Esfregando os olhos, Barry bocejou e alcançou uma xícara do café expresso, que preparara para si mesmo. Havia sido uma longa noite desde o momento em que Iris dera os primeiros indícios de que estava entrando em trabalho de parto, pouco antes de completar os nove meses. Tudo naquele momento se encontrava menos iluminado e silencioso, mas mais cedo todos estavam mobilizados para acompanhar a dilatação, as contrações e a inquietude da mulher.

Então, Nora chegou. Enrugada e mais quieta do que poderia supor, se levasse em consideração a garota agitada e ansiosa que viera para o seu tempo. Ela chorara somente para sinalizar que chegara, para o encanto de Barry e o alívio de Iris, a qual não aguentava mais estar grávida. A entendia perfeitamente. No início, apesar dos constantes enjoos, era uma novidade e estavam encantados com a vida que crescia no ventre dela. Uma vida que, essencialmente, já conheciam.

Contudo, houve um momento em que Iris não conseguia mais conciliar sua vida profissional com a gravidez e tivera de pausar seus projetos, além de conseguir dormir muito pouco devido ao tamanho e peso de sua barriga. Após alguns exames, Caitlin confirmou as suspeitas de todos e explicara que a gestação de uma criança metahumana exigiria mais do corpo de Iris e, por isso, devia ter mais cuidados.

No fim, ela até se mostrara grata que a filha deles simplesmente resolvera chegar mais cedo do que previram. Depois do parto, notou que conseguiu descansar e dormir por bastante tempo, sendo acordada horas depois apenas quando a pequena Nora chorara pela segunda vez para comer. Enquanto isso, acompanhou Caitlin no primeiro e cuidadoso banho, descobrindo que ela fizera estágio em uma clínica de ginecologia e obstetrícia logo no início da faculdade, mas apenas não estava interessada na área, além de passar o resto da noite se levantando para ir verificar se estava tudo certo com a bebê.

Tinha a impressão de que seria sempre assim. Depois do que aconteceu em seu tempo, estaria a todo o instante alerta sobre o bem estar de Nora, paranoico de que algo poderia acontecer com ela e ser sua culpa. Sabia também que ficaria mais cuidadoso quando saísse para campo. Não que não o fosse, apenas podia ser mais, pois algo mudara no instante em que colocara os olhos no pequeno e frágil embrulho que a Doutora Snow lhe entregara.

Voltou para o quarto adjacente ao laboratório, preparado previamente para Iris e Nora, notando o movimento discreto da própria doutora ao lado do pequeno berço hospitalar, onde a pequena dormia junto à mãe. Sentada a uma cadeira, Caitlin descansava o rosto sobre os braços apoiados na lateral do berço e encarava o pequeno e dorminhoco bebê com um olhar carinhoso, um dos dedos correndo suavemente pela têmpora da menina, no limite onde o ralo, mas já perceptível, cabelo escuro começava a aparecer.

Sorriu observando a cena por um instante. Sem que precisasse pensar muito, sabia que ali estava sua amiga, não a doutora. A julgar por como Nora a tratava quando fora para seu tempo, era possível concluir que elas tinham uma boa relação naquela realidade onde desaparecera na Crise.

— Está admirando sua obra?

A viu sorrir levemente e levantar os olhos para Iris, por cima do berço, verificando que ela continuava a dormir. Em momento algum tivera dúvida de que ela seria a pessoa certa para cuidar delas e Caitlin passara aqueles meses completamente comprometida com a saúde de sua esposa.

Não foram uma nem duas as vezes em que discutiram, pois simplesmente não estava acostumado a uma realidade onde a doutora constantemente se colocava contra ele em nome de Iris, especialmente porque elas nunca haviam sido amigas realmente. Entretanto, no fim, tudo parecia estar em seu devido lugar.

— É a sua obra também. – Ela concedeu em um tom baixo por estar muito próxima de Nora. – Você foi bem lá dentro, durante o parto.

— Considerando que achou que eu surtaria...

— Basicamente. – Caitlin meneou a cabeça e se levantou colocando a cadeira no lugar antes de se aproximar com cuidado para não acordar mãe e filha. – Tenho algo para você.

Com um aceno, a seguiu para fora do quarto e pelo corredor de volta para o córtex. Notou que parecia estranhamente calada, tendo os olhos perdidos no caminho adiante, ainda que pudesse percorrê-lo de olhos fechados. Supôs que estivesse cansada depois de todas aquelas horas trabalhando, mesmo após o banho que tomara no vestiário após Cecile e ele garantirem que ficaria tudo em ordem.

A bolsa de Caitlin estava pendura em uma das cadeiras junto à estação de trabalho, onde costumava se acomodar e notou a que ela se referiu quando a viu alcançar a pequena caixa de cor branca, decorada por um laço proporcional muito delicado da mesma cor, aproximando-se para estender a ele. Rendendo-se, Barry colocou a xícara na bancada atrás de si e o pegou.

— Isso não era necessário. – Ela dispensou a formalidade com um gesto displicente. – Eu falo sério, Caitlin, você fez muito durante toda a gravidez de Iris. Se não fosse por você, não sei o que seria de nós hoje, na verdade.

— Obrigado. – A doutora disse em seu tom incisivo, certamente achando que jamais percebera como, desde o início, usava toda a sua educação para manipulá-los e não ser contrariada. – Mas, ainda assim, gosto de dar presentes. E este é especial.

Riu brevemente após fitá-la por um instante. Realmente, era possível notar nas leves olheiras do rosto sem maquiagem e até no fato de que seu cabelo, agora mais claro, estava preso em um coque meio solto. Apesar disso, aparentava a elegância que, naturalmente, a pertencia. Desviou a atenção para a caixinha novamente após vê-la levantar as duas sobrancelhas e a abriu para se deparar com um pequeno par de sapatinhos de crochê numa cor verde pastel com duas pequenas pérolas – possivelmente legítimas – enfeitando-os no alto.

— É uma graça, Caitlin.

— Não é muito diferente e talvez fiquem um pouco grandes agora, mas Nora poderá usar uma ou duas vezes. – Ela comentou cruzando os braços e dando de ombros. – Iris deve gostar, se parece com ela.

Ponderou por um instante que o estilo do sapatinho o lembrava mais Caitlin do que Iris, mas apenas fechou a caixa com cuidado e lhe sorriu em agradecimento, antes de puxá-la para um abraço apertado.

— Obrigada.

Não se importava com o presente, embora entendesse o gesto, e ela saberia que estava se referindo a todas as outras coisas. De alguma forma, Caitlin sempre sabia lê-lo na medida certa, mesmo quando não concordavam, desde o que dizia ao que não dizia até sua forma de pensar.

— Precisamos conversar.

Ouviu o suspiro pesado da outra contra ele e, no instante seguinte, ela se afastou mordendo os lábios. Franziu o cenho pela brusca mudança no clima, observando-a brincar ansiosamente com os próprios dedos enquanto todas as suas expressões demonstravam certa resignação.

— O que houve? – Ela respirou fundo e o deu as costas, se colocando atrás da estação de trabalho, encarando os monitores por um momento, como que pensando uma forma de começar, o que estranhou, pois hesitante não era um adjetivo que se adequaria à doutora. – Caitlin.

— Um mês atrás, recebi uma proposta de trabalho. – O tom dela foi baixo e obviamente calculado. – E eu aceitei.

— O quê?!

Retrucou quase de maneira estúpida, incapaz de ver aquele laboratório funcionar sem Caitlin. Não denovo, na verdade, pois ele nunca fora nada sem o time, sem pessoas como ela, estando lá por ele todos os dias ou sempre que precisasse. Contudo, a viu continuar tão linearmente quanto começara.

— É um hospital especializado em doenças genéticas, um dos mais conceituados do mundo. – Ela deu de ombros. – Vou trabalhar com pessoas comuns e ter a oportunidade de me aperfeiçoar nessa área.

Para Barry, era quase como se houvesse um eco em sua mente enquanto ela falava. Soltou um riso de maneira amarga, deixando a caixinha de lado e passando a andar de um lado a outro pelo córtex, cogitando todas as formas possíveis para fazê-la mudar de ideia, pois não a ter ali parecia inconcebível.

— Onde?

Ela levantou os olhos para ele, os lábios um tanto apertados em tensão. Se a analisasse melhor, na verdade, era possível perceber que estava inteira e completamente tensionada, dos ombros à respiração meio presa e não exatamente controlada. Não entendia precisamente o que vinha acontecendo, mas tinha certeza que aquela decisão não viera de lugar nenhum.

— Munique, Alemanha.

Sentiu-se estacar sob os olhos firmes pela convicção em detrimento da hesitação. Assim, concluiu que estava apenas o informando, não exatamente pedindo sua opinião, uma vez que, ela sabia e ele também: ainda que amigável, Barry seria egoísta. Apesar disso, tudo naquela situação aparentava estar fora de lugar, desde o simples comunicado à postura de Caitlin e àquela dor incômoda que tomava conta de seu peito ao constatar.

— Está indo embora. – Murmurou incrédulo vendo-a engolir em seco. – Realmente indo embora, não apenas... Trocando de emprego.

A observou abaixar a cabeça com um suspiro, os ombros também curvados, tanto em cansaço quanto em algo mais, que provavelmente deixava passar, brincando com algo em sua própria bolsa, pois não se tratava de outra coisa senão o fato de que estava escolhendo deixá-los para trás. Racionalmente, tinha consciência de que fazia isso com relação a todos e ao S.T.A.R Labs em si, contudo, não conseguia deixar de lado a sensação de estar sendo traído, uma vez que não previra uma mudança tão brusca chegando. Não em relação a ela.

— Sinto muito, Barry.

— Por que está fazendo isso?

Continuou questionando ao notar que não houvera qualquer negação. Então, a doutora respirou fundo e deixou a proteção da distância da estação de trabalho se aproximando com um olhar mais suave, o que sempre usava para tentar tranquilizá-lo. Havia um brilho diferente ali, se analisasse com afinco, que denotava a convicção do que decidira, mas também alguma tristeza refletida na entonação do que resolvera contar a ele. Agora, era como se jamais soubesse lê-la. Caitlin estava a milhas de distância, ainda que bem na sua frente.

— Tenho que seguir em frente. Não posso continuar à sua sombra para sempre. – Ela meneou a cabeça compreensivamente ao olhá-la confuso. – Ei... Não é uma crítica, é uma reflexão pessoal.

Barry negou com a cabeça, ainda descrente, não se impedindo de ser atingido pelo desapontamento, não apenas quanto a ela, mas quanto a si mesmo. Ir embora dessa maneira, não somente mudar de emprego pelos diversos laboratórios de Central City, era uma forma de deixar uma vida inteira para trás, não somente um ambiente de trabalho. Porque não sabia que Caitlin buscava por uma mudança como aquela? Que ela queria algo... Normal? Porque não estava atento a isso chegando?

Contudo, impedindo-o de continuar em sua distração sobre as motivações de Caitlin, notou que ela nunca esteve tão próxima a ponto passar a examinar suas feições, como fazia com as dele em retorno, com muito afinco - do cenho meio franzido aos lábios previamente mordiscados e, naquele momento, apertados - em busca de respostas ou somente para tentar memorizá-la daquele jeito após se dar conta de que não estaria ali todos os dias.

Se sentia como que anestesiado por tudo que ouvira. Não conseguia sequer processar uma realidade em que a doutora escolhera não estar presente – especialmente depois de tudo que fizera naquele dia, especialmente depois de tudo que passaram por todo aquele tempo – e, por isso, também não processou que ela o beijaria até que fechasse os lábios sobre os dele, juntando-os sem pressa. Seu primeiro pensamento fora se afastar, pois fazia muito tempo que a única pessoa que o beijava era Iris, sua esposa Iris.

Entretanto, não fora sua primeira reação e o toque não fora além. Havia confiança, mas também suavidade e alguma superficialidade, que não conseguia ultrapassar a barreira feita de uma confluência de coisas, pessoas e momentos determinantes que os tornavam o que sempre haviam sido. Não soube precisar por quanto tempo seus lábios se encaixaram tão ironicamente bem, que poderia ser um ultraje, nem se as mãos frias em seu pescoço se demoraram mais do que o normal.

Quando abriu os olhos para enxergá-la novamente, fatalmente chocado, com ela e consigo mesmo por apenas estacar ali e se deixar senti-la, assim como ao perfume não muito doce que emanava, ainda se tratava de Caitlin sustentando a mesma feição séria e compreensivas de todos os dias. Não soube exatamente o que isso significava, mas, em detrimento de Nora, Iris e tudo que acontecera até aquele momento, por um ínfimo instante distinguiu seu próprio coração bater em um sentido diferente.

— Você... Nunca fez isso.

Murmurou em uma constatação, que não fazia diferença a eles nem a ninguém, sem se preocupar em perguntar o motivo. Caitlin apenas meneou a cabeça, o brilho nos olhos que, incansavelmente, nunca se desviavam dos seus insistindo em redobrar a primária melancolia por toda a situação, pois agora havia também conformidade aparente. Ao mesmo em que a tinha bem ali, se concebia distante demais dela. Como certas coisas podiam se quebrar tão rapidamente?

— Não, eu não fiz. – Ela pareceu pensativa ao mirá-la por um momento e, por fim, forçou um pequeno sorriso que não convenceu nenhum deles ao recolher as mãos geladas e quebrar o contato. – Nos vemos, Barry.

A doutora o deu as costas com simplicidade e apenas buscou a bolsa antes de se encaminhar ao corredor que levava à saída. Tão fácil e efêmero quanto o oscilar incomum e, até então, desconhecido que permanecia em seu peito, latente e dolorido, incapaz de ser relacionado somente ao mero fato dela estar indo embora.

Muito tempo mais tarde, sentado sob a pouca luminosidade do córtex, sua mente obstinadamente repassava tudo o que Caitlin dissera inevitavelmente procurando por explicações e significados, que talvez nem existissem. Sem que pudesse reprimir, uma lágrima desceu por sua bochecha enquanto examinava o pequeno par de sapatos verdes, ainda dentro da caixinha branca. Então, Barry a fechou e guardou em sua bolsa executiva, secando a lágrima de forma simples antes de se levantar ir checar Nora e Iris.

FIM

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.