Pureblood

Catorze — Amizade.


“Não há solidão mais triste do que a do homem sem amizades. A falta de amigos faz com que o mundo pareça um deserto.”

— Francis Bacon

Os cabelos claríssimos de Mirajane balançavam presos num rabo-de-cavalo enquanto a moça subia as escadas da Mansão Dragneel, sorrindo consigo mesma por um momento. Acabara de terminar de preparar o jantar para aquela noite feito exclusivamente para Natsu; Olívia ainda não havia voltado do estúpido spa, isolando-se de absolutamente tudo e todos. Mesmo com a mãe para cuidar, a albina procurava passar o maior tempo possível em casa com o rapaz. Sabia que ele ficava chateado com a mãe e seus “sumiços”, por mais que não demonstrasse. Natsu nunca gostara de demonstrar o que realmente sentia.

— Natsu...? — chamou, aproveitando-se uma fresta da porta para espiar. Viu alguns de seus fios róseos para fora; a única coisa que dele não fora tapada pelos cobertores. Estranhou: que é que ele estava fazendo dormindo naquele horário, algo como oito e meia da noite? Havia algo de errado.

— Natsu? — disse, aproximando-se da cama. Lentamente, começou a retirar as cobertas. — Natsu, você está b...

Deu um gritinho agudo (que Natsu considerou incrivelmente adorável) ao sentir uma mão puxando seu braço e, em uma fração de segundo, estava debaixo dos lençóis com o rosado que mordia o lábio aparentemente tentando segurar um riso.

— N-Natsu! — exclamou Mira, sentindo o coração acelerar devido ao susto. Tudo acontecera tão rápido! — Você me assustou, sabia?

Ele riu.

— Desculpa?

A albina também riu com as bochechas levemente vermelhas. Ele era um homem, apesar de tudo. Ainda seu Natsu, porém um homem. Sentia um leve constrangimento que talvez não existisse se as coisas não estivessem um tanto... estranhas.

Seus braços a mantinham firmemente abraçada com ele, unida a seu corpo.

— Vim te chamar para jantarmos juntos. — disse a cozinheira, também envolvendo os braços ao redor de seu corpo. Aquele abraço era... agradável de certa forma. Gostava de sentir seu calor. — Eu fiz suco de laranja com dois cubos de açúcar, do jeitinho que você gosta.

O rapaz acariciava-lhe os cabelos com um olhar um tanto distante.

— Mira, sabe que não precisa vir quando fico sozinho. — falou, pensando em como deveria ser para Mirajane ficar longe o dia inteiro da mãe adoentada. — Eu sei me virar.

A albina riu mais uma vez. Macarrão instantâneo era a única coisa que Natsu sabia cozinhar. Isso era o que ele chamava de se virar?

— Miojo não é nada saudável, Natsu. — disse. — Não ia me sentir bem sabendo que você não está se alimentando direito. E também... — abaixou volume da voz, embora somente ele estivesse a escutando. — Gosto de lhe fazer companhia.

Natsu sentiu o rosto esquentar, uma sensação um tanto estranha para si. Não costumava sentir vergonha, ficar com as bochechas avermelhadas... mas com Mira era diferente. Sempre fora.

— Vamos lá para baixo? — a moça lhe deu um beijo carinhoso na bochecha. Devagar, desfez o abraço, porém o rapaz hesitou em soltá-la por um momento.

— Mira. — disse, baixinho.

— O que é? — perguntou a albina, mordendo o lábio sem perceber. Temeu uma nova tentativa de beijo.

Natsu demorou um pouco para responder.

— Nada. — e por fim, os dois desceram juntos para o jantar.

Mirajane não estava errada ao pensar que ele parecia distante; de fato, estava. Pensava no ocorrido daquela tarde, mais do que gostaria.

— Amor. — respondeu, enrusbecendo logo em seguida. — Compreensão. Lealdade. Momentos divertidos. É disso que uma amizade se trata, sr. Natsu. De ambos os lados...

— Isso não existe. — Natsu disse, pensando em todas as “amizades” que já tivera na vida. Todas elas a fizeram crer com todas as forças de que nada de tais baboseiras eram reais. Amizades eram interesses. Quando não interessasse mais, poderia ser facilmente jogada fora. Pensou também em Gray, a única pessoa que poderia chamar de amigo... mas era uma exceção. De resto, todos eram iguais.

A viu estender a mão para si. Havia algo estranho ao redor de seu corpo, parecido como um brilho dourado. E seu sorriso estava diferente.

— Se me permitir, posso lhe mostrar que existem, senhor. — até sua voz pareceu mudar. Era como a voz de um anjo. Um anjo que o chamava.

Enrijeceu o corpo, desconfiado de tamanha perfeição aparente. A encarou procurando algo em seus olhos, mas tudo o que conseguia ver era uma estranha calmaria. Não conseguia nela enxergar maldade e isso o incomodava, incomodava demais.

Ao contrário do que pensava, a aura angelical não se fora enquanto tentava intimidá-la com o olhar. Lucy mantinha a mão estendida e um sorriso no rosto, sem dar um passo atrás. Até mais desinibida do que de costume, porém ainda era notável o leve avermelhamento de suas bochechas. Mas ok, não recuar diante de um olhar daqueles já era um começo.

Se aquilo era um plano estúpido com qualquer objetivo idiota que fosse, não duraria muito. Natsu tinha certeza de que descobriria, e quando descobrisse aonde a criada queria chegar com toda aquela conversinha... ah, o que faria...

Um lado seu queria segurar sua mão confiantemente, um lado que ele não gostava nem um pouco. Um lado com o mínimo de esperança na pessoas, de inocência infantil. Quem sabe o que poderia acontecer se confiasse totalmente nela daquela maneira?

— Natsu? — a voz de Mira o desconectou de seus pensamentos. A albina o fitava com seus olhos azuis e expressivos. — Você está bem?

O rosado bebeu um gole do suco e assentiu com a cabeça positivamente.

— Parece tão... pensativo.

— Que nada.

Mirajane continuou a olhá-lo sem tocar na comida à sua frente e Natsu fingiu não perceber. Detestava aquele olhar.

— Certeza?

O rapaz resmungou algo como “uhum” enquanto mastigava um pouco do arroz, mastigando mais do que realmente precisava.

A cozinheira não parecia muito convencida.

— Certeza... mesmo?

— Uhum.

— Absoluta?

— Uhum.

— Mas assim, absoluta mesmo ou só absoluta? — disse ela com seu ar brincalhão que sempre o fazia rir. Isso era uma da coisas que ele mais amava nela: conseguia fazê-lo rir de verdade com apenas algumas palavras.

— Tô pensando em umas coisas sim, mas nada de importante. — desconversou depois de rir.

— Nada de importante? — Mira voltou a comer despreocupadamente. — Hum, então tudo bem.

Ela sabia que ele sentia necessidade de falar algo após um “tudo bem”. Natsu tentava esconder o que sentia, o que pensava... mas de uma forma ou outra, acabaria lhe contando mais cedo ou mais tarde. Talvez não com todas as letras, mas ainda assim lhe contaria.

— Mira. — disse ele, sem olhar em seus olhos.

— Hum?

— Você sabe o que significa “amizade”?

A pergunta a pegara de surpresa. O rapaz não costumava conversar sobre temas como aquele... amor, amizade, família. Sentimentos não era algo que ele falava a respeito com facilidade.

— Bom. — começou a cozinheira. — Acredito que amizade é sinônimo de carinho. Estar para a pessoa quando ela precisa. Um bom amigo é aquele que é capaz de te fazer rir com poucas palavras até quando você não quer rir. E também te dar uns puxões na orelha quando necessário. — ela piscou, brincalhona.

Natsu a fitava.

— Mas qual é o motivo da pergunta? — perguntou Mira, curiosa.

Ele enrijeceu os músculos por um momento e em seguida, voltou a relaxar.

— Nada.

—É um desafio. — falou ele, quase sem mover os lábios.

— Ahn?

— Eu te desafio a me fazer acreditar, Lucy.

A loira sorriu e assentiu positivamente com a cabeça.

— Está bem.

Scarlet marchava pelo corredor do prédio, emburrada.

— Vai ficar me seguindo agora? — disse a Jellal, ríspida. Como sempre, desceria até o andar térreo para buscar a caixa contendo seu jantar: uma caixa de pizza extragrande; arrependia-se de ter vindo sozinha. Lucy falava ao telefone com sua mãe, então teve ela de ir buscar... ir sozinha não era o real problema, e sim, ficar sozinha com ele.

O síndico bufou.

— Você não é a única do prédio que pede pizza.

— Que bom que percebeu que não sabe cozinhar antes de explodir o fogão mais uma vez. — a ruiva empinou o nariz e, mesmo de costas, soube que o rapaz revirava os olhos mesmo sabendo que ela tinha razão: Jellal não levava o mínimo jeito para a cozinha; todas as suas tentativas de preparar um jantar decente acabavam em fumaça e vez ou outra, pequenas explosões do fogão.

— Ah, que merda. — murmurava Erza enquanto apertava os botões para chamar o elevador freneticamente, nervosa simplesmente por ouvir a respiração de Jellal atrás de si. Ainda estavam a sós, apesar de tudo. E isso a incomodava mais do que de costume; na realidade, de uma forma diferente... desde aquele beijo estúpido, tudo se tornara diferente. E seus pensamentos em relação ao rapaz também; ah, como estava nervosa!

— Foi só pra você calar a boca.

Certo. Apenas para calar a boca. Tudo bem, ok.

Por que é que aquilo ainda a incomodava?

— Ficar apertando os botões não vai fazer ele vir mais rápido. — disse ele grosseiramente.

— Me deixa.

— Tá me irritando.

Scarlet pressionou os botões numa velocidade maior para provocá-lo.

— Para com isso.

— Vem me fazer parar, seu... — sua voz diminuiu assim que se virou e seus olhares se encontraram. Evitava agora olhá-lo diretamente; sentia vergonha, constrangimento... — S-Seu...

Cobriu o rosto vermelho com uma mão sentindo-se esquisita. Nunca tivera vergonha daquele jeito, muito menos com o babaca do Jellal. Perguntava a si mesma o que havia de errado consigo...

— I-Idiota! Você me deixou esquisita! — gritou sem perceber, enterrando o rosto nas mãos. Queria chorar, tamanha frustração e vergonha; lembrava-se de cada momento daquele beijo, da sensação de ter os lábios dele próximos aos seus, do calor gostoso. — N-Não era pra ter me... me... Argh!

Puxou a gola de sua camisa e o beijou. Simplesmente porque queria, por não conseguir controlar seus impulsos; mesmo sendo um completo imbecil, o desgraçado beijava bem. A fizera se esquecer de absolutamente tudo ao redor, esquecer o próprio nome. E necessitava daquela sensação tão boa mais uma vez...

Jellal aos poucos deixou de enrijecer o corpo, orgulhoso como era, não queria afimar a si mesmo que também se sentia bem quando seus lábios encaixavam-se; quando era capaz de sentir os batimentos cardíacos dela como se fossem seus. Ela era uma mulher estúpida, de má educação. Mas que beijava bem, isso ele não podia negar...

Enquanto isso, Heartfilia conversava ao telefone com Layla.

Lucy sorriu mais uma vez ao sentir o toque de sua mão que fazia a sua parecer ainda menor; era quentinha e macia. O trato estava selado, afinal: ele aceitara a amizade e ela aceitara o desafio. Ambos provariam um ao outro que cumpririam sua parte do acordo.

A loira contou para a mãe sobre sua nova amizade, é claro, omitindo alguns detalhes... como uma das razões pela qual resolvera fazer isso: o encontro com Cana. A conversa que tiveram... era algo que as pessoas não precisavam saber. Ao menos, não ainda. Era surreal demais para que acreditassem.

— É realmente muito bom que faça amigos, querida. — disse Layla, mas havia algo estranho em seu tom de voz. Sempre mudava assim que a garota falava sobre coisas relacionadas aos Dragneel. — Mas não deixe que sua amizade atrapalhe seu trabalho, está bem?

— Sim, mamãe. Sei disso. — respondeu ela, corada por lembrar tanto de Natsu. E não sabia como a amizade poderia causar qualquer dano ao trabalho, considerando que também era amiga de Mirajane. E também, pensava na sra. Dragneel como uma amiga... sem problema algum. Ah, não podia esquecer de sua amizade com Sting! Ligaria para o loiro logo após falar com a mãe, perguntar como estava do resfriado. Esperava que ele ficasse completamente bem logo...

Conversaram por mais alguns minutos e por fim, se despediram.

— Boa noite, mamãe. Eu amo você.

— Boa noite, querida. Também amo você. Muito, muito, muito! — em seguida, a voz de tia Juvia surgiu ao fundo. — Eu também te amo, tá?

Lucy riu querendo chorar de saudade.

— Amo vocês duas, um beijo. Estou com muitas saudades!

Gray Fullbuster sentia o coração quase rasgar o peito enquanto dirigia até a casa de Natsu. Estava empolgado por estar indo jogar com o melhor amigo no PS4, mas não era isso o que fazia seu ritmo cardíaco absurdamente veloz, muito menos o suor em suas mãos.

Lucy. Lu-cy. L-u-c-y. Cabelos loiros, pele branquinha; o rosto delicado que lembrava o rosto de um anjo. Corpo de curvas bem delineadas. O modo como suas bochechas ficavam avermelhadas com facilidade, o tom de voz meigo que soava como uma música suave. O sorriso tímido que lhe lançara como agradecimento por ter levado ela e Mirajane de carona até a casa de Sting. Tudo, simplesmente tudo.

Só a havia visto duas ou três vezes, mas já sentia-se apaixonado; amor à primeira vista, algo que nem pensava que existia! Pensar em Lucy o tempo todo o estava deixando maluco e ele precisava vê-la novamente. E se pudesse, a veria todos os dias, toda hora, todo minuto. Ah, como era grande a paixão que sentia!

Precisou respirar fundo enquanto o portão era aberto; respirar muito fundo assim que estacionou o carro na garagem da mansão. E de um milagre assim que viu a porta sendo aberta por Lucy, tão linda como nos outros dias.

— Olá, sr. Gray. — por mais que ele tenha insistido que não havia necessidade do “senhor”, ela continuava a chamá-lo de “senhor Gray”. Sorriu timidamente com aquelas bochechas tão fofas e coradas. — Seja bem-vindo.

— Obrigado. — respondeu o rapaz quase num sussurro, sentindo o rosto esquentando. Deixou-se ser guiado por ela até o quarto do amigo, não sem cumprimentar Mira também.

— Sr. Natsu? — disse a loira com sua voz meiga. — O sr. Gray está aqui. — e abriu a porta para ele, que entrou no cômodo timidamente. Viu Natsu já segurando um dos consoles, soltando um “e aí?”

— Se precisarem de algo, estarei aqui no corredor. — Lucy sorriu, fez uma reverência e saiu; o moreno percebeu que havia algo diferente no ar... era um tanto sensível e observador: pôde notar que Natsu sorriu de canto para a criada, coisa que nunca fizera. Observava, mas não comentava...

— Gray. — disse o rosado enquanto o jogo iniciava.

— Hum?

— Esquece.

Natsu tinha dessas. Pensava em algo e, prestes a dizer, pedia para que a pessoa esquecesse. “Não é nada”, ele costumava dizer. Gray conhecia muito bem seu amigo. Ele só não sabia no que ele estava pensando...

No pátio da escola, o pequeno Natsu Dragneel comia um sanduíche delicioso feito por Mirajane, a mulher que preparava suas refeições. E o vestia, o banhava, brincava com ele; como se fosse sua mãe.

Como sempre, na hora do recreio, o garotinho se via num canto, afastado de todas as outras crianças. Não possuía nenhum amigo e, mesmo sendo tão pequenino, já não tinha esperanças de que realmente pudesse fazer amizade com alguém. Por mais que se esforçasse, afugentava as pessoas com seu olhar assustador... acostumado com a solidão, não queria mais tentar. Não gostava de nenhuma daquelas pessoas.

— Oi.

Natsu ergueu a cabeça e com seu “olhar assustador”, encarou Gray Fullbuster, um garoto de sua classe e que sempre o olhava na sala de aula de uma maneira... esquisita. Não o olhava como as outras crianças que faziam-o se sentir um ser de outro planeta... o pequeno não sabia explicar.

— Você é o Natsu, não é? — disse Gray, sorridente. — Posso lanchar com você?

O rosado sorriu consigo mesmo.

— O que foi?

— Não é nada. — respondeu Natsu, logo depois concentrando-se no videogame novamente.