Como todos os dias, Anna acordou às seis da manhã. Precisava limpar o enorme galpão onde morava com o tio, o lugar sofria alterações diárias. Pelas manhãs era apenas um enorme galpão vazio, porém bem iluminado. De banho tomado, Anna o varria inteirinho. Em seguida era hora de pôr os blocos em posição, cada dia uma posição diferente, pelo menos essa era a intenção. Anna e Sergei Korzh moravam numa academia de free running.

Lá pelas sete da manhã, algumas pessoas já começavam a chegar. Tio Sergei então colocava pra tocar uma playlist que ele mesmo montou, com alguma ajuda de Anna. Então, até as nove da noite o galpão ficava cheio de pessoas, correndo, pulando e fazendo acrobacias, sempre com musica tocando. Anna fazia sua série diária nesse horário junto com os primeiros clientes. A menina fazia ginástica desde criança, mas logo se apaixonou por parkour e daí para o free running foi um pulo (trocadilho intencional).

Ela até mesmo já competiu em campeonatos regionais. Nunca ganhou nada, mas foram experiências incríveis. Assim que terminou a escola, com dezoito anos, saiu da casa dos pais em Ufa e se mudou para a casa/academia do tio, em Moscou, onde pode treinar e se aperfeiçoar diariamente. E correr era o que ela mais gostava. Quando corria, era como se o mundo ao seu redor desaparecesse. Ela era seu corpo em movimento constante, se contraindo e soltando a energia sem cessar. Ela respirava com velocidade sentindo o vento percorrer o seu corpo suado. Se sentia livre.

Depois de correr por duas horas, Anna tomava outro banho, fazia um lanche e então estava livre o resto do dia. Eram nove hora da manhã quando ela pegou os casacos se preparando para sair. Antes que ela o fizesse, porém, um cliente já conhecido a abordou. Danila tinha vinte anos e morava sozinho numa casa na região metropolitana da cidade, e isso era basicamente tudo que Anna sabia sobre ele. Mas não fazia mal, a relação que eles tinham não era exatamente complexa.

“Oi, Anna. Tá afim de passar lá em casa, eu termino a minha série em dez minutos.” Ele se encostou num corrimão, os músculos propositalmente enrijecidos.

“Eu vou sair agora, Danila.” Anna sorriu “Mas posso passar lá à tarde. Tudo bem?”

“Está perfeito” Ele se aproximou para beijar-la, mas a menina se afastou. O pobre coitado achava que era mais do que só sexo.

Empecilho resolvido, Anna seguiu com sua rotina. Poderia pegar o ônibus, mas não via vantagem nisso. Ao invés, escalou o prédio vizinho ao galpão e correu pelo topo dos prédios até seu destino: O clube de teatro do Sr.Lov. Quer dizer, não o clube de teatro em si, mas a clube secreto embaixo dele. Anna desceu até a calçada e adentrou no prédio velho. Lá dentro jovens ensaiavam um drama, Projetavam a voz para serem ouvidos e mexiam bem o corpo para expressar emoções, tudo sob o olhar clínico do Sr. Lov.

“Olá, Anna, minha flor!” ele a cumprimentou com um abraço apertado.

“Oi Sr. Lov. O Aleksei está aí?”

“Está sim, está lá embaixo.”

Anna agradeceu a informação e desceu as escadas detrás do palco. Não era realmente uma entrada secreta, mas o Sr. Lov não deixava ninguém ir pra lá, o que já era suficiente. Lá embaixo ficava a cova do mal do filho do Sr. Lov, Aleksei Lov. O garoto estava, para a surpresa de absolutamente ninguém, no computador. Ninguém mais frequentava o clube, até porque as pessoas tinham coisas mais produtivas pra fazer além assistir House of Cards.

“Meu Deus você não faz nada da vida? Já deve estar na vigésima temporada!”

“Bom dia pra você também, Anna.”

“Alguma coisa interessante dos seus amigos descolados?” Anna beijou-lhe a bochecha e se sentou num puff ao seu lado. Se referia ao grupo global de hackers do qual Aleksei fazia parte.

“Na verdade sim!” ele pausou a série “Eu recebi uma mensagem do meu irmão, através daquele hacker do Alaska.”

“É mesmo? O que diz?” a garota mudou de posição no puff, agora atenta ao amigo.

Era sempre bom receber notícias do irmão mais velho de Aleksei. Ele era um sensate, e tinha fugido da Russia tinha três anos, Anna não chegou a conhecê-lo.

“Aqui” Aleksei apontou entusiasmado para a tela do computador “Ele diz que está no Nepal agora, e que todos os seus parceiros de cluster estão bem.”

“Até aquele que tinha sido pego pelo BPO?”

“O cozinheiro? Sim, ele disse que o BPO está enfraquecido. Que está rolando uma guerra civil dentro da organização ou algo assim.”

“Isso eu quero ver de perto!”

Anna nunca conheceu um sensate, mas sabia por Makar, o irmão de Aleksei, o quanto eles sofriam nas mãos do BPO. E ninguém ficava sabendo já que a existência dessa outra espécie de seres humanos era mantida em segredo. Apenas as pessoas isoladas da sociedade os conheciam, como Aleksei, um recluso hacker de vinte anos. O cluster do irmão dele tinha sete pessoas. Makar tentava mandar uma mensagem para Aleksei pelo menos uma vez por mês, seja por seus parceiros de cluster ou por alguma outra pessoa de confiança.

Depois de uns instantes a cara de Aleksei se fechou “É tão ruim viver assim não é? Se escondendo e fugindo.”

“Nós sabemos bem como é isso.” Havia uma razão para o clube ser secreto, Anna era pansexual e Aleksei gay “Devíamos brindar a isso!”

Anna foi até um frigobar e voltou com duas cervejas. Os dois amigos ficaram ali conversando até as onze e meia, quando a garota tinha outro compromisso. “Queria arranjar sexo tão fácil quanto você.” Aleksei disse.

“Eu já te falei, nós estamos por aí, só precisa procurar diretinho.” Ela deu-lhe outro beijo na bochecha e foi embora, abraçando o Sr. Lov. no caminho.

A menina pegou um ônibus até a casa de Danila, já olhando com excitação as pessoas ao seu redor. Aos dezenove anos, ela tinha muitos hormônios correndo pelo corpo, e definitivamente não queria desperdiçá-los. Chegando no destino, nenhum dos dois fez muita cerimônia. Subiram as escadas aos beijos (carnais, não românticos) e já estavam nus na cama, quando Anna se assustou com um homem em pé no meio do quarto. Ela saiu de cima de Danila e, antes que pudesse perguntar quem era, estava no topo de um prédio, ainda nua.

Tudo aconteceu rápido demais, ela olhou ao redor, confusa; o homem de olhos puxados lhe disse “Se ajudem.”; e Anna estava de volta à casa de Danila. O rapaz a segurava os ombros tentando fazer ela se acalmar “Anna, o que foi?”

“Como assim o que foi? Não está vendo esse cara...” Ela parou a frase na metade quando reparou que não tinha mais ninguém no quarto.

“De quem você está falando, Anna? Não tem ninguém aqui.”

“Não tem ninguém ali... Danila, desculpa, mas eu preciso ir! Agora!” Ela se vestiu rapidamente e saiu sem dar muitas explicações.

Já na calçada, Anna parou e se apoio no murro de um prédio qualquer. Não podia acreditar no que tinha acabado de acontecer. Não queria chegar na única conclusão óbvia. Danila não tinha visto ninguém, mas ela havia. E tinha ido às Filipinas. Até mesmo sabia que lugar era aquele! Alarmada, ela pensou em ligar para Aleksei, mas desistiu. Tinha uma grave suspeita, e queria mantê-la em segredo, só por precaução: ela era uma sensate!