Pungente

Desmoralizar


Quase que instantaneamente, fiz minha mãe ir até à escola para conversar com a querida e adorável diretora Adélia. Contei a ela sobre as vagas que haviam surgido, frisei que merecia, pois havia sido retirado da lista injustamente e, por fim, ela foi. Minha mãe detestava injustiças e tinha ficado penalizada com minha situação, embora não pudesse fazer nada para que os superiores da escola mudassem de ideia. Ela se preocupava comigo. Às vezes se irritava com meu comportamento, pois eu estava sempre me lamentando pela falta de sorte. Mas me apoiava.

Adélia disse a mesma coisa da última vez. Que um sorteio seria realizado e não havia outra forma.

— Essa vaga é minha por direito! – Protestei, nervoso. – Vocês tiraram o meu nome da lista da manhã por algum motivo!

— As listas foram alteradas, muitas pessoas que haviam sido transferidas para o período matutino, retornaram ao vespertino de última hora. – Respondeu ela. Que vontade de matar.

— Mas como é que vocês fazem uma coisa dessas? – Perguntou minha mãe, que já estava ficando nervosa também.

— É uma votação entre os professores. Eles decidem, por mérito, os alunos que devem passar para a manhã antes do início letivo.

Quase caí pra trás com a revelação. Então quer dizer que os professores, de última hora, decidiram que eu deveria retornar para o período vespertino, por que... Eu não era bom o bastante para o matutino? Eu não merecia? Minhas notas não eram ruins. De fato, elas eram melhores que as notas da Juliana, a amiga falsiane que compartilhei com Júlia no ano anterior. Ela tinha quase todas as médias vermelhas. E eu fiquei à tarde?

Estava com uma vontade imensa de gritar. De pular em cima da mesa da diretora e puxar seus cabelos loiros e quebradiços até que não restasse nem um único fio. Percebi que estava me sentindo muito nervoso ultimamente, e tudo era culpa da escola, da diretora. Dos professores.

— Então, o que faço? Tenho que dar meu nome e esperar? – Perguntei.

— Vamos anotar seu nome, e vamos realizar o sorteio até o fim da semana, assim os dois novos alunos irão para o período matutino já na próxima segunda-feira. – Respondeu ela.

— Então, ok. Meu nome é Gustavo Moutinho Paiva, e eu sou da 8ª F.

— Quando o sorteio for realizado, nós iremos chamá-lo para que você observe tudo pessoalmente.

— Certo. Então vamos embora. – Disse a minha mãe.

Fomos para casa e fiquei assistindo TV até o horário de me arrumar e almoçar. Minha mãe havia preparado uma bela macarronada, com molho de tomate: meu prato preferido. Não era comum ter essa refeição durante a semana, apenas aos domingos, o que significava que ela estava bastante penalizada com minha situação.

Encontrei Júlia na porta da escola durante a entrada e comuniquei que meu nome já estava no sorteio. Larissa juntou-se a nós e, para minha surpresa, disse que também estava inscrita no sorteio.

— Então, boa sorte para nós. Já pensou se dois de nós são escolhidos e o outro fica sozinho? – Comentei, temendo o pior para o meu lado.

— Seria ótimo se fossem três vagas, e nós três déssemos sorte! – Disse Larissa, entusiasmada.

— Eu preciso muito passar! Como é que dizem, na igreja, que a gente tem que fazer quando quer alguma coisa? – Perguntou Manuela.

— Uma promessa? – Disse Elica.

— Vou fazer isso. – Disse Manuela.

Após alguns minutos de conversa, entramos na escola e fui para a minha primeira aula: matemática, com o professor Ronaldo. Bruna estava sentada em sua habitual carteira e sentei-me à frente dela.

— Gustavo, eu estou completamente perdida na matéria desse professor! – disse ela.

— Quem manda faltar tanto? – Brinquei. – Ele parece estar com pressa de acabar esse jornal que o governo mandou.

O professor Ronaldo gostava de brincar durante as aulas, mas não era do tipo “light”. Ele tinha seus momentos assustadores: quando discutia com algum aluno, por qual motivo fosse, sempre deixava claro sua autoridade. Eu, particularmente, não gostava das aulas dele. Matemática nunca foi o meu forte e ela foi apenas complicando com o passar dos anos.

— Esse jornal é muito nada a ver também! – Disse ela, folheando-o. – Só tem coisa chata pra fazer. É por isso que ele quer acabar logo.

— Deve ser. Eu não aguento mais essas lições. E o pior é que nem tem explicação. A gente que se vire pra resolver tudo. – Protestei.

Não demorou muito até que nossa atenção fosse chamada pelo professor. Mesmo falando baixo, ele não queria conversas.

— Ei, vocês aí, bonitinhos! – Disse ele.

No mesmo instante, senti vontade de atirar uma flecha em sua cabeça. Pois em seguida, alguns dos meus adoráveis colegas fizeram um som do tipo, “uiiiii”, ao perceberem que o professor estava se referindo a mim. Perfeito. Era tudo o que eu precisava naquele momento.

Virei-me completamente para minha carteira e voltei minha atenção para o caderno, após a humilhação pública que haviam me submetido. Eu precisava ser sorteado. Eu precisava ter sorte o suficiente. Precisava.

Durante o intervalo, me reuni a Manuela como de praxe. Ela costumava ficar parada à porta do corredor que levava à direção, coordenação e sala dos professores, e sempre ficávamos ali até a hora de subir para as aulas novamente.

— Estou com cólica. – Comentou ela, exibindo uma expressão de desconforto. – Não estou conseguindo aguentar mais.

— Não é melhor sentar? – Perguntei.

Por sorte, algumas pessoas estavam subindo e um dos bancos do pátio estava disponível.

— Tô morrendo de ansiedade pro sorteio! Será que vai demorar muito?

— Não sei. – Respondeu ela, secamente.

— Só sei que tô aqui na torcida, na esperança de que eu seja um dos sortudos. Não aguento mais a minha sala. Preciso sair de lá. – Comentei.

— Até parece. Você tem média zero de matemática, acha mesmo que vai pro período da manhã? – Questionou Manuela, sem olhar para mim.

— O que? – Perguntei, chocado. Não conseguia acreditar naquela virada de humor. – Quem disse que eu tenho nota zero de matemática?

— O professor Carlos, do ano passado. Ele me falou que você não vai passar porque tem média zero. – Respondeu ela. – Eu tenho média 8.

— Eu não tenho média zero coisa nenhuma! – Rebati, nervoso. – Tive uma única nota vermelha com ele, em um bimestre! E foi de raspão! Se ele te disse isso mesmo, é uma mentira! E não tem nada a ver esse negócio de notas!

— Vamos ver então, quem é que vai passar pra manhã. – Disse Manuela, levantando-se.

— Nossa, Manuela! O que é isso? Você tá ficando louca? – Questionei, mas ela se afastou sozinha e subiu as escadas.

Fiquei absolutamente perplexo. Mas não deveria. Afinal, estamos falando de Manuela. Aquela que, ao lado de Elica, escreveu barbaridades a meu respeito em um Burn Book no ano anterior. Estávamos próximos porque, do nosso grupo de “amigos”, éramos os únicos que restavam à tarde. Isso não significava que o ódio, o desprezo dela quanto a mim havia passado. E a possibilidade de me ver sendo levado para o período da manhã talvez tenha atiçado ainda mais este sentimento de inveja.

E além disso, o que o professor Carlos queriam comentando sobre uma suposta nota zero, que nunca existiu? Agora eu tinha certeza do quanto esse professor me desprezava, também. Ele sempre pareceu se incomodar com minha presença na sala de aula. Nas reuniões, dizia a minha mãe que eu tinha potencial, mas era preguiçoso. Talvez ele achasse que eu prejudicava o entendimento das minhas amigas. Eu não me importava.

O que fazer agora? Manuela, mesmo sendo uma falsiane, era a coisa mais próxima que eu tinha como amiga naquele infernal período vespertino. Sem ela, eu estaria completamente sozinho. Não poderia contar com Bruna. Ela já estava começando a fazer o que tem de melhor: faltar às aulas. Teria que tentar me aproximar de qualquer outra pessoa naquela sala, para ter um aliado. Não posso esperar que ninguém me defenda, mas torturas psicológicas são bem mais fáceis de lidar quando você tem alguém a seu lado.

***

No dia seguinte ao nosso desentendimento, Manuela me cumprimentou como se nada tivesse acontecido, assim que chegamos à porta da escola. A principio, estranhei seu comportamento. Mas claro, tratava-se de Manuela. Que possuía um dom extraordinário de enganar as pessoas e fingir que, ao menos, conseguia suportá-las. Conversei com Júlia por poucos minutos e então decidi entrar. Manuela me acompanhou.

— Então você está falando normalmente comigo? – Questionei.

— E por que eu não estaria? – Rebateu ela.

— Ué?! Já esqueceu do ataque gratuito que você me fez ontem na hora do intervalo? Querendo me rebaixar por conta de uma suposta nota vermelha?

— Eu estava com cólica e tô me sentindo muito nervosa com esse negócio do sorteio. Não quis ofender. – Disse ela.

— Eu também tô nervoso, e nem por isso quis te desmoralizar falando que você não conseguiria passar. – Afirmei.

— Desculpa. Mas eu não disse nenhuma mentira sobre a sua nota. Foi o próprio Carlos que disse aquilo pra mim.

Aquele professor realmente me desprezava, não havia outra justificativa.

— Quando ele disse isso? – Perguntei.

— Ontem, ele me encontrou no corredor e falou que queria muito que eu passasse. E aí falou que viu seu nome na lista, mas que você nunca passaria porque tinha média zero com ele.

Senti meu sangue ferver, como de costume.

— Meu Deus! Esse professor é louco! Eu tive nota vermelha com ele, mas nunca tive zero! Nem em provas, quanto mais em médias. Que absurdo isso. Tenho certeza absoluta que foi ele quem tirou o meu nome da lista da manhã na semana que antecedeu o início das aulas.

— Não sei, viu... – Disse Manuela, indiferente.

— Claro que foi. Tudo faz pleno sentido. Ele tem birra comigo, caso contrário, nem mencionaria meu nome pra você. Só fez porque deve ver a gente andando juntos. Vai saber se ele não tem mesmo influência com esse tipo de coisa, né.

Paralisei quanto vi Tiago parado ao muro do pátio. Eu ainda não tinha conseguido me acostumar com o impacto que ele tinha em mim. Mesmo estando lá, apenas parado. Sem fazer absolutamente nada. Manuela percebeu o meu devaneio.

— O que foi? – Perguntou ela.

— Nada.

E segui andando, sem olhar novamente para o local onde Tiago estava parado, de braços cruzados, com seus amigos. Felizmente, Bruna estava na escola. Despedi-me de Manuela e subi com ela para a primeira aula que seria da professora Miriam. Quando chegamos ao corredor, reparei que Walter estava parado à porta com seus colegas. Estremeci.

Seguimos caminhando e quando chegamos à porta, já aberta, Walter colocou o braço no meio. Bruna pediu licença, ele deixou-a passar, mas quando fui fazer o mesmo, ele voltou a impedir.

— Deixa eu passar? – Pedi, já temendo a reação.

E foi dito e feito. Ele riu na minha cara e imitou minhas palavras, afinando a voz e fazendo gestos com uma de suas mãos. Gestos nada amigáveis.

— Licença! – Pedi mais uma vez, sem sucesso.

Saí de perto e encostei-me à parede, um tanto distante de Walter. Felizmente, a professora Miriam logo passou diante de nós. Ralhou, por estarmos fora da sala – como se eu tivesse opção –, e por fim, pude entrar. Bruna havia segurado uma carteira para mim, perto dela. E Walter sentou-se ao fundo da sala, mais distante, para a minha alegria.

A professora começou a aula explicando que, no dia seguinte, ela iria fazer a marcação definitiva das carteiras. Iríamos entrar na sala e escolher o lugar que iria ser nosso obrigatoriamente pelo resto do ano. Ou seja: teria que escolher aquela que ficaria o mais longe possível de Walter. Ele gostava sentar no fundo, e eu gostava das carteiras da frente. Especialmente aquelas encostadas à parede da janela.

Nos últimos dias, Walter sempre encontrava uma maneira de me diminuir. A questão de me transferir para o horário da manhã era mais que uma vontade, ou um capricho, por não ter amigos. Era uma questão de sanidade. Até quando eu conseguiria tolerar aquelas brincadeiras que eram tão insuportáveis? Durante toda a minha vida, sempre fui vítima de apelidos desagradáveis. Mas agora a situação havia atingido um ponto de ebulição, uma vez que Walter realmente parecia ser o tipo de pessoa que achava um problema ter que conviver com um homossexual.

Por conta disso, meus problemas comigo mesmo aumentavam cada vez mais. Eu não gostava de dizer isso, mas sentia realmente muito ódio. Não era gay assumido, mas as pessoas simplesmente concluíam isso a meu respeito. Não que fosse da conta delas, porque não era. Mas era chato.

Meus pensamentos foram libertos quando a professora Miriam parou em minha carteira e avisou que precisavam de mim na direção. Imaginei que seria o sorteio. Arrumei minhas coisas, deixei a sala e rumei para lá. Encontrei Manuela e Larissa descendo as escadas, nervosas. Atrás de mim, vinham mais dois alunos. Já eram cinco. Será que surgiriam mais, tornando a concorrência maior?

— Estou tão nervoso, que nem sei! – Comentei.

— Boa sorte para nós! – Disse Larissa, conforme nos aproximávamos da porta.

A diretora Adélia estava em pé diante da mesa, com um sorrisinho torto no rosto. A coordenadora estava a seu lado. Uma folha de papel com alguns nomes estava em cima da mesa, ao lado de uma caixa de balas. Sutil. Reparei então nos cinco outros alunos que já estavam lá esperando. Dez. Mais três apareceram. Treze.

Treze pessoas com interesses iguais de uma oportunidade no período da manhã. Busquei não me desanimar. Pensamentos negativos, ou desistência antes da hora, talvez atraiam coisas negativas para a sua vida. A coordenadora cortou cada nome do papel com uma régua, conferiu os alunos presentes, mostrando a tirinha correspondente para cada um de nós. Depois, colocou-os dentro da caixa de balas e sacudiu.

Essa era a hora.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.