Prólogo

Por que tem que ser assim? Por que existem tantos obstáculos no caminho para impedir uma única pessoa de ser feliz? Às vezes sinto ódio de mim mesmo. E ao mesmo tempo, procuro alguém a quem possa jogar toda a culpa. Por que eu? Por que eu não poderia ser normal no ponto de vista de toda a sociedade, do mundo inteiro? Esses comentários, esses olhares, essa necessidade que as pessoas têm de abominarem aquilo que não consideram ser correto...

Eu queria ter como fugir. Já que minha sina certamente é permanecer sozinho o resto da minha vida. Ou então, gostaria de um recomeço. Gostaria de conhecer uma nova cidade, de preferência pacata, onde as pessoas não conheceriam meu rosto, nem minha história, e eu poderia começar do zero. Deixar aquele antigo eu para trás. Enterrá-lo de vez. Mas minha sorte não me permite ter esse luxo e tenho que continuar aqui. Vivendo? Acho que não.

***

Considero-me um garoto normal. Claro, às vezes também sou muito inocente. Já conheço o mundo e suas garras terrivelmente afiadas. Para entender melhor minha situação atual, preciso voltar alguns anos, quando eu ainda estava na pré-escola. São apenas alguns acontecimentos rápidos.

Na época, eu também me considerava uma criança normal. Tinha amigos, acredito que meus outros colegas gostavam de mim. Foi neste rápido período da vida que conheci uma das melhores pessoas do mundo: Mateus. Meu melhor amigo e companheiro de todas as horas. Uma amizade forte, verdadeira, inocente. Uma pena que, atualmente, não posso dizer o mesmo.

Quando entrei para o ensino fundamental, em 2001, aos sete anos, descobri que o mundo era habitado por canibais. Apesar de ter amigos, sempre fui uma pessoa muito reservada. Não gostava de me abrir, de expor sentimentos, nem nada parecido. Neste ano, comecei a entender o que as palavras “baitola”, “boiola” e “viado” realmente significavam. De vez em quando, cruzava com uma pessoa podre de espírito que sentia prazer em carinhosamente colocar esses apelidos em mim. Nunca dei muita importância, mesmo que tenha reclamando ao professor ou diretor vez ou outra, quando a situação se agravava um pouco mais.

Atualmente tenho 14 anos, e estou na 7ª série do Ensino Fundamental. Meu nome é Gustavo. Sou apenas mais um aluno em uma escola lotada de alunos ignorantes, que se acham acima do mundo, acima de todos, especialmente de alguém como eu. Felizmente, em meio aos conflitos diários com brincadeiras de mau gosto, eu ainda contava com o apoio do melhor amigo, Mateus. Agora, estudávamos juntos há nove anos. Conversávamos dos mais diversos temas, mas o nosso preferido sempre foi cinema. Sou fanático por filmes e esse gosto em comum conseguiu nos fortalecer um pouco mais.

Eu ainda não sabia o que era amor. Uma única vez, tinha sentido atração por Elica, uma das meninas da minha classe. Apenas atração, embora nunca tenha conseguido identificar meus sentimentos em relação a ela. No ano anterior, entrei em um dos maiores rolos da minha existência. De repente, me vi trocando bilhetinhos com Elica durante as aulas, tudo porque suas amigas começaram a dizer que ela tinha uma espécie de “paixonite” por mim. Acredito que isso tenha “ativado” a atração que passei a sentir por ela. Através dos bilhetes, ela um dia me perguntou: “o que você faria se eu dissesse que quero ficar com você?”. Enxerguei esse pedido como uma chance de dar o meu primeiro beijo. Aceitei. E durante o próximo um mês e meio, Elica tentou uma aproximação, mas nunca aconteceu um beijo. E acabou de um jeito estranho. Cheguei à escola um dia, e nós não estávamos mais nos falando.

Não liguei. Eu certamente já era motivo de piada entre o grupo de amigas dela, e minha única preocupação era que a história vazasse. Afinal, como nós tínhamos aceitado ficar um com o outro, sem realmente ficar? Eu queria dar o meu primeiro beijo, já tinha passado do tempo. E tinha afeição por Elica, mas não da forma como ela desejava. Tentei, e não consegui beijá-la. Acabei afastando-a, abrindo mão dos míseros selinhos que trocávamos na entrada e saída da escola. E eu sabia exatamente o motivo de tudo isso.

Embora Elica tivesse seu atrativo, o que realmente despertava minha atenção eram os meninos. Não que eu notasse em todos os meninos da escola, afinal, eles eram canibais, alguns nojentos, outros metidos. Mas me sentia atraído por um ou outro. Nunca tinha contado isso a ninguém. Pra quem recebe apelido de “viado” e “bichinha” e derivados, não podia me dar esse luxo.

Aqui, entra o ponto da minha sexualidade. Hoje tenho certeza que sou homossexual, não sinto a mínima atração por outras meninas. Não me incomodava, realmente. Tudo o que eu tinha que fazer era manter em segredo e continuar negando as acusações que os canibais me faziam diariamente acerca disso. De qualquer forma, eu me considerava feliz.

Agora estávamos já no 7° ano e recebemos alguns alunos novos em nossa classe, considerada a pior da escola pelos professores. Minha sorte, obviamente, permitira que eu fizesse parte de uma sala com esse título. Já havia se passando algumas semanas desde o início do ano letivo e reparei que uma das alunas novas, Júlia, rapidamente tinha feito amizade com Juliana, uma menina magrela, de pele morena e cabelo crespo, com o rosto em formato bizarramente oval e excluída pelas outras meninas. Elas tinham se juntado a outra menina nova, Cristina, com cabelos castanhos e cacheados, sempre presos a um coque. Um pouco mais alta que as duas amigas, com pernas que chamavam a atenção dos meninos, mas um rosto que os afastava. Maquiagem pesada e chamativa.

Felizmente, era a última aula do dia. Inglês, com o verbo to be na lousa para quem ainda não tinha aprendido.

– Ontem eu fui assistir “Harry Potter e o Cálice de Fogo”, te contei? – perguntou-me Mateus, sentado em uma carteira ao lado da minha.

– Não! Mas e aí, você curtiu? – respondi.

– Nossa! Mano, é muito louco! O melhor filme de todos até agora. Aquele torneio tribuxo foi muito massa. Gostei demais. Você já tinha lido o livro, né?

– Eu li uma vez. Você tinha que ler também, gosto muito dos filmes, mas os livros são infinitamente melhores, com mais detalhes, um aprofundamento superior em toda a história envolvendo o Harry.

– Sei. Mas não tenho como comprar os livros agora. Tenho vontade de ler. Se ao menos tivesse nessa biblioteca.

Reparei que Júlia, sentada à minha frente, empurrava sua carteira para trás, alinhando-a com a minha como se estivéssemos sentados em duplas. Aparentemente, Juliana estava pedindo por mais espaço.

– Oi! – disse, e abri um pequeno sorriso.

– Oi! – disse ela.

– E aí, você tá gostando da escola? – perguntei.

– Ah, eu tô. É diferente das outras escolas que já estive, tem muito mais alunos nas salas. Na minha outra escola, tinha apenas 20 alunos na minha sala.

– E por que você mudou?

– Nós mudamos de casa. A gente morava em um prédio mais longe daqui, daí encontramos uma casa perto de um hospital infantil, próximo ao centro do bairro ali embaixo, e me matriculei aqui. Tenho que pegar ônibus e tudo.

– Eu também pego ônibus pra vir pra escola – disse Mateus, entrando na conversa.

– Eu moro aqui perto. Graças a Deus não preciso de ônibus. Deve ser uma tortura – comentei.

– Só de manhã. É um sufoco pra entrar. Mas pra voltar é tranquilo – respondeu Júlia.

– Eu não sei se aguentaria. Odeio pegar ônibus. Coisa de pobre, né? – disse Juliana, também entrando na conversa.

– Ah, mas se a gente precisa do transporte público, pode fazer o quê? Tem que aturar – disse Mateus.

– Mas então – comentei. – Estava falando com o Mateus sobre o último lançamento de Harry Potter no cinema. Você gosta?

– Eu adoro Harry Potter. Fui ver “O Cálice de Fogo” no dia da estreia. Adorei o filme, mas o livro é melhor.

– Eu também fui na estreia. E acabei de dizer pro Mateus que o livro é melhor! – soltei uma risada.

– Vocês gostam de Harry Potter? Meu Deus, que coisa insuportável! – disse Juliana.

– Que crime você dizer uma coisa dessas – repreendi. – Nunca vi uma pessoa falando mal de Harry Potter. Tô chocado!

– Juliana é muito louca. Não sabe o que tá perdendo! – disse Júlia.

A partir disso, começamos a conversar. Logo, Mateus juntou-se a nós. Juliana e Cristina ficaram mais à frente, conversando entre si, e não nos deram muita atenção. Dialogamos bastante, sobre diversos assuntos, até o fim da aula.

Minha amizade com Júlia teve início naquele dia, durante aquela conversa. Pode-se dizer, também, que minha amizade com Mateus passou a enfraquecer a partir daquele momento. Júlia era uma pessoa cativante, carismática, eu gostava de conversar com ela. E acabei deixando o meu grande amigo de lado. Ele, na verdade, estava sempre por perto. Tentava puxar algum assunto comigo, tentava conversar com Júlia, mas no fim era sempre deixado de lado, como se não existisse. De início, eu não conseguia perceber isso – o que talvez seja ainda pior. Não tinha intenção.

Com o passar das semanas, fui percebendo que Júlia também conseguia ser dominadora, quando assim queria. Mateus se afastou de mim, e ela parecia se divertir com isso. Afinal, falava mal dele para mim.

– Ai Gustavo, como você aguenta ficar perto do Mateus? – perguntou ela, certa vez.

– Ele é meu amigo desde que éramos crianças, desde que me entendo por gente, pra ser sincero. – Respondi.

– Ai meu Deus! Eu teria ficado louca se caísse nas mesmas salas que ele desde sempre! E essa risada dele?

– Que tem a risada dele?

– Nossa, ela me irrita muito! Muito! É insuportável! Estoura os tímpanos!

Fiquei chocado. E não foi a única vez que ouvi essas palavras saírem da boca de Júlia. Perdi a conta. Eu era idiota a ponto de concordar com ela. Em determinado momento, Mateus decidiu parar de tentar: ele já não andava mais conosco. Aconteceu. Pode me julgar.

***

Então agora, no grupo de amigos, existia somente eu, Júlia e Juliana. Cristina já não estava mais entre nós, só na mesma classe. Ela não gostava de mim. Em uma das ocasiões que culminou em seu afastamento do grupo, ela havia tido a audácia de comentar com Júlia sobre suas suspeitas de que eu e Mateus havíamos roubado dinheiro de sua bolsa. Um absurdo. A partir dali, passei a odiá-la. Melhor, a desprezá-la. Só assim, consegui enxergar Cristina como ela realmente era: uma atirada. Prestei atenção em seu comportamento, para ter o que falar caso entrássemos em uma discussão. Suas atitudes perante os meninos da escola me surpreendiam e enojavam. Como era irritante, a Cristina. Sua voz de taquara rachada, era como se estivessem me forçando a ouvir o som de uma faca pressionada contra uma lousa.

Júlia, aliás, também gostava da atenção que os meninos davam para ela. Creio que isso seja natural, é claro. Em algum momento da vida, deve ser bom se sentir desejado. Até então, isso não tinha acontecido comigo. Eu a invejava. Sabia que errado, mas não tinha como evitar.

Surpreendentemente, não sentia falta de Mateus. Claro que fiquei triste quando percebi que ele estava se afastando. Senti como se estivesse sendo “abandonado” – o que é, no mínimo, egoísta e hipócrita de minha parte, já que contribuí pra esse afastamento. O peso na minha consciência foi maior quando percebi que ele estava sozinho: não tinha nenhum amigo, ninguém para conversar. Ele estava solitário e isso era doloroso, pois eu não estava. E eu deveria ser a companhia dele, como sempre. Porém, meus momentos e reflexões de chateação eram curtos, não me permitia ficar mole por conta disso. Enxerguei algo melhor em Júlia e era perto dela que eu queria ficar. Minha melhor amiga. E se ela não gostava da presença dele, eu já não podia fazer nada.

***

Meados de Maio. Apesar de Cristina não fazer mais parte do nosso grupo de amigos, ela ainda mantinha contato com Júlia. E foi ela que acabou revelando o interesse de Henrique na minha amiga. Henrique não era um aluno novo na escola, mas era na nossa classe. A direção o havia trocado de turma por ser, nas palavras dele, um “pé no saco”, e acreditavam que o afastando dos amigos, o quadro grave de comportamento dele mudaria. Mas o ponto aqui é outro: ele queria ficar com Júlia. Ela o considerava “feio demais para os padrões”. Cristina adorava insistir.

– Amiga, você devia ficar com ele – repetia ela inúmeras vezes.

– Cris, por favor, eu já disse que não quero! – respondia Júlia, inúmeras vezes.

Henrique insistiu bastante e se aproximou muito de Cristina para fazê-lo. Tanto que decidiu mudar de garota. Optou pela própria Cristina. Que tremendo mau gosto. Na minha escola, duas pessoas ficando era como um grande “evento”. Era anunciado por entre os alunos e todos ficavam entusiasmados, como se todos fossem tirar algum proveito desse beijo. Era assustador. Todos estavam sabendo que Henrique iria “pegar” Cristina ao término da aula. O sinal bateu, e Júlia me agarrou pelo braço.

– Vem! Vamos logo!

– Por quê? – perguntei, curioso. A troca de saliva entre Henrique e Cristina não tinha nada a ver comigo.

– Porque você é o meu melhor amigo.

Fiquei maravilhado. Embora eu e Mateus fôssemos melhores amigos “inseparáveis”, nós nunca tínhamos dito isso realmente. Nunca, nenhuma pessoa havia sido tão direta a ponto de dizer pessoalmente que eu era seu melhor amigo. Devia ser algum tipo de carência. Ou então, o fato de gostar demais de Júlia. Fiquei tão contente, que saí correndo ao lado dela para fora da escola. E Henrique e Cristina ficaram. Foi nojento, claro. Eu não sou muito de julgar as pessoas pela aparência, acho isso péssimo. Mas o “casal” não tinha a mínima química. Não foi uma coisa muito interessante de olhar. Além disso, também me senti penalizado por Henrique. Ele merecia mais.

***

Em toda a minha vida, eu só tinha me interessado amorosamente por uma pessoa. Ah, o amor não-correspondido, esse eu conhecia. No ano anterior, um novo aluno entrara na minha classe. Rafael. Ele era, fácil, um dos mais lindos da escola. Tinha cabelos castanhos bem claros, liso com uma sutil franja caindo pela testa. Olhos verdes. Seu rosto parecia o de um boneco, só que natural e muito mais agradável de olhar.

Passaram-se os meses restantes do ano. Rafael não se tornou meu amigo, mas meu colega. Falávamos o básico na sala de aula. E ele era sempre muito atencioso, simpático. De forma que nenhum outro colega de classe do sexo masculino tinha sido comigo, com exceção de Mateus.

Rafael foi, então, a primeira pessoa por quem meu coração disparou. Foi uma sensação estranha, o que eu sentia por ele. Talvez minha carência também tenha falado alto demais e transformado tudo em algo que não deveria acontecer. O amor é estranho.

Com a chegada de Júlia, o cenário mudou um pouco. Tornei-me amigo dela e logo Rafael passou a se aproximar, com o interesse dele. Consequentemente, aproximou-se de mim e fui feito de “cupido”. Ele queria ficar com ela. Júlia, por outro lado, estava relutando. No meio disso tudo, enxerguei uma excelente oportunidade de ficar mais próximo daquele que eu queria ter perto de mim. Aceitei ser usado de “cupido”. Como bônus, conversei com Rafael várias vezes por telefone. Aproximamos-nos positivamente. Caminhei com ele até a casa de sua avó, que ficava próximo a escola. E eu amava cada segundo daquilo.

Finalmente, o beijo aconteceu. Foi um dia após o término da aula, em frente à lan-house que eu costumava frequentar para usar a internet. Estava me sentindo satisfeito, mesmo sendo uma loucura: fiz com que minha melhor amiga ficasse com o menino que eu amava, só pra eu poder ficar perto dele, já que não tinha chances de tê-lo.

Rafael também foi a primeira pessoa causadora de uma briga entre mim e meus pais. Ele estava querendo ir ao cinema com Júlia e alguns amigos, e fui convidado a acompanhá-los. Estava vibrando muito. Mas para minha desgraça, minha mãe não permitiu que eu fosse sozinho – afinal, eu nunca tinha saído de casa para o shopping ou qualquer lugar sem estar acompanhado. Chorei, esperneei. Mas não me deixaram ir. Foi tão frustrante!

O “namoro” de Júlia e Rafael também não durou muito tempo. Duas semanas, para ser mais preciso. E terminou, tecnicamente, por minha culpa. Talvez por Rafael ser muito orgulhoso, ou autocentrado. Em uma das aulas na escola, Júlia estava conversando com ele e eu a chamei por um segundo, para que pudesse corrigir uma frase em inglês no meu caderno – ela estava fazendo o curso particular avançado, e eu ainda estava no básico. O que aconteceu foi que Rafael não gostou de Júlia ter desviado sua atenção para mim no momento da conversa com ele. E pronto. Acabou a “relação”. Pode parecer forçado, sim. Porque é forçado. Mas foi exatamente assim que ocorreu.

Com o término, consequentemente Rafael se afastou. Ele ainda me cumprimentava, com um “oi” e “tchau” no horário de entrada e saída. Mas por conta de minha amizade com Júlia, a chance de ser amigo dele também me foi tirada. Logo, fui capaz de superar.

***

Rafael foi o único. Não me interessei amorosamente por ninguém além dele. E em nenhum momento. Atrações são normais, claro. Mas eu era apático em relação a isso. Até um dia. Quando reparei em um garoto de cabelos castanhos, um corte bem curto com algumas pontas arrepiadas. Ele era muito bonito. Estou sendo modesto: ele era lindo. Prestando atenção em seu rosto, reparei que era o mesmo jovem que eu havia visto algumas vezes no corredor. Só que nas ocasiões anteriores, ele estava com o cabelo comprido, como uma cortina caindo sobre as laterais do rosto. No dia atual, ele estava com o braço quebrado. E assim, passei a prestar mais atenção. Estava sempre em um grupo com quatro ou cinco amigos, todos eles muito metidos. O sorriso do jovem era lindo, de derreter corações. Seu rosto era bem desenhado e cumprido, mais quadrado que redondo – o que era um charme. Seus lábios eram finos e os olhos possuíam um tom castanho claro que combinava perfeitamente com o cabelo.

Passei o restante do dia lembrando o rosto dele. Fiquei abismado com a beleza do garoto e isso começou a me assustar. Eu não tinha interesse em nenhuma garota. E também em nenhum menino – ao menos, não mais, já que Rafael não era para mim. Talvez eu não fosse muito normal, quem sabe. Eu nunca tinha me apaixonado por ninguém. Não poderia acontecer agora. Eu estava tão bem. Não queria ter que enfrentar o que quer que fosse a tal sensação.

***

Nas semanas seguintes, percebi que Mateus fez amizade com um menino chamado Yaxley. Fora o nome, ele era muito estranho. Moreno, com cabelos curtos e olhos escuros. Lábios carnudos. Ele não falava com ninguém, e era aluno novo. Não pude reclamar da substituição de Mateus, afinal, eu mesmo causara tudo aquilo. Sendo assim, pude superá-lo com muito mais facilidade. Nossa amizade de anos, tão duradoura, tão forte, fora reduzida a um mero “oi” durante a entrada. Às vezes, um aperto de mãos. Sem conversa, como era o costume. E um “tchau” na saída.

Honestamente, eu me odiava. Estava muito feliz tendo Júlia como minha melhor amiga, e não sentia tanta falta de Mateus. Mas ele era meu melhor amigo. Meu primeiro grande amigo, e eu o tinha perdido. O tempo é uma coisa curiosa. E eu, aparentemente, sou uma pessoa bem fria e distante. Chegou um momento em que só lembrava de meu grande amigo quando notava sua presença na sala de aula. Geralmente, em devaneios. Quando minha atenção era desviada. Ou quando ele participava ativamente das aulas, principalmente com o professor Sérgio, de matemática. Triste. Revoltante. Frustrante.

***

Com mais frequência, passei a reparar mais no garoto cujo braço já não estava mais quebrado. Assisti a uma partida de futebol na quadra da escola somente por conta dele. Não tirava os olhos dele. Até me perguntei se alguma pessoa não havia reparado em mim, encarando aquele menino. Queria descobrir mais sobre ele. Foi então que passei a reparar mais em seu grupo de amigos e, para minha surpresa, reconheci um deles. Um jovem igualmente bonito, de cabelo liso, claro e também arrepiado. Seu nariz era pontudo, mas compensado pelas belas maçãs no rosto e pelo tom de pele bronzeado. Era Nicholas, e ele havia sido uma espécie de “namorado” de Elica. Ah, o destino. Justamente Elica, o meu “rolo” que não deu em nada.

Antes do nosso afastamento, Elica costumava me mandar entregar cartas para ele. A tarefa ficou insuportável quando eles terminaram, já que ela queria descobrir o motivo de ter sido deixada de lado. Eu tinha minhas dúvidas. O grupo de amigos era metido, nariz em pé. E Elica não esbanjava beleza, nem carisma. Ela era o exato oposto de Nicholas. Talvez, não seja muito difícil entender o motivo de ter dado um fim na relação.

De qualquer forma, eu agora poderia saber mais sobre o rapaz charmoso, através de Nicholas. Como iria fazê-lo, eu não sabia. Mas tinha que tentar. Ao menos o nome eu precisava saber. Tinha que descobrir. Senti a necessidade de saber o que ele gostava. Quais professores nós compartilhávamos. Seu horário de aulas, e muitas coisas mais.

Não estava conseguindo entender a mim mesmo. O “John Doe” me chamou a atenção por sua beleza. Por seus cabelos, seu modo de andar. Por ser impecavelmente lindo. Não sentia nada por ele. Nem sequer o conhecia. E isso era o mais estranho de tudo. Poderia dizer que é como quando você vai a algum lugar, shopping, restaurante, academia, e sente uma atração louca por alguém que está perto de você. Mas no meu caso, a coisa toda parecia ser bem mais que uma atração. Como resultado, estava com medo de mim mesmo.