Pureblood

Vinte e três — Laços do coração.


Mirajane se revirava no colchão durante a noite, tentando adormecer em uma guerra contra os próprios pensamentos. Ainda pensava em Lucy, desde o momento que notou o desnorteio aparente em seu rosto, a sensação de tê-la trêmula em seus braços, o choro abafado e desesperado para que ninguém mais ouvisse, até finalmente conseguir acalmá-la.

As lembranças difíceis de alguns anos atrás retornaram a partir daquela hora, parecendo-a seguir até o caminho de casa como sombra. Sentia novamente o sofrimento de ver sua irmã mais nova, Lisanna, emocionalmente instável daquela maneira. A qualquer momento e em qualquer lugar, ela poderia entrar em pânico sem motivo aparente... bom, talvez os inúmeros problemas de Elfman — o irmão Strauss do meio — certamente eram um dos fatores que a influenciava.

Uma mãe doente, o irmão mais novo metido com coisas que não deveria, a irmãzinha sofrendo com tudo isso. Como sempre, tudo caía sobre seus ombros; essa fase já havia passado, porém agora revivia todas aquelas sensações. Vivia louca a todo instante, preocupada com o que pudesse acontecer.

Felizmente, Lisanna conseguira controlar quase totalmente o pânico, depois de muita ajuda da irmã mais velha. Não foi nada fácil, já que Mirajane não era uma especialista no assunto. A pequena jamais consultara com um profissional adequado.

Enrolada nas cobertas pela noite um tanto fria, Mira a chamou.

— Lisanna.

— Hum.

— Hã... você ainda está acordada?

— Nha. — respondeu Lisanna, minimamente acordada de seu sono profundo.

A mais velha suspirou e conteve o riso, já que a fofura dela ao responder enquanto dormia era demais para si. Mirajane não se importou nem um pouco em sair da cama quentinha e enfrentar o frio enquanto deslocava-se de sua cama para a dela.

Lis emitiu um gemidinho ainda dormindo enquanto a irmã passava os braços ao redor de si, espremendo-se para caber com ela na cama relativamente pequena.

— Eu amo você. — sussurrou em seu ouvido, brincando com as madeixas curtas da menor. — Você sabe disso, não sabe?

— Uhum... — respondeu Lisanna. — Eu também te amo.

Mira riu e fechou os olhos, sentindo o calor da irmã mais nova. Já fazia um tempo desde a última vez em que dormiam abraçadas... e era extremamente agradável.

Cana observava a cena com lágrimas brilhantes escorrendo pela face, lembrando da época em que pisava em terra e cuidava de Lucy... sua relação com ela não havia acabado, porém às vezes via-se chorando por sentir falta de viver em um mundo aonde todos os que amava estavam. Estar ali e conduzi-los com seus poderes espirituais até o Paraíso com o qual sempre sonhava eram coisas diferentes, sensações diferentes.

Mas com Mirajane por perto, Lucy ficaria bem quando não pudesse recorrer a ela.

Em um domingo consideravelmente frio porém ensolarado, Gray viu a mãe em seu único dia de descanso do trabalho como professora de uma das escolas mais prestigiadas do país fazendo o que mais gostava: tricotando. Passava todo o ano dedicando-se ao trabalho durante a folga, no entanto ficava completamente absorta quando o frio da próxima estação se aproximava: Mikasa Fullbuster, ou Mika, tricotava principalmente no Outono e Inverno para que assim pudesse doar os cachecóis e cobertores que produzia para instituições de caridade.

Apesar de ter uma nobre atitude, às vezes seu pensamento no outro ultrapassava os limites e ela parava de se importar tanto consigo mesma. Empolgada pensando em quantas pessoas ficariam aquecidas por aquelas vestes, esquecia-se de comer, de se lavar e até de dormir, completamente fissurada em seu trabalho voluntário. Como Silver Fullbuster nunca estava em casa, cabia a Gray lembrá-la de tais coisas básicas.

O rapaz se sentou ao lado da mãe, fitando suas mãos ágeis compondo um cachecol azul. Estava pensativo pois marcara de visitar Ultear em sua casa para assistirem a um filme. E honestamente, o filme era só uma desculpa dele para poder ficar um pouco mais a seu lado, fazendo-a comer o necessário. Ur dizia que ela já estava se alimentando corretamente, mas Gray não se deixaria enganar tão facilmente pela prima. Ela era esperta.

— Mãe. — chamou ele.

— Hum? — Mikasa respondeu sem desafixar os olhos castanhos do tricô.

— Eu vou...

— ...até a casa de Ur. — completou a mãe, emitindo um riso. Gray riu também; céus, ela sempre sabia o que ele ia dizer!

— Eu poderia estar indo para qualquer outro lugar. — comentou em tom de brincadeira.

Mika riu mais uma vez.

— Eu te conheço. Você não iria para outro lugar, ao menos não no domingo. — falou, agora olhando para o filho. — Você quer ficar perto de Ultear porque está preocupado com ela. Eu sinto isso, e acho que você está certo em querer ficar por lá. Ur não gosta muito de se impor, então acho que Ultear se aproveita para poder continuar com as próprias loucuras. Eu costumava pensar que ela era uma garota inteligente, mas não saber se aproveitar a liberdade que tem é um sinal de burrice, não?

O rapaz suspirou.

— Ela é nova demais, mãe.

— É fácil se esquecer disso. — sorriu Mikasa, e Gray tinha de concordar.

Para qualquer um que a visse em revistas ou entrevistas na televisão, poderiam jurar que Ultear não tinha menos do que vinte e dois anos; o que fazia uma diferença enorme comparando com sua idade real: dezesseis, saindo dos quinze há pouco tempo. Apenas uma criança que já enfrentava problemas do mundo adulto. A pressão do trabalho de um lado e a da escola do outro. Era por isso que Gray sentia a necessidade de fazê-la se sentir segura sob seus braços.

— Bom... eu quero passar mais tempo ao lado dela. — disse o rapaz. — Mas eu também quero saber que posso ficar tranquilo, saber que você não vai se esquecer de comer e de todo o resto.

Mika riu.

— Certo... vou me esforçar.

— Por favor. — respondeu Gray, beijando-lhe a testa. — Esse cachecol está ficando muito legal.

— Obrigada. E se cuide! — falou a mãe, enchendo-lhe de beijos pelo rosto.

Vermelho como sempre ficava, bobo por receber tanto carinho da mãe, o rapaz apanhou as chaves do carro e dirigiu até a Mansão Milkovich. Uma música romântica tocou na rádio e fora inevitável para si não pensar no seu anjo de cabelos louros. Em sua cabeça, a letra fazia sentido em relação a seus sentimentos por Lucy. Toda canção de amor o fazia pensar nela, imaginar que estavam dançando abraçados no escuro; a ideia o levava a imaginar outras coisas que certamente, fazia-o enrusbecer apesar de estar sozinho.

Uma fresta da cortina aberta iluminava o grandioso quarto pela luz lunar, permitindo-o enxergar a delicadeza de seu rosto com cuidado. Logo depois do término da música que os conduzira àquela dança lenta, Gray continuava a sentir o corpo de Lucy firmemente pressionado contra o seu. Estava quente, quente como nunca.

Sentindo os batimentos do coração um do outro, beijavam-se com tímida paixão. Durante o ato, o rapaz mal notou que suas mãos exploravam seu corpo ainda por cima das roupas, dando apertões que lhe fizeram arfar.

— G-Gray. — sussurrou com sua habitual timidez. Tentou conter um gemido quando os lábios dele faziam-lhe cócegas no pescoço, falhando miseravelmente. — S-Seu pervertido...

Ouvir o som de uma buzina alertando Gray de que o sinaleiro já mostrava o verde há muito tempo o fez voltar ao mundo real, onde Lucy não era sua namorada e tampouco a havia beijado. Mas, espere, que pervertido era por colocá-la em ideias tão inapropriadas! Vermelho de vergonha, colocou um CD de qualquer banda metal que encontrou por ali para dispersar aqueles pensamentos.

Enquanto realizava os serviços domésticos, Lucy não podia deixar de pensar vez ou outra em como estava frustrada por não se lembrar de ter visto Cana em seus sonhos na noite anterior, por mais que houvesse implorado para que ela lhe desse algum tipo de resposta sobre o misterioso e inesquecível jardim encantado. Não conseguiria entender o significado de tudo sozinha...

Sentia o olhar de Natsu em sua nuca enquanto tirava o pó da mesa onde ficava a televisão enorme, constrangida. Era difícil parar de pensar que haviam se beijado. Ah, não, não haviam se beijado! Não era Natsu naquele sonho. Ele mesmo nem sabia de nada, por Deus!

— Você disse alguma coisa?

Lucy estremeceu, percebendo que estava murmurando muito consigo mesma.

— N-Não, senhor! — disse em resposta, corando. Não ousava se virar, envergonhada por Natsu estar em pé atrás de si há um bom tempo.

— O-O senhor está necessitando de algo? — perguntou, passando o espanador sobre a mesa mesmo que não houvesse mais pó.

— Não.

— H-Hum.

— Não tem mais pó aqui. — observou o rapaz, passando o braço por cima de seu ombro. Colocou um dedo sobre o móvel, constatando que este já estava limpo. A loira ficou nervosa.

— É-É sempre bom limpar mais uma vez. — falou, movimentando o espanador mais rápido do que antes. — N-Nunca se sabe, não é mesmo?

Ele emitiu um breve riso e segurou seu braço, fazendo-a parar o serviço. O toque de Natsu a deixou paralisada, sendo que nada conseguiu dizer. Ele estava especialmente diferente naquele dia. Não parecia... tão habitualmente aborrecido.

— O que aconteceu ontem? — perguntou, encostando seus lábios em seu ouvido. Sussurrava como se fosse algo que alguém poderia ouvir mesmo estando apenas os dois ali.

A loira engoliu em seco com o rosto fervendo de vergonha.

— N-N-Nada.

Ele sabia do que se passara? O quanto? E por quê estava perguntando? Poderia estar preocupado... com ela?

— Nada? — repetiu ele.

— S-Sim, senhor! — Lucy virou-se para olhá-lo diretamente como forma de assegurá-lo de que falava a verdade, embora não fosse bem assim. Se arrependeu de imediato ao seu olhar encontrar-se com o dele. Acanhada, abaixou a cabeça. — Não aconteceu coisa alguma. E-Eu só estava... e-estava...

— O quê? — Natsu semicerrou os olhos por um momento.

Eu sonhei que estávamos nos beijando! — ouviu a própria voz e pensou em quem seria capaz de gritar algo como aquilo, até perceber que ela era a responsável por dizer tal coisa em alto e bom tom. Não sabia o que dera nela, a tensão causada pela vergonha que sentia simplesmente a fez berrar. Lucy nunca aumentava o volume da voz, por isso o rapaz recuou um passo. E ela sentia-se prestes a desmaiar; pensando em coisa alguma, encolheu o corpo e escondeu o rosto com as mãos.

Não era essa a resposta que Natsu esperava, definitivamente. Ele queria saber sobre ela ter ficado tão nervosa como Mirajane dissera. O que um sonho tinha a ver com a história? Mas... voltemos um momento.

— Hã?

— N-Não... n-não foi i-isso que e-e-u.... eu não... a-ah. — a criada tentava se explicar, prestes a cair no choro de tamanho constrangimento que deveria ter causado.

O rosto do rapaz esquentou. Por que diabos aquilo começou a acontecer com ele de uns tempos para cá? Nunca sentia vergonha de nada!

Um silêncio horrível pairou pelo cômodo, até que Natsu saiu do estado de choque.

— Eu não perguntei sobre algo que você tenha sonhado. — falou, tentando ser grosseiro. Sua voz saía menos agressiva do que queria. — Eu quero saber o que aconteceu com você ontem.

A loira choramingava como uma criança, sentindo-se a maior tola do planeta Terra. Por ter dito algo que não devia, por ter gritado, por estar chorando na frente dele sem controle e também por não saber se estava feliz por causa daquele sonho, ou triste, ou aborrecida, ou uma mistura de sentimentos dos quais não podia compreender!

— D-Desculpe, m-me desculpe... — murmurava, trêmula. — P-Por f-favor, m-me desculpe. E-Eu não... n-não queria... a-ah, me perdoe!

Ele pôs o braço ao redor de sua cintura e, extremamente desnorteada, Lucy retirou as mãos do rosto e o viu curvando-se para ficar mais próximo de sua altura. Devagar, pôde enxergar os lábios dele mais de perto; eram convidativos... e abriam-se levemente conforme mais próximos ficavam dos seus. Os olhos dos dois fechavam-se e os lábios se abriam para que pudessem ficar, enfim, perfeitamente encaixados.

Isso teria acontecido se Lucy não tivesse saído de uma espécie de transe antes que o beijo ocorresse. Sequer raciocinando, lhe deu um selinho no canto da boca e se pôs a correr até a porta ainda com algumas lágrimas escorrendo pelo rosto, envergonhada e assustada.

Seu coração batia tão rapidamente que ela pensava estar prestes a ter um ataque cardíaco. Não podia crer no que estavam fazendo, ou melhor, no que quase fizeram. Não queria acreditar que por um pequeno instante, desejava fazer aquilo... o momento era tão envolvente, o modo como Natsu a segurara trazia-lhe uma sensação tão boa...

Não, não, não. Como era capaz de ter ideias como aquelas? O que havia de errado consigo? Estava permitindo aquelas coisas enquanto trabalhava? O que ele poderia pensar dela, ou o que poderia pensar a sra. Dragneel, Mirajane ou Sting se soubessem que por pouco, ela e Natsu não haviam...

Por que os momentos mais constrangedores de todos os tempos tinham de acontecer com ela?!

Sob um cobertorzinho, esparramados no sofá — tão grande que se até mesmo Natsu esticasse as pernas, faltaria um bocado para chegar até a ponta — estava Gray com Ultear, logo após do primeiro filme ter terminado. Como queria agradá-la, o rapaz deixou que a prima escolhesse seu favorito para assistirem. E assim, ela decidiu que fariam uma maratona de filmes que se baseavam nos livros de Nicholas Sparks. Por incrível que pareça, o rapaz acabou adorando, com um lado mais sensível do qual os outros rapazes privavam-se de ter. O único problema era que ele sempre imaginava-se com Lucy naquelas cenas, coisa que deixava-o com tanto calor que parecia mesmo com febre. Sentia-se um idiota apaixonado.

— O que você achou desse? — perguntou a prima, alinhada sobre seu peito. Haviam acabado de assistir Querido John, e o próximo seria Diário de Uma Paixão, seguido de Um Amor Para Recordar e logo depois A Última Música, até chegar em... certo, não é necessário dizer todos os títulos.

Gray fungou e Ultear deu uma risadinha.

— Você está chorando mesmo?

— Não! — respondeu ele, por hábito. — Q-Quem está chorando? Eu não estou chorando!

Ok, ok. — rindo, a garota apanhou um pequeno biscoito de chocolate do potinho e prestes a colocá-lo na boca, abaixou o braço e ficou segurando o doce como se estivesse indecisa. Comer ou não comer, comer ou não comer?

Gray quebrou o silêncio.

— Ul.

Ultear olhava para ele e depois, para o biscoito com uma expressão triste.

Comer.

Não comer.

Comer...

...ou não comer?

O rapaz pegou o biscoito de suas mãos e seriamente, disse-lhe para abrir a boca. A modelo estremeceu, porém ver seu olhar autoritário a fez lutar por um breve momento consigo mesma; sua doença psicológica a fazia sentir aversão à um simples doce, enquanto uma parte de si queria aquele biscoito. E sabia que Gray não queria lhe fazer mal ao dá-la de comer.

Ultear engoliu em seco e, fechando os olhos, abriu a boca com muito esforço. Sentiu o momento em que o gosto do biscoito surgiu na boca, fazendo-a mastigar... com felicidade, porque aquele sabor era tão bom! Fazia um tempo desde que comera um doce realmente sentindo seu gosto.

Mas ela não podia se permitir ter o prazer de comer. Sair da linha era algo inadmissível quando se tratava de Ultear Milkovich, uma das modelos mais idolatradas do Japão.

Suas mãos começaram a suar frio enquanto ela pensava que precisava vomitar aquilo o mais rápido possível. Um mísero biscoito a fazia sentir-se daquela forma; sua mente sofria de uma insanidade maior do que qualquer um imaginaria.

— Ul. — Gray tocou seu rosto com tristeza. — Eu sei que você não está melhor.

Ouvir aquelas palavras vindas dele fizeram com que começasse a chorar. Estava feliz por saber que alguém percebia. Alguém se importava. Porém, também precisava controlar as próprias emoções. Tratou de engolir o choro.

— Eu vou ficar. — respondeu, desviando o olhar.

O rapaz beijou-lhe o topo da cabeça e a pressionou contra seu peito. Ul corou e fechou os olhos para sentir as batidas do coração do homem que tanto... amava. Amava mais do que uma família; amava como se estivesse sendo sufocada, como se seu próprio coração batesse pelo dele. E como se ficar o mais magra possível fosse agradá-lo; mal sabia ela que aquilo não era o melhor jeito de chamar sua atenção positivamente.

Ultear não queria mais falar sobre isso.

— O próximo é Um Amor Para Recordar. — disse, pressionando o botão no controle remoto para o filme começar. Deu uma piscadela, brincalhona. — Vamos ver até quando você vai aguentar engolir esse choro.

— O objetivo dessa maratona é me fazer chorar? — Gray riu e deu um apertão em suas bochechas.

— Não! — respondeu Ul, gargalhando como uma criança ao receber cócegas na barriga. — N-Não faz isso! P-Para! Olhe, o filme vai começar. Preste muita atenção.

— Certo, certo.

Os dois riram mais uma vez antes de encontrarem-se completamente envolvidos com mais um longa-metragem baseado em um dos livros de Nicholas Sparks — um dos melhores escritores do mundo para a modelo. Mesmo tão atarefada com o trabalho e o colégio, encontrava um tempinho para ler suas obras. Gostava de fazer isso sob as cobertas, imaginando estar vivendo tudo aquilo na pele da protagonista. E Gray era seu par.

Por hábito, percorreu a mão no sofá em busca do celular até se lembrar do combinado de hoje: sem internet por hoje. Era um dia em que os dois fariam qualquer coisa, exceto mexer em quaisquer aparelhos eletrônicos. Ul concordara um tanto hesitante, pois sentia as pernas inquietas quando o celular não estava por perto.

Meredy, sua melhor amiga, poderia ter algo novo para contar sobre a garota que estava com o rapaz no cinema... certo, os dois não estavam sozinhos, e a loira caminhava de mãos dadas com um outro loiro. Pareciam um casal de namorados, porém era sempre bom verificar a respeito das garotas com as quais Gray socializava. Doentio de sua parte e ela sabia muito bem disso, mas não era como se sentisse conforto sem saber o que ele fazia por aí.

Apesar do rosto angelical da garota loira, não podia se deixar enganar por algo que pudesse ser uma máscara.

Certo, certo, tinha de parar de pensar nisso por um momento. Afinal, Gray estava a seu lado e não do dela. E mais cedo ou mais tarde, saberia tudo sobre a loirinha inocente.

Quando Lucy tinha onze anos, ela e Cana estavam deitadas na pequena cama da menor. Já era tarde da noite, e ainda que já ouvisse as pessoas falando que era uma mocinha, Lucy morria de medo da escuridão. Porém, quando estava com Cana, sabia que ela a protegeria de qualquer perigo do escuro.

— Cana, você já está dormindo? — perguntou num sussurro.

— Não. — respondeu ela. — E por que a senhorita ainda está acordada?

A loira emitiu uma risadinha.

— Não consigo dormir. — falou. — Sabe... eu estava pensando em algumas coisas agora. Já aconteceu de você se sentir bem o dia inteiro, mas ao deitar a cabeça no travesseiro, lembranças desagradáveis retornarem?

— Sei, sim. — disse Cana com o coração apertado. Ela mesma sofria daquilo no momento, lembrando-se da briga que tivera com o namorado, Laxus, há três dias. Sentia medo de que o término que tiveram fosse para valer, pois gostava muito dele. Laxus podia parar de ser tão explosivo...

— Bom. — começou Lucy, tímida. — Tem uma coisa que eu nunca te contei.

— O que é? — perguntou a morena.

— Quando eu estava no jardim de infância... Mimi, aquela garota que era minha colega de classe, lembra? Um dia, ela foi realmente malvada comigo... tanto que nunca mais me esqueci do que ela disse.

Lucy engoliu em seco.

— Mimi falou que se você não era minha irmã “de sangue”, então não era minha irmã “de verdade”. Eu não entendi aquilo muito bem na época, mas agora eu sei o que ela quis dizer. E se eu pudesse encontrá-la, diria o quão errada ela estava.

Cana ficou em silêncio absorvendo as palavras. Lágrimas escorreram por seu rosto.

— Não somos filhas da mesma mãe, então não temos o mesmo sangue, certo? Só que... hoje, eu sei que ainda assim, somos irmãs. Porque mais importante do que ser “de sangue”, somos de coração. E o coração deveria ser mais considerado do que qualquer outra coisa. Mfff!

Lucy estava sendo sufocada pela mais velha, que apertava-a com força enquanto beijava o topo de sua cabeça por um milhão de vezes. Mal podia acreditar no que escutara vindo de uma criança... aquela loirinha era mesmo especial.

— Eu te amo, Lucy. Te amo muito! — falou em meio ao choro. — Você é tão fofa!

— T-Te amfo tamb... h-hum... não respir...

— Ah, desculpe! — Cana parou de abraçá-la com força ao perceber que ela estava ficando quase sem ar. — Desculpe por isso, é que eu estou... muito feliz. E sim, Lucy, você está certa. O coração vale mais do que tudo.

— Não chore, Cana. — falou Lucy, secando o rosto dela. — S-Se não, e-eu choro também...

A mais velha riu e lhe deu um beijo demorado na bochecha.

— Não vamos chorar.

— Não mesmo.

As duas entrelaçaram os dedos e fecharam os olhos, adormecendo lembrando-se de uma lição importante e que muitos às vezes esqueciam-se: para ser família, bastava os laços formados pelo sentimento, pelo coração.

O sangue era apenas mais um detalhe, no fim de tudo.