Pungente

The Burn Book


Cerca de uma semana havia se passado, e eu continuava péssimo por ter “perdido” minha amizade com Júlia. Eu não conseguia entender o motivo, pra ser bem sincero. Tudo por causa de um show de talentos? Pior ainda: era nítido que esse evento não iria acontecer de verdade. Como se não bastasse, outra coisa agora estava ocupando meus pensamentos e me deixando desconcentrado: o caderno. Estava ficando perturbado. Saber o que estava escrito naquelas páginas era uma necessidade agora. “The Burn Book”, ou o “Caderno do Arraso”. Os títulos não saíam da minha cabeça.

Tiago também continuava a perpetuar meus pensamentos. Como eu era sonhador. Como eu era patético. Não havia contado físico. Não havia contato verbal. Nada. Sentia tanta vontade de beijá-lo, que não consigo descrever. Queria sentir o gosto dele. Queria senti-lo. Como era complicado...

Minha amiga agora era Larissa. Ela estava sempre ao meu lado durante as aulas. No intervalo, eu também passei a conversar com Caio, outro amigo de infância que era de uma classe diferente. Meus únicos amigos. Elica e Manuela só olhavam para mim com o pretexto de rir. Manuela havia mudado tanto. Ela não tinha mais nada daquela menina que eu havia escolhido como melhor amiga no ano anterior.

Não importa mais. Gostava muito de Larissa e adorava as conversas com ela. Na verdade, era muito fácil gosta dela. Sempre carismática, boa, gentil. Curioso que, quando ela entrou na nossa escola, Elica não a via assim. Certa vez, comparou seus belos olhos azuis com os do Chucky, o boneco assassino. E agora, elas eram amigas. Como Elica era estranha, eu não duvidava que por baixo de todas aquelas risadas, ela ainda a odiasse. Mas não podia julgar.

Conforme os dias foram se passando, mais saudades eu sentia de Júlia. E eu sabia de uma coisa: se nossa amizade fosse ser retomada, eu teria de dar o primeiro passo. Antes desta briga sem sentido, nós havíamos discutido duas vezes. Coisas sem importância, mas que fizeram com que parássemos de olhar na cara um do outro por certo tempo. Eu tive que tomar a atitude para voltarmos a nos falar, mesmo não sendo eu o responsável pelo afastamento.

Um dia, logo após chegar da escola, peguei o telefone e liguei para sua casa.

– Alô? Eu posso falar com a Júlia, por favor? – Pedi.

– Quem é? – Perguntou uma mulher. A mãe, com certeza.

– É o Gustavo. – Respondi.

Passaram-se alguns segundos até Júlia pegar o telefone.

– Alô? – Disse ela.

Fui direto ao ponto:

– Júlia, me desculpa?

Patético, sim. Patético sempre. “Júlia, me desculpa?”. O que eu fizera para ter que pedir desculpas?

Conversamos por alguns minutos e, surpreendentemente, tudo estava bem. Como se nada tivesse acontecido. E então, após um período colocando os assuntos em dia, perguntei sobre o caderno.

– Não posso te falar. – Disse ela.

– Por favor? Se você me considera mesmo, me mostra? – Supliquei.

Ela hesitou. E eu torci para que concordasse.

– Amanhã eu te mostro, então. – Disse ela, por fim.

– Está com você, o caderno?

– Não, mas a Elica leva todos os dias pra escola. – Respondeu ela. – Vou pedir emprestado e aí te dou na saída, ok?

– Tá ok.

E voltamos a conversar, por quase uma hora. Naquela noite, fui dormir bem. Eu ia continuar minha amizade com Larissa – afinal, ela tinha me estendido a mão quando Júlia havia me chutado sem motivos. Porém a presença de Júlia era algo diferente...

***

No dia seguinte, encontrei-me com Júlia e passamos a conversar normalmente. Ela sentou a meu lado na aula de matemática, e Larissa sentou-se do outro. Estava ansioso para ler o conteúdo do tal Burn Book. E o dia passou rapidamente. Júlia não parou de falar com Elica e Manuela, a amizade continuava. Na última aula, observei quando Elica entregou à Júlia o caderno. E na rua, minha amiga o passou para mim. O padrasto de Júlia a estava esperando na porta e percorri o caminho que geralmente andávamos juntos, sozinho. Não esperei chegar em casa para ler. Abri o caderno na rua mesmo.

“The Burn Book. Nem esperamos o mês começar, para soltarmos o veneno.”

Virei a página. Logo na primeira linha, estava escrito em um tom forte de caneta preta: Gustava... O. Achei bem idiota. Passei os olhos na folha e vi os tópicos. Poucas linhas para cada um, mas sempre iniciados por um travessão. No primeiro deles, a letra de Manuela dizia: “Ódio compulsivo pelo moleque”.

Meu coração acelerou. Então elas sentiam ódio de mim? Pulei para o próximo tópico, que dizia: “Ele é um filho da puta!”. Novamente, letra de Manuela. Então Elica entrava em ação com sua caligrafia redonda: “Apesar de que a puta não iria querer ter o Gustavo como filho”. Foi uma facada e fiz um esforço para as lágrimas não começarem a cair ali, na rua, onde todos poderiam ver. Além daquela, havia mais duas páginas dedicadas a mim e elas estavam cheias. O grupo de amigas falava mal de outras pessoas da nossa classe, mas nenhuma delas estava com três páginas preenchidas como eu.

Li mais um tópico e em seguida, senti raiva de mim mesmo. Semanas antes, Manuela havia sido ameaçada por uma das irmãs de Juliana – que sempre as procurava quando se mentia em encrencas, pagando de vítima. Essa irmã queria resolver a situação com violência. Fiquei preocupado e, passados alguns minutos após chegar em casa, liguei para a casa de Manuela para saber se ela havia chegado bem.

“Ele me ligou outro dia. Perguntou como eu estava e eu falei que estava mal. Ele perguntou por que e eu disse ‘porque estou falando com você’”.

Fechei o caderno. Já não conseguia segurar as lágrimas. Deus! Cheguei em casa, corri para o quarto e continuei a leitura. Fiquei pasmo ao constatar que havia uma continuação com meu nome no fim do caderno. Elas adoravam escrever coisas ruins a meu respeito e isso era doloroso e cruel demais. Os próximos tópicos pertenciam a Elica e Larissa.

“Gente, eu sei que vocês não gostam que eu ande com ele, mas tadinho! Eu não posso deixar ele sozinho...”, letra de Larissa. Logo abaixo, a resposta de Elica: “E daí?”.

Era isso o que elas queriam. Eu, sozinho. Sem amigos. Conforme lia os tópicos, mais horrorizado ficava. Elas foram corajosas o suficiente para escrever insinuações sexuais entre eu e meu irmão, de 10 anos. Sádico.

“Eu achava que ele era o meu melhor amigo, mas me enganei”, comentou Júlia. Que ridícula ela era, eu pude constatar. Afinal, não havia sido ela quem terminou a amizade comigo por conta de um Show de talentos, se nem talento ela tinha?

Continuei a ler o caderno atentamente. Elas falavam mal de quase todos os colegas de classe. Odiavam todos. A Manuela que conheci não era assim.

Fiquei tão perturbado com as descobertas que até meus sonhos foram horríveis. Tiago estava neles. Mas foi estranho. Eu estava na escola e ele estava bem perto de mim. Porém, estava rindo da minha cara. Estávamos só nós dois presentes, a escola absolutamente deserta. E ele ria como se fosse a última coisa que faria na vida. Fiquei sem graça. Fiquei com raiva. E acordei tenso.

Fui para a escola e levei o caderno comigo. Na entrada, falei com Elica e Manuela normalmente, como se desconhecesse o que elas pensavam a meu respeito. Durante a aula de geografia, Júlia sentou na carteira em minha frente e Manuela logo atrás. Devolvi o caderno para Júlia sorrateiramente e em seguida, Manuela perguntu:

– Jú, o caderno tá com você?

– Sim! – Respondeu ela.

– Me dá aqui? – Pediu a vadia.

Júlia pegou o caderno e o entregou. Então ouvi Manuela sussurrar:

– Você não mostrou pra ele não, né?

Neste momento, me virei para encará-la.

– Me mostrou o que?

– Nada. – Ela respondeu, guardando o caderno na bolsa.

Elica e Manuela não abriram mão de Júlia, aproximando-se cada vez mais dela e, consequentemente, de mim. Eu acreditava que elas suspeitavam do meu conhecimento quanto ao caderno. Mais tarde, isso acabou se confirmando. Júlia confirmou a elas que eu sabia de tudo. Relatou o quanto eu ficara magoado. Não que isso as fosse comover. Também não houve um confronto. Eu apenas disse certa vez que sabia o que elas pensavam de mim. Manuela abriu um sorrisinho irônico. Elica não esboçou reação.

***

O restante do ano passou de forma tranquila. E de forma bem mais rápida do que eu poderia desejar. Fui ficando mal com essa velocidade, pois sabia que a consequência seria dois meses inteiros sem ver Tiago. Pior: se ele saísse da escola, eu provavelmente nunca mais o veria. Acho que agora deve ser seguro dizer que eu estava amando-o. Como isso era possível? Eu não tinha ideia. Mas o sentimento existia. Era maior que eu. Não poderia significar outra coisa além disso.

Estava em um momento tão bipolar que, hora ou outra, me pegava torcendo para Tiago realmente sair da escola. Pois assim, eu iria superar. Sua imagem nos corredores da escola era como um lembrete, ou um alarme para os meus sentimentos. Com ele longe, poderia esquecê-lo e seguir com minha vida tranquilamente. Eu iria ficar triste no início, claro. Mas viveria.

Por fim, o momento de conferir a média final chegou. Descobri na reunião de pais que conseguira um 7 na média geral, juntando todas as matérias. Nada mal. A 8ª série, no Mont Carvalho, era dividida entre períodos da manhã e da tarde. No matutino havia três turmas: A, B e C. No vespertino, quatro: D, E, F e G. No fim do ano letivo, os professores perguntam e anotam em qual período o aluno tem preferência de estudar. Sempre gostei de estudar pela manhã, e tinha achado uma tortura desperdiçar meus últimos três anos indo à escola à tarde – porque não tinha nenhuma outra opção. Combinei com Júlia de nos matricular no período matutino e assim o fizemos. Segundo os professores, a seleção para alunos no período que eu havia escolhido era por base de sorteio. Ou seja, eu teria que ter muita sorte.

Na segunda quinzena de Dezembro, já de férias, viajei com minha mãe e meu irmão para o Ceará, terra natal de minha avó. Três dias de viagem dentro de um ônibus. Levara alguns livros e um MP4 com todas as músicas que mais gostava de ouvir. Estava animado.

Minha madrinha e alguns de meus primos já estavam lá, para as férias. Meu primo não tinha nem um ano e minha prima, Eduarda, estava com 12 e nos dávamos super bem. As férias seriam produtivas, afinal.

Durante os dois meses, aprendi a andar de moto mesmo sendo um menor de idade – o que não era problema, já que se tratava de uma cidadezinha do interior sem muito policiamento. Até que um dia, ao descer uma ladeira perigosa, acabei levando um tombo que causou vários cortes profundos em meu pé esquerdo. De quebra, a moto não estava mais querendo funcionar e a dor me impedia de seguir para casa empurrando-a, a pé. Após várias tentativas, consegui fazer o motor pegar e tentei seguir, mesmo a moto “morrendo” a cada um minuto.

Tive que mentir para minha mãe e meus avós. Relatei que uma vaca havia aparecido no meio da pequena estrada e, para evitar um acidente maior, havia me atirado à cerca do lado esquerdo. Eles não acreditaram muito. A moto teve problemas sérios que precisariam de reparos custosos. A partir daquele dia, meu avô passou a esconder a chave de mim. Meu pé sarou sem precisar de atendimento médico. Mas a cicatriz dos cortes permaneceu.

Não falei com Júlia durante esse período longe. Por outro lado, Tiago adorava visitar meus pensamentos e meus sonhos.

***

Somente em fevereiro voltamos de viagem, duas semanas antes das aulas recomeçarem. Um novo ano. Um novo começo. No dia seguinte à minha chegada, liguei para a escola e descobrir que meu nome constava na lista de alunos que estudariam na 8ª série do período matutino. Fiquei muito contente. Em seguida, liguei para Júlia para avisar que eu estava de volta, comuniquei a novidade e ela revelou que estava no período da manhã também. Um prato cheio.

Na semana seguinte, a coordenadora da escola ligou para comunicar que o material escolar havia sido entregue pelo governo do estado e que o responsável precisaria ir até lá para retirar, antes do início das aulas. Acompanhei minha mãe e reparei a lista em que meu nome constava: 8ª A.

Estava bastante ansioso para o início das aulas. Minto. Estava ansioso porque queria vê-lo. E então, me toquei: e se ele não estivesse no horário da manhã? E se ele tivesse reprovado – mesmo sabendo que a 7ª série só reprova por faltas. Fiz tantas perguntas que gritei a mim mesmo para parar. Eu só deixaria de ver Tiago se ele tivesse trocado de escola. Se continuasse à tarde, eu ficaria todos os dias durante um tempo a mais no portão durante a minha saída, só para vê-lo entrar. Neurose demais, eu sei. Nos nove meses em que Tiago entrara em minha vida, ele já tinha se tornado uma cera obsessão. Mesmo sem conhecê-lo.

De qualquer forma, passei a sentir saudades da escola em si. Não via Júlia desde o dia da reunião escolar, no ano anterior. Estava certo de que o ano de 2008 seria impecável para mim. Tinha que ser perfeito. Já tinha começado muito bem.

Por fim, o primeiro dia de aula chegou. Estava tão ansioso, que havia colocado o despertador do celular para 5h40 da manhã. Levante e tomei um banho quente. Dias antes, Elica surpreendentemente me ligara para combinar de se encontrar comigo no portão. Então nós tínhamos voltado a ser amigos? Veríamos. Já Júlia me esperaria no pátio. Minha mãe me acompanhou até a esquina da rua da escola e segui sozinho. Elica me encontrou e logo foi me contando que não estava mais namorando ninguém. Como se eu me importasse.

Entrei na escola e vi Júlia conversando com algumas colegas da nossa classe do ano anterior. Quando nos viu, ela correu para nos abraçar. Foi uma sensação boa para um dia que parecia prometer muito. Classe nova: amigos novos. A esperança de que fossem mais tolerantes com meus trejeitos, já que não conseguia me livrar deles. Também teríamos novos professores. E claro, o novo período. Elica só não estava mais contente, porque Manuela não havia sido selecionada para o horário da manhã.

Seguimos os três para o pátio, que ainda estava vazio.

– E aí, como foi na sua avó? – Perguntou-me Júlia.

– Foi ótimo. Eu adoro demais o interior. Aprendi até a andar de moto! – Respondi, omitindo o fato de que tinha caído.

Enquanto caminhávamos, eu olhava para cada pessoa presente no pátio, a procura do rosto de uma só pessoa. Por fim, após várias conversas, seguimos para o mural onde as listas de alunos haviam sido fixadas. Sabia que estava na 8ªA, mas iria me certificar de qualquer forma. Procedimento padrão. Procurei meu nome.

“Gustavo Alexandre dos Santos. Gustavo Almeida Guimarães.”

Epa. Estremeci. Olhei a lista mais uma vez, porém Gustavo Moutinho Paiva não constava na lista. Júlia Karine de Oliveira Martins e Elica Coroa Diniz estavam lá. O meu, não.

Mudei para a 8ª B, e não havia nenhum Gustavo lá. Depois, olhei a lista da 8ª C, a última classe da manhã. E meu nome não estava lá também. Meu coração disparou e comecei a tremer. Que diabos? Como eu não estava constando em nenhuma lista?

– Gente, meu nome não está em nenhuma dessas salas! – Afirmei para Elica e Júlia, minha voz falhando.

Nesse meio tempo, o sinal tocou e todos os alunos estavam subindo para suas primeiras aulas. Aquilo não poderia estar acontecendo comigo. Liguei na escola antes das aulas iniciarem, me confirmaram que eu estava no período da manhã. Eu mesmo tinha visto meu nome na lista da 8ª A, no dia da entrega do material. Por que eu não estava lá?!

– Vou à direção. Meu nome não está aí! – Afirmei.

– Nós precisamos subir! – Disse Júlia. – Olha, nossa primeira aula é na sala 1, tá?

– Tá ok. Me desejem sorte!

Então segui em direção à secretaria. Havia mais três alunos lá, parados na porta que ainda estava fechada. Passados mais ou menos 15 minutos, a coornadora surgiu e contei meu problema a ela, que pediu para aguardar a chegada da diretora. A primeira aula terminou e começou a segunda. Fiquei cerca de uma hora e meia esperando até a velha aparecer.

Mais alguns minutos em que conversou com a coordenadora na sala. E por fim, a diretora Adélia resolveu nos chamar.