Aquela situação não era estranha. Estar sentada em um um banco sujo de um bar suspeito na beira da estrada, uma cerveja em uma mão e a outra mão descansando sob o balcão a sua frente. A música alta vindo da jukebox, algum rock antigo, provavelmente Zeppelin quase conseguia soar por cima do zumbido constante no fundo de sua mente. Uns sorrisos a mais e algumas inclinadas por sobre o balcão em direção ao barman, amigável demais, para conseguir as bebidas de graças. O cheiro de suor, álcool e perfume barato se misturando no ar enquanto homens tropeçavam por todos os cantos rindo alto e comentando com os amigos sobre a mulher da noite passada. Isso era normal para ela.

Astrid Gratton havia praticamente crescido em lugares como aquele, bom, pelo menos depois de ter fugido do orfanato em que morava. Ela não quis fugir. Não é como se tivesse qualquer outro lugar para ir, mas depois de presenciar aquilo, não havia muita escolha. Se ficasse lá, morreria também e ela não planejava morrer, não ainda.

É claro que ela tinha planejado uma vida para si mesma: ser adotada ou sair por conta quando completasse dezoito anos e então arrumar um emprego, algo fácil como servir mesas em uma lanchonete, limpar casas ou passear com cachorros, mas não por muito tempo, só até conseguir juntar dinheiro suficiente para alugar um apartamento permanente (e até lá, ela se contentaria com quartos baratos de motéis), então, faria alguma faculdade como veterinária ou psicologia. Talvez encontraria o amor da sua vida antes, durante ou depois, mas estariam juntos e em alguns anos iriam se casar. Quem sabe adotar um cachorro, ou dois, e alguns gatos. Seria tudo simples, feliz e ela teria uma família para chamar de sua. Esse era o plano.

Infelizmente nem tudo sai como o planejado.

Astrid nunca teve muitos amigos ou amigas. Sempre com a cara enfiada em algum livro ou desenhando monstrinhos imaginários em pedaços de sulfite e apesar disso ela nunca deu nome aos monstros que desenhava. Tinha consigo mesma que dar nome às coisas é o mesmo que dar poder a elas e que, mesmo sendo legal desenhar os monstros, ela não queria conhece-los. Uma mentalidade um pouco a frente da sua idade, quatorze anos, mas ao mesmo tempo que ela achava os monstros interessantes, também tinha medo deles.

— Eu fiz o meu com os dentes para fora, como presas. Ficou parecido com o seu mas juro que não copiei.

Foi com essa frase que ela conheceu Inaê, no orfanato. As duas deviam ter aproximadamente a mesma idade, talvez Inaê fosse alguns meses mais nova, um ano no máximo. O contraste maior era físico: Inaê tinha a pele mais morena, olhos cor de esmeralda e era mais alta; Astrid tinha a pele pálida e olhos azuis e era mais baixa. A amizade foi praticamente instantânea e ela passavam horas e dias conversando sobre bobeiras e desenhando os mais diversos monstros. Uma melhor amiga não estava no plano de vida original, mas se encaixou muito bem.

Um dia qualquer elas estavam conversando sobre vampiros, e Inaê parecia empolgada com a idéia de viver eternamente, mesmo que as custas do sangue de outras pessoas.

— Eu acho que eles seriam lindos, com a pele perfeita e cabelos sempre arrumados. Rápidos e charmosos. Claramente gostaria de ser um! - ela sorria

Astrid, por outro lado, não gostava nada da ideia de se tornar algum tipo de monstro e vampiros eram sim monstros, mesmo que fossem bonitos e com presas quase imperceptíveis como a amiga ao lado descrevia. E enquanto falava, Inaê ia desenhando o que a mesma nomeu de "meu namorado vampiro perfeito, igual daquele livro antigo que você leu".

— Ele vai se chamar Kane. Ótimo nome, não acha?

— Você não deveria dar nome a essas coisas. Não deveria dar nome para nenhum dos desenhos, isso faz com que ele sejam reais. Eu duvido que eu vampiro de verdade seja bonito ou legal. Ele iria te matar e sugar todo o seu sangue.

— Talvez eu deixasse ele sugar meu sangue! - riu

Aquela frase causou um desconforto estranho em Astrid, que logo dispensou a amiga com a desculpa de que precisava ir dormir, e que as freiras do orfanato não iriam gostar de saber que elas estavam acordadas até tão tarde. Um resmungo foi toda a resposta que ouviu enquanto a amiga se esgueirava para o quarto que dividia com outras meninas, do outro lado do corredor.

O sono demorou a chegar e quando chegou, se mostrou recheado de pesadelos. Havia sangue, havia gritos de dor e uma presença constante como se ela estivesse sendo vigiada mas não conseguia saber por quem. Não tinha uma pesadelo desde que tinha sete anos e aquele parecia estar compensando todos os anos livres daquelas imagens terríveis e subconscientes. Ela acordou com a camisola encharcada de suor e a mão foi instantaneamente em direção ao peito, como se pudesse acalmar as batidas aceleradas do coração com as próprias mãos. Tudo estava quieto. Tudo ao seu redor era puro silencio e a leve luz prateada da lua que entrava pela janela através das cortinas finas. Então porque algo ainda parecia errado?

A primeira coisa que surgiu em sua cabeça foi que Inaê tinha dado nome ao monstro. Inaê. O desespero atingiu sua mente e ela foi, passo por passo, em direção a porta do seu quarto para espiar o corredor. Abriu a porta lentamente suspirou aliviada quando o grande pedaço de madeira não rangeu. O corredor, assim como o quarto, estava iluminado pela lua e isso fazia tudo parecer fantasmagórico. Esticou a cabeça para fora da e percebeu, com certa dificuldade, que a porta do quarto da amiga já estava aberta e haviam sombras que cresciam de dentro e refletiam enormes na parede logo em frente. Um calafrio percorreu sua espinha e, inutilmente, ela rezou antes de dar o primeiro passo para fora do quarto. Isso era ridículo, ela deveria chamar algum adulto, certo? Certo. Mas seu medo agora se misturava com ansiedade e curiosidade e ela seguiu em frente sozinha.

Um passo de cada vez, controlando o barulho de cada respiração como se qualquer som fosse ser alto demais e estilhaçar a atmosfera a sua volta, ela precisava ficar em silencio, mas não sabia o porque. Quando se aproximou o suficiente da porta, abaixou o corpo até ficar com os joelhos e mãos no chão, tentando diminuir sua figura o máximo possível para poder espiar para dentro do quarto, se fosse uma das freiras, ela estaria ferrada.

Ah, como ela queria que fosse uma das freiras.

A primeira coisa que viu foi Inaê, encolhida em um canto e havia sangue por toda a parte. Morta, ela pensou e levou as mãos a boca para conter um grito que provavelmente nem iria sair de sua garganta. Havia mais corpos. Todas meninas do quarto estavam caídas em algum lugar (ela não conseguia enxergar todas, mas já imaginava), havia sangue espalhado e o cheiro de carne fresca era nauseante. E havia um homem.

Era alto e gordo, mesmo estando de costas era óbvio que suas roupas estavam todas manchadas de algo espesso e escuro, sangue, e ele não parecia se importar nem um pouco com a situação a sua frente. Ela pensou em perguntar o que havia acontecido, gritar ou correr pedindo ajuda mas foi aí que ela viu. O homem deu um passo em direção a porta girando o corpo e parou, como se estivesse decidindo continuar no quarto ou sair ao corredor e ela viu os olhos vermelhos e arregalados moldados por veias escurecidos na pele abaixo dos olhos e os dentes, oh meu deus os dentes. No lugar de dentes normais haviam fileiras de presas afiadas na parte de cima e na parte de baixo, como se estivesse usando uma dentadura de dia das bruxas.

O sangue pingava de cada uma das presas, grosso e persistente como se estivesse tentando escapar do causador de toda aquela carnificina. Ela olhou para Inaê mais uma vez, encolhendo o corpo o máximo que pode, mas não conseguia ver reação nenhuma. As lágrimas começaram a escorrer e ela correu. Não escapou de seus ouvidos o barulho que se seguiu vindo daquele quarto terrivel quando ela pisou com força nos degraus e um deles estalou. E ela correu. Correu em direção a porta e ignorou quando uma freira apareceu perguntando o porque ela estava correndo. Também não escapou de seus ouvidos um grito horrorizado vindo da mesma freira, quando ela já estava correndo pelo jardim.

As lagrimas e os pés descalços atrapalhavam e seu coração pulsava freneticamente em seus ouvidos, a força que a adrenalina lhe deu se esvaindo aos poucos até que ela não aguentou mais e caiu na grama, o vasto jardim havia sido aparado recentemente. Engatinhou até atrás de uma árvore com o tronco largo o suficiente e fechou os olhos, as lágrimas insistiam em cair mesmo assim e as esperanças já haviam desaparecido.

— Fique onde está ou eu juro por deus que vou arrancar a sua cabeça. - Uma voz grave soou a alguns metros a sua frente, e ela abriu os olhos para se deparar com uma flecha engatilhada em uma espécie de arco de ferro apontada para seu peito.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.