Pretty

A cidade que nunca dorme vs. A cidade em coma.


Sete anos. Eu havia passado sete malditos anos naquele colégio interno. Só que agora, aparentemente, meus pais decidiram que enfim teriam algum tempo para mim. Ou para umas férias, acho. Então íamos nos mudar, sem mais nem menos.

Minha mãe, Anne, corria de um lado para o outro com dezenas e mais caixas e caixas de sapatos, despejando-as dentro de um grande baú tão exasperadamente que, por um momento, pensei ter visto crescerem outros dois braços no torço da mulher. Terminei de arrumar minhas coisas e, depois de dois dias, foi um tremendo alívio. Oito malas, quatro caixas e dois baús médios, contei, para o caso de algo ser extraviado. Coisas demais, com certeza, mas meus pais não me visitavam com muita frequência no colégio, por isso, quando apareciam, sempre usavam-me como desculpa para seus impulsos consumistas. O resultado era que eu tinha coisas suficientes para suprir metade da população feminina de Nova York.

Enquanto eu fazia sinal para os carregadores, que pegavam tudo com esforço, meu pai falava no celular, e a naturalidade daquilo me trouxe a mesma sensação nostálgica de observar um cartão postal antigo. Acho que ele falava com alguém da companhia aérea, ele parecia um pouco ansioso. Sentei-me na cama, olhando para as paredes do quarto no qual havia dormido tão poucas vezes e suspirei. Não sentiria muita falta daquela casa. Minha mãe havia comentado que Baton Rouge, o lugar para onde estávamos nos mudando, era a cidade perfeita. Cheia de vida e de pessoas, mas, também, bem diferente da louca e estressante Nova York. Mas, para falar a verdade, para mim não fazia nenhuma diferença, já que eu não conhecia bem ambas. Embora eu tenha que confessar que estava sim um tanto curiosa sobre o meu futuro longe dali.

Ainda devaneava quando vi meu pai, Michael, parar inquieto na porta do quarto.

— Tudo pronto? – Ele perguntou, erguendo uma sobrancelha.

Assenti positivamente.

— Sairemos logo! – Ele disse, tirando do bolso o celular que tocava novamente. – Anne, arrume de uma vez um lugar para esses sapatos! – Ele gritou para minha mãe.

— Estes baús são tão pequenos. Não cabem nada! – Ouvi-a murmurar.

Sorri com escárnio. As futilidades da mulher poderiam ter até mesmo graça para os mais leigos, mas definitivamente não para mim. Havia deixado o colégio há seis dias e, tirando os últimos dois, tudo o que eu fizera foi dividir meu tempo entre jornadas de compras com a minha mãe e refeições em família com os amigos apáticos dos meus pais, mas dos quais eles se orgulhavam muito. Então estava cansada demais para ver a graça de qualquer coisa.

Senti meu celular vibrar e atendi a chamada de Lucy, minha melhor amiga. Os pais dela também eram desnaturados.

— Ei. – Saudei-a.

— Não acredito que esteja indo embora e me abandonando sozinha nesse inferno. – Ela choramingou.

— Você é muito dramática. Mas, se serve de consolo, eu acredito menos.

— Nem sequer pense que vai se livrar de mim, vamos nos ver logo. – Afirmou a garota, amofinada.

— Vou esperar por isso. – Falei, controlando as lágrimas que queriam entregar meu verdadeiro estado de espírito.

— Sentirei saudades, Mandy. – Ela disse, por fim, com a voz embargada. – Não faça nada que eu não faria.

Ri baixinho. Acho que existiam realmente poucas coisas que Lucy não faria.

— Claro. Sentirei sua falta também, Lucy. Muito. – Esforcei-me para não cair no choro.

— Se cuide!

— Você também. E, por favor, não ateie fogo no colégio. Nem em ninguém. Lembre-se de que as cadeias estão cheias de boas intenções.

— Não prometo nada. Às vezes nós temos que fazer o que temos que fazer. – Ela disse, zombeteira. – Me ligue quando chegar. Eu te amo.

— Também te amo. Até logo. – Despedi-me.

Sentiria falta de Lucy mais do que de qualquer coisa naquele lugar. Ela realmente havia me salvado de pirar naquela porcaria de prisão estudantil.

De repente ouvi o grito de meu pai do primeiro andar.

— Amanda! Vamos! – Ele berrou, escandaloso.

Corri para baixo, encontrando-os perto do carro. Michael abriu a porta para minha mãe e eu e partimos, rumo ao aeroporto. No caminho, observei a cidade que, antes mesmo de saber se me agradava ou não, deixava para trás. Deixei minha mente apenas vagar até Baton, meu novo lar, onde, com sorte, eu finalmente começaria uma vida que valesse a pena ser vivida. Uma vida normal e finalmente minha.

* * *

A viajem fora bem tranquila, tirando, claro, a voz quase sempre exaltada de Michael falando ao telefone a cada cinco minutos. Honestamente, meu pai devia receber mais ligações do que qualquer departamento de policia.

A nova casa, em Baton, era tão grande quanto a outra. Com paredes imaculadamente brancas, do lado de fora e na maior parte do de dentro, diversas janelas, piso de mármore e uma longa escada de degraus baixos e largos. Aqueles dois realmente não perderiam a oportunidade de ostentar poder aquisitivo para todo mundo ver. Subi até o andar superior, seguindo as indicações para o meu quarto e experimentei, pela primeira vez, uma genuína sensação de ter um quarto que eu pudesse propriamente chamar de meu. Minha mãe escolhera todos os móveis e a decoração, algo entre o clássico e o moderno, mas meu quarto, em especial, possuía um ar quase vitoriano, com uma grande cama com ornamentos em dourado, uma penteadeira artisticamente entalhada e um conhecido par de candelabros, que costumavam pertencer a minha avó, mãe de Michael, e que chamavam uma atenção enorme por si só. Emocionei-me ao vê-los, mas não entendi porque, de todos os cômodos sociais da casa em que eles poderiam ser exibidos, Anne havia decidido deixá-los bem ali, comigo. Embora fosse muito gentil, admito.

Guardei algumas roupas no enorme closet que, com o banheiro e a sacada, somavam quatro portas só naquele cômodo. Organizei meus livros preferidos nas prateleiras acima da escrivaninha e também algumas coisas pessoais em outros lugares. Para o resto eu precisaria de, de fato, no mínimo dois dias. Tomei um longo banho de banheira e me dirigi até a sacada para apreciar a vista que dava para a piscina e, mais adiante, um pequeno bosque particular atrás da casa. Pensei que à noite, e com a lua iluminando a água e as árvores, aquela devia certamente ser uma vista e tanto e que talvez aquela casa tivesse um certo valor para além do monetário. Talvez eu pudesse me apegar um pouco. De volta ao quarto, deitei-me na cama macia e acabei adormecendo, acordando apenas quando já era noite e alguém batia na porta. Esfreguei os olhos, pedindo que o visitante entrasse, e Anne o fez, sorrindo de orelha a orelha.

— Boa noite, querida. – Ela disse, sentando-se de frente para mim na cama. – Vim ver o que achou da casa. Gostou? – Ela perguntou, encarando-me com expectativa.

— É bonita. – Respondi simples.

Ela pareceu embaraçada, talvez por esperar um pouco mais de entusiasmo. Sinceramente, não era que Anne fosse uma pessoa má ou desagradável, só havia mesmo sido uma mãe muito ruim. Eu não a odiava, mas também não tinha muita intimidade com ela.

— Amanhã você começa no colégio novo. – Ela falou e sua mão escorregou para perto da minha, mas ela não ousou tocá-la. – Bem, escola. É pública. Mas muito boa pelo que ouvi. Victor pesquisou bastante.

Victor era o assessor dos meus pais e era ele quem cuidava de boa parte de tudo relacionado à casa e às empresas.

— Espero que goste. – Ela emendou, hesitante.

— Eu vou, com certeza. Não é como se eu fosse ser internada, de novo.

Não pude me conter. Apesar de não nutrir um real sentimento de ódio por meus pais, por terem me deixado no internato, havia um ressentimento corrosivo que já fazia, há muito, parte de mim.

Ela baixou a cabeça e sorriu fraco com o semblante afetado.

— O jantar será servido em dez minutos. – Comunicou, novamente animada. – Teremos salmão! Sei que você gosta.

Fiquei surpresa por ela saber do que eu gostava. Mas ela provavelmente só se lembrava porque também era a comida favorita dela.

— Obrigada. Já irei descer. – Afirmei.

Esperei que ela saísse e, quando o fez, meus olhos se encheram de lágrimas. Por que eles tinham que ter feito aquilo comigo?

Quando desci até a sala de jantar, meus pais conversavam sobre algo. Michael parecia um pouco exaltado, sem muita novidade, e Anne procurava sanar a discussão. Sentei-me a mesa, olhando-os com um certo constrangimento, mas sem dizer nada.

— Boa noite, Amanda. Passou o dia todo no quarto. Pensei que fosse um tanto mais sociável. Mas pelo menos gostou da casa, sua mãe me disse. – Meu pai começou, levando à boca sua taça de vinho.

— É bonita. – Respondi, outra vez de maneira mecânica.

A nova cozinheira, Nancy, serviu o jantar. Mas, apesar de ser meu prato favorito, comi com pouca vontade. Depois de alguns minutos de silêncio mórbido, meu pai voltou a se pronunciar, como só ele sabia.

— Já está sentindo falta do antigo colégio?

Meu garfo escorregou e bateu no fundo do prato, causando um ruído desagradável, mas continuei olhando para a comida, como se não o tivesse ouvido.

— Fiz uma pergunta, Amanda. Não seja mal-educada.

Inspirei profundamente e soltei os talheres.

— Claro que sim. Viver trancada e isolada do mundo exterior é um sonho na vida de qualquer pessoa. Vocês deviam tentar. Até porque, sabe do que eu mais vou sentir falta? Justamente dos dias que eu passava longe de vocês dois! – Falei, quase perdendo o fôlego.

Minha mãe olhou-me, chocada, e meu pai apenas levantou uma sobrancelha.

Voltei a segurar meus talheres e comi, desta vez com mais vontade. Tudo para tirar minha atenção das demais pessoas.

— É bom para nós ouvir isto. Para que percebamos que o que está comendo, vestindo, ou a cama macia na qual dormirá esta noite, não significam para você. Você é realmente uma ingrata.

Anne e eu parecíamos duas esculturas em uma coleção de obras dramáticas, enquanto meu pai dava outro gole tranquilamente em seu vinho importado, e só deus sabe como tive vontade de ver aquele líquido rubro virar em sua impecável camisa branca. Não pelo estrago na camisa, claro, mas pelo desperdício de seu precioso tempo. Quebras na rotina eram o que realmente incomodavam Michael.

— Vou dormir. Preciso acordar cedo amanhã! – Apontei, finalmente, com toda a rigidez que a situação pedia.

— Á vontade. – Disse Michael, sem voltar seus olhos para mim.

Subi para o quarto, sem desejar boa noite, pois o que eu queria mesmo era que tivessem insônia e se revirassem na cama por horas a fim.

Embora triste e irritada, decidi, naquele momento, não derramar uma lágrima sequer por aquela situação. Não porque não tivesse uma imensa vontade, mas porque aqueles dois, definitivamente, não mereciam nada disso.