sempre comparando aos gestos de Ryan. O vampiro não a deixava andar ao seu lado, não demonstra seus sentimentos a não ser no auge da paixão, não confiava nela. Ela queria mais do que ele estava oferecendo, e que o amigo deu em menos de três dias, de amor. Queria ouvir mais vezes que a ama, sem ter que ler os seus pensamentos. Que correspondesse a suas expectativas. Que acreditasse em sua capacidade. Que confiasse o seu passado a ela, como Fay lhe ofereceu o presente, e já prometia o futuro. Estava sedenta, porém mantêm o impasse escondido da expressão. Pensa melhor a respeito. Talvez Ryan seja a escolha certa. Um simples humano, é verdade, não tem a beleza vampírica, nem superpoderes. Que, no entanto, age tão naturalmente apaixonado, tão confiante e tão sincero, quando quer. O desejo de beijá-lo quando ficaram próximo na varanda da mansão, prova que, provavelmente, conseguiria apaixonar-se por ele.

A ideia corre subitamente. Chega a sentir um frio na barriga ao imaginar. Solta a mão dele imediatamente para que o pensamento não chegue até Ryan pelo toque. Ele olha-a confuso. Fay tenta acalmar sua respiração, contudo apenas consegue isso à medida que se aproxima do garoto. Pouco a pouco, ainda hesitante. Os olhos dele vão das suas íris roxas a sua boca, a sombra de um sorriso se formando no canto dos lábios. Os lábios. A boca dele chama-a com voz aveludada. A mutante pensa em interrompê-los, as mãos, agora sobre os ombros de Ryan, prontas para afastá-lo. Entretanto existe um desejo; um desejo de certificar-se. Conferir se é mesmo capaz de amá-lo como ama Krad.

Nenhuma carpa salta para interrompê-los.

Os lábios estão quase se tocando quando a dor explode na garganta de Fay. É doloroso demais. Queima-a como brasa de fogo. Fagulhas percorrem seu pescoço, espalham-se pelo peito e alojam-se no coração, apertando-o bruscamente. Solta o amigo, repelindo-o com força para ter os braços livres e segurar o pescoço a fim de conter a dor. Ryan não reconhece o que está acontecendo. Abraça-a enquanto ela emite horrorosos gemidos. A garota luta contra a dor para manter a sanidade. Todo o corpo lateja, mas sabe que o foco está no pescoço, escondido sob o cetim. O estigma, o sinal de que a mutante pertencia somente a Krad. Com a pouca força que concentra empurra, com desajeitada telecinese, o rapaz para longe. Ele é jogado para os braços dos arbustos, atônito.

– Desculpa. Desculpa! – implora, sem definir se para Ryan ou para Krad. Ou para os dois.

Lágrimas brotam. As íris vibram como um furacão púrpuro por desespero. O rapaz que voou levanta-se, estende os braços pedindo para que se acalme e explique o que exatamente está sentindo, até arrisca alguns passos para à frente.

– Não! – grita ela. Fecha as pálpebras com força, desvencilha o pensamento da dor.

Algo provoca uma rajada de vento, que o impede de dar mais um passo.

Ela tenta controlar a respiração arquejante. Faz o máximo para recompor a fisionomia de total calma. “Ryan não deve se envolver mais do que isso, Fay lhe trouxe até o limite”, é o que a ferida exclama flamejando. Ergue o rosto, fita-o. Procura manter a dor afastada do cérebro, visto que seus poderes estão vazando descontroladamente dela. Busca sufoca-la apenas com a mão esquerda na raiz do pescoço, o que é quase impossível.

– Acabou. – o sorriso que pinta na face é de pura tortura.

Gira para a porta do terraço e corre para o quarto assim que ela se fecha.

No lago, todas as carpas estão mortas.