Presente de Grego

Os mortos e os que irão morrer


Estar de luto não é uma atividade agradável, simplesmente pelo fato de que não é agradável de se imaginar que você nunca mais verá alguém que você tanto ama. Existem cinco estágios do luto: a negação, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação. Naquele momento, Xena estava em um estágio de negação profunda, pois além de não aceitar o fato de que nunca mais veria Gabrielle, ela também sentia muita raiva de si mesma, por não ter descoberto o plano de Callisto e por não ter conseguido salvar a vida da sua alma gêmea. Por falar em alma, a sua parecia irremediavelmente quebrada, era como se ela própria quisesse ceder à morte também. Por outro lado, Solan parecia estar anestesiado, ele tinha plena consciência de que Gabrielle estava morta, sentia raiva e muita tristeza, mas tinha esperança de que a veria novamente algum dia. Como se não bastasse toda a raiva que a guerreira estava sentindo ao observar o estado de tristeza profunda de seu filho, que chorava sentado próximo à pira funerária de sua amada, a guerreira começou a ouvir uma voz feliz e debochada vinda de suas costas.

— Dói, não dói? Perder sua família? Dói segurar nos braços alguém que você tanto ama e perceber que ela já não respira mais. Isso acaba com você, destrói a sua alma... seus sentimentos, seu coração. Tudo o que resta é a dor, não é? –Callisto sussurrou nos ouvidos de Xena, tinha um sorriso tão feliz em seu rosto, que nem parecia que ela tinha armado um plano cruel para matar uma pessoa inocente.

— Fique longe de mim e do meu filho, Callisto... ou eu vou enterrar você! Acabou, você tem sua vingança. Gabrielle está morta, pode ir embora. –Xena olhava para a sua inimiga de um jeito tão feroz e tão ameaçador, que chegava a lembrar a destruidora de nações que fora alguns anos antes do nascimento de Solan.

— Não se preocupe, não pretendo encostar no seu querido filho. Te ver nesse estado já me devolve a vontade de viver. –Callisto sorriu, triunfante, seus olhos chegavam a brilhar de tamanha alegria que sentia ao ver a pira funerária construída para queimar o corpo de Gabrielle. – Parece que dessa vez você não conseguiu salvar a sua amiguinha. –A vilã fez aspas com os dedos para indicar que sabia que a relação da guerreira com a barda não era apenas de amizade e Xena sentiu vontade de segurá-la e arremessa-la o mais longe possível, Callisto se esquivou antes que ela a segurasse por sua roupa. – Espero que tenha uma boa vida, se é que você pode chamar isso de vida. –A deusa deu uma última gargalhada e se afastou de sua arqui-inimiga com passos saltitantes de tanta felicidade que sentia.

A dor é algo pessoal, ninguém pode sentir a mesma dor que outra pessoa por mais próximos que essas pessoas sejam. Xena sabia muito bem disso, mas ao observar o quanto Solan estava sofrendo com a morte de Gabrielle e Kaleipus, quase pôde jurar que naquele momento estava sentindo a mesma dor que o seu jovem filho sentia.

Enquanto Xena e Solan lamentavam a perda precoce de Gabrielle, Ephiny que também lamentava muito a perda de sua amiga e irmã amazona, entrou na cabana compartilhada pela guerreira e a rainha amazona com a intenção de pegar as coisas da amiga e entregar para Xena, na esperança de que se a guerreira tivesse algo de Gabrielle isso a confortaria em seu luto. Quando a jovem amazona estava prestes a sair, encontrou algo no canto da cabana que seria muito mais adequado para ajudar a guerreira com a dor de seu luto, este pequeno objeto, aparentemente insignificante para alguns, levaria a guerreira diretamente até uma outra Esperança, a assassina de Kaleipus e Gabrielle. O segredo compartilhado pela amiga naquela trágica tarde iluminou sua mente como um relâmpago que ilumina as noites mais escuras, a mulher recolheu a ovelha de madeira do chão e saiu da cabana, torcendo para que sua descoberta trouxesse algum conforto para sua amiga, sem saber que na verdade aquele pequeno objeto seria a fonte de uma dor ainda maior.

— Xena... eu odeio ser a portadora de más notícias, mas....

— Nada pode ser pior do que a morte de Gabrielle. O que você tem para mim, Ephiny? -A guerreira se virou para a amazona com um gesto rápido, queria ensaiar um sorriso, mas desistiu da ideia, Ephiny a conhecia muito bem para saber que ela não tinha nenhum motivo para sorrir.

— Achei isso na sua cabana, mas é impossível que seja a mesma, pois Gabrielle a deu para...

— Esperança. –Xena concluiu a frase da amazona, pegando a ovelha de madeira que a mulher carregava em suas mãos, tinha impressão de que havia acabado de resolver um grande mistério. – Gabrielle a deu para Esperança... –Repetiu, falando mais consigo mesmo do que com a loira que a olhava intrigada. – Foi ela... ela matou Gabrielle. Esperança esteve aqui... debaixo do meu nariz e eu nem percebi...

— Não, ela não pode ter matado a Gabrielle. Ela está morta... e a Gabrielle é a mãe dela! Por que ela mataria a própria mãe? –Ephiny colocou sua destra no ombro da guerreira. Estava muito preocupada, não era possível que ela estivesse culpando uma criança morta pelo assassinato de Gabrielle. Pior ainda, não era possível que ela estivesse culpando a filha de Gabrielle pelo assassinato dela.

— Ela não tem sentimentos... ela queria me ferir... matou Gabrielle para me ferir...

— Não, Xena! Ela é só uma criança! -Nesse momento a guerreira pegou a mão de sua amiga que estava em seu ombro e a apertou com o máximo de força que possuía.

— Ela não é uma criança! Ela é má, perversa, um instrumento do mal, é isso que ela é! Gabrielle não devia ter deixado ela viver. -Liberou a mão da amazona de seu aperto. A mão da jovem mulher tinha um tom pálido, como se não houvesse circulação sanguínea naquele membro há muito tempo, mas ela não reclamou, sabia que isso apenas inflaria ainda mais a raiva da guerreira. – Ela mentiu para mim, a deixou viver e agora ela está morta. Ela salvou a vida dela, e agora ela a matou... aquele monstro matou Gabrielle. –A princesa guerreira concluiu sua frase em um tom muito baixo, a amazona mal conseguia ouvir o que ela estava dizendo, mas notou em seu semblante muita raiva e lágrimas que ela começava a deixar aparecer.

— Se for verdade o que está dizendo... há um monstro a solta lá fora, mas eu vejo outro surgir diante dos meus olhos. Você acha que Gabrielle gostaria de lhe ver assim? –Ephiny a questionou, e antes que a guerreira pudesse responder, a amazona já havia pego Xenan e partido, deixando a princesa guerreira com uma grande pergunta nas mãos.

A expressão “servir como uma luva” não é adequada, porque existem vários tamanhos de luvas, e uma luva que serve em mim pode simplesmente não servir em você, mas nesse caso, aquela ovelha de madeira “serviu como uma luva” para alimentar ainda mais a raiva de Xena. A guerreira não sentia raiva de Gabrielle, não sentia raiva por ela ter lhe enganado. Sentia raiva pelo simples fato de que Gabrielle protegera aquela criança maldita da morte, para em seguida ser pega em um bote traiçoeiro e cruel da própria. Os sentimentos da guerreira estavam enevolados, como fios, ou linhas das vidas de duas almas gêmeas que se uniram tanto que mal dar para defini-las como linhas distintas, mas de uma coisa ela tinha certeza, iria matar Esperança, nem que tivesse que passar por tártaro para fazer isso.

— O que houve com o seu cajado? –Xena fitou seu filho com curiosidade ao vê-lo tomar posse do antigo cajado de Gabrielle.

— Nada. É que eu prefiro ficar com o da Gabrielle. –Solan abraçou o cajado como se estivesse abraçando a própria Gabrielle, e Xena sorriu ao pensar que apesar do pouco tempo que tiveram seu filho e sua amada construíram uma linda amizade.

A raiva é o segundo estágio do luto, simplesmente porque é impossível não se sentir incrivelmente irritado ao ver uma pessoa boa morta, enquanto várias pessoas ruins continuam vivas para cometer atos infames por aí. A morte não escolhe quem vai levar, não distingue os mortos entre pessoas boas ou ruins, ela simplesmente vem e os leva. Enquanto Xena se encontrava profundamente irritada por Celesta ter tirado Gabrielle de seus braços, Solan se encontrava igualmente irritado, por achar que Gabrielle estaria viva se Xena não tivesse perdido seu tempo com ele.

— Solan... eu já pedi desculpas. Não posso mudar o que aconteceu. -O garoto andava na frente da guerreira, ele carregava o cajado de Gabrielle em sua mão direita, em seu ombro esquerdo levava sua própria mochila e no direito carregava a antiga bolsa de Gabrielle, já que ele acreditava que Xena não era digna de ficar com ela. Os longos cabelos do menino se agitavam em volta de seus ombros e costas, e ao ter aquela visão a guerreira se lembrou de Gabrielle e de como seu cabelo também parecia constantemente rebelde.

— Me deixa em paz, Xena. Não quero mais viajar com você! –Solan quase gritou para que a guerreira o ouvisse. Saber que seu filho não queria sua companhia, fazia com que o buraco em seu peito crescesse ainda mais.

— É perigoso, Solan. Você é só uma criança, não pode ficar andando por aí sozinho. –A guerreira tentou amolecer o coração do menino, mas nesse aspecto ele era igualzinho a ela, quase nunca se dava por vencido.

— Não sou uma criança, sei me cuidar. Não preciso de você! Com você ao meu lado vou acabar morrendo... igual ao meu tio e Gabrielle! –Solan parou de repente e se virou para a guerreira com arrependimento em seus olhos. Já Xena parecia estar um nível acima da dor, tudo o que ela queria era que Solan ficasse seguro, ao ouvir ele sugerir que poderia morrer se estivesse na companhia dela, se arrependeu de tê-lo trazido consigo. – Me desculpe, não disse isso para te ferir. Só estou triste e irritado, seria bom se você me desse um pouco de espaço. –A criança deu um sorriso fraco para a guerreira e ela se pôs a caminhar um pouco distante dele até que sua irritação passasse. Enquanto isso, ia pensando na melhor forma de contar para seu filho que ela é a mãe que ele acreditava estar morta há muito tempo.

Com os dias que se seguiram das mortes de Gabrielle e Kaleipus, as coisas se acalmaram mais entre Xena e seu filho. Solan cozinhava para as refeições, mostrava mais habilidade com a culinária do que sua mãe, anteriormente quem realizava essa tarefa era Gabrielle, mas com a barda morta o menino a substituiu, a frase “tomou seu lugar” não era verdadeira, Solan jamais poderia tomar de fato o lugar de Gabrielle, por mais que seguisse com avidez os passos da poetisa, ao treinar com seu cajado herdado de Gabrielle e ler os pergaminhos que a barda usava para escrever suas aventuras com Xena em eras passadas. Solan tinha noites tranquilas, apesar de ainda sonhar coisas terríveis e de pensar muito em seu tio. Xena tinha noites terríveis em todos os aspectos, a guerreira não dormia bem, sentia falta do aconchego de Gabrielle quase a noite toda e quando dormia sonhava com sua amada, o que fazia com que sentisse ainda mais a falta dela. Viver com seu filho ao seu lado se tornara a melhor parte de estar viva, já que não tinha mais a companhia de sua alma gêmea. Xena pensava por horas, ficava quase que o dia todo em silêncio com os seus próprios pensamentos, arquitetava uma forma de encontrar Esperança para vingar Gabrielle e Kaleipus e também para deixar Solan seguro de uma vez por todas.

A vingança é um sentimento traiçoeiro, porque ela te envolve em um abraço tão apertado, que tudo o que você consegue pensar é no momento em que finalmente irá conseguir concretizar seus planos. Xena sentia sede de vingança desde que Ephiny lhe mostrou aquela ovelha de madeira no funeral de Gabrielle. Paralelo à sua vontade de se vingar havia seu instinto materno e o desejo de manter seu filho em segurança. Enquanto caminhava com Solan em seu encalço, a guerreira se perguntava se não seria melhor deixá-lo com alguém de sua confiança, para que a criança não tivesse que presenciar os momentos que viriam. Mal estava se recuperando de um trauma e agora a guerreira iria introduzir mais um em sua vida.

— Quer montar? –Xena olhou para seu filho dando um leve tapinha na sela de Argo. Solan não havia reclamado da longa caminhada que estavam fazendo, mas ao escutar a respiração irregular da criança, sua mãe não precisou de mais nada para saber que ele estava muito cansado.

— Eu nunca montei. –Solan disse quase em um sussurro, Xena o encarou confusa. – Meu tio dizia que era perigoso demais para uma criança. –O menino baixou a cabeça e a guerreira percebeu que falar de Kaleipus ainda era muito difícil para ele.

— Não é difícil. Posso te ajudar... se quiser. –A mulher deu um sorriso fraco para o menino, estendendo a destra para ele. – Tudo bem, a Argo é boazinha. –A égua relinchou inclinando a cabeça para o menino e parou ao seu lado. – Pise aqui. –Xena uniu as mãos em um arco para acolher o pé do menino. Solan lhe ofereceu um sorriso fraco, e bocejou. Faziam horas que eles estavam caminhando, deixando que o cansaço lhe vencesse Solan pôs seu pé no arco formado pelas mãos da guerreira e ela o impulsionou para cima, seu herdeiro agora estava devidamente montado em sua égua. – Durma um pouco. Não vou deixar que nada de mal lhe aconteça, eu prometo. –Xena sorriu dando um leve beliscão na perna direita do filho.

— Obrigado, Xena. –A criança bocejou mais uma vez e em seguida fechou seus olhos, deixando que Morfeu o conduzisse para seu reino.

Sua estadia no reino de Morfeu não durou muito, logo a voz de sua genitora estava lhe conduzindo de volta ao mundo externo. O menino abriu os olhos vagarosamente para se acostumar com a luminosidade que os invadia e viu Xena o olhando com uma expressão serena em seu rosto, o que fez com que lhe desse um sorriso fraco.

— Já chegamos. –A guerreira ajudou a criança a descer da égua e Solan se pôs de pé ao seu lado.

— Onde nós estamos, Xena? –Solan a questionou. Era possível ver um templo na penumbra da noite, mas ele não entendia o porquê de eles estarem ali tão tarde da noite.

— Onde tudo isso começou... e onde tudo isso irá acabar. –Seu filho fez uma careta confusa para ela, mas a guerreira não lhe deu mais detalhes.

O herdeiro da princesa guerreira não sabia, mas eles estavam em Britannia. Xena havia passado dias pensando aonde Esperança poderia ter se escondido, lhe ocorreu que na verdade a resposta era muito simples. A criança correria para o lugar mais seguro que conhecia, os braços de Dahak, afinal, ela sempre foi a garotinha do papai.

— O que viemos fazer aqui? –Solan perguntou enquanto segurava com força o braço da guerreira.

— Viemos matar alguém que deveria estar morta há muito tempo. –A guerreira se desvencilhou da criança. Caminhando com passos firmes, ela seguiu rumo ao templo com um Solan muito assustado em seu encalço.

Ao entrar no templo, Xena teve um flashback do dia em que Esperança foi concebida e a culpa logo pesou em seu peito novamente. Havia falhado com Gabrielle duas vezes, não impediu Dahak de estupra-la e nem impediu a filha demoníaca dele de ceifar sua vida.

— Veio rezar pela alma da sua amiguinha? –A voz de uma criança veio detrás do altar em que Gabrielle perdeu sua inocência de sangue.

— Não, vim vingá-la. –A guerreira tirou a espada da bainha e afastou Solan da batalha que logo se iniciaria.

— Quem é ela? –Solan encarou a criança que sorria de modo perverso para eles.

— Não se meta nisso, Solan. –A guerreira entrou na frente do filho, tirando-o do campo de visão de Esperança.

— Ainda escondendo coisas dele? –Esperança possuía o máximo de sarcasmo que conseguia em sua voz infantil. – Sou a filha da Gabrielle e você é o filho...

— Você é o filho de Borias. –Xena a interrompeu.

— Esperta. Mas você não pode mentir para ele a vida toda. Pode? –Esperança a encarou arqueando a sobrancelha direita.

— Você não terá que se preocupar com isso por muito tempo... –A guerreira se preparava para avançar para cima da criança, mas Solan tomou sua frente com os braços abertos a impedindo de prosseguir.

— Solan, saia do caminho. –Xena colocou a mão no ombro do filho.

— Não. Você não pode matá-la... ela é a filha da Gabrielle. –O menino implorava para que a guerreira desistisse de seus planos.

— Solan... ela não é...

— Por favor, Xena. Ela é a única coisa que resta da Gabrielle. –A guerreira via lágrimas se formarem nos olhos de seu filho.

— Solan, esse monstro matou Kaleipus e Gabrielle... saia do meu caminho agora! –Solan estava tão espantado com aquela revelação que foi fácil para Xena empurrá-lo para o lado e avançar na direção da filha das trevas.

Quando a princesa guerreira estava prestes a atacá-la com o primeiro golpe, Esperança fez uma manobra ousada e inesperada por todos que estavam presentes. A criança começou a sofrer mais um de seus episódios de crescimento rápido, paralisados Solan e Xena observaram a criança deixar a sua forma infantil e assumir uma forma adulta idêntica à de Gabrielle.

— Gabrielle?! –Solan gritou em um misto de surpresa e medo. Vira Gabrielle morta nos braços de Xena alguns dias atrás e agora ela simplesmente havia se materializado na sua frente.

— Não é Gabrielle. Esse monstro tomou a forma dela para tentar me manipular! –Xena gritou para que Solan a ouvisse.

— Você não mataria o amor da sua vida, mataria? –Esperança sorriu maquiavelicamente.

— Eu preferia morrer do que fazer algum mal a Gabrielle, você sabe disso. Você a matou! –A guerreira avançou na direção de Esperança pela terceira vez, daquela vez nada e nem ninguém a impediria de vingar a morte de sua amada.

O embate contra Esperança não foi fácil, a filha de Dahak possuía muitas habilidades e lutava com muita vontade de vencer. A princesa guerreira possuía muitas desvantagens em relação a sua oponente, não possuía poderes e estava muito preocupada com a segurança do filho, que estava praticamente entre o fogo cruzado, mas pensar em Gabrielle e na vontade que tinha de vingar sua morte a ajudou a vencer.

A batalha contra Esperança havia acabado, Gabrielle estava devidamente vingada, mas nada disso fez com que Xena se sentisse melhor. Não havia alegria em sair vitoriosa, só vazio... o vazio de um amor não vivido...

Os próximos dias foram tão monótonos que Xena chegou a acreditar que tudo não se passava de um sonho, do qual ela iria acordar e encontrar Gabrielle, mas nada disso aconteceu e logo a guerreira teve que parar de sonhar com o impossível e voltar para a realidade com Solan. Solan... ainda tinha que contar a verdade para ele. Aquele momento não demoraria muito para acontecer, foi em uma noite particularmente muito fria que Solan disse a seguinte frase:

— Toda a minha família está morta. –A criança olhava com tristeza para o pergaminho que estava lendo.

— Não. Nem todos, Solan... –A guerreira hesitou.

— Todos se foram... o tio, meu pai, minha mãe...

— Isso não é totalmente verdade. –Xena levantou a cabeça da pele em que estava deitada.

— O que quer dizer com isso? –Solan a olhou, confuso.

— Sua mãe... ela não morreu. Eu... e-eu sou sua mãe, Solan. –Analisou cada traço do rosto do menino esperando por uma resposta, mas ele não disse nada. – Na noite em que você nasceu, seu pai morreu na batalha de Corinto. Eu era uma pessoa má, ruim e você era só um bebezinho inocente, não podia ser a mãe que você merecia ter. Kaleipus era amigo de Borias, então dei você para Kaleipus criar, seria melhor do que vê-lo sendo alvo dos meus ini...

— Você só pode estar brincando comigo... –Solan falava com muita raiva em sua voz, levantando-se de suas peles, ficou de frente para a guerreira que também já estava de pé. – Quando o meu tio morreu, você não pensou que tudo o que eu mais queria era ter a minha mãe comigo? –A criança perguntou, tinha lágrimas nos olhos, o que fazia com que ganhassem uma coloração mais escura.

— Não lhe contei porque não pretendia trazê-lo comigo...

— Você queria se livrar de mim... –O choro que estava prendendo formava um nó em sua garganta, isso fazia sua voz embargar. – Queria se livrar de mim... então quando meu pai morreu, você arranjou a desculpa perfeita para me dar para o tio. –As lágrimas que estava prendendo se libertaram, banhando seu rosto.

— Fiz isso para salvar a sua vida, Solan. –Xena tentou se aproximar para puxa-lo para um abraço, mas ele se esquivou dela.

— Você não salvou a minha vida... só me deu um destino pior do que a morte. Você me transformou em um órfão de guerra. –Limpou as lágrimas que escorriam pelo seu rosto, retornou para suas peles e virou as costas para a guerreira que estava parada, em choque com as palavras do filho. Xena não tentou persuadi-lo para que a perdoasse, seguindo os passos do filho, se deitou em suas peles e dormiu. Seu sono fora repleto de perturbações, sonhava coisas estranhas e em sua maioria completamente fora da realidade, mas todos envolviam Gabrielle e Esperança. A barganha é o terceiro estágio do luto, em seus sonhos Xena se via barganhando com os deuses pela alma de Gabrielle, sem nenhum sucesso. Sonhar com Gabrielle torturava sua alma, mas o pior era acordar e perceber que tudo foi um sonho.

— Gabrielle... –A guerreira sussurrou ainda em sonhos. Solan se assustou com o som da voz da mulher e se levantou para ver o que estava acontecendo, ao chegar próximo da guerreira, percebeu que ela estava de olhos fechados e sussurrava o nome da barda.

— Xena, sou eu. Xena, não é a Gabrielle. Sou eu, o Solan. –A criança tentou segurar a mulher em seus braços na tentativa de acalmá-la, mas ela se mexia muito, dificultando a tarefa. – Xena... sou eu. Por favor, acorde... é o So... é o seu filho. Mãe, sou eu. –Xena abriu os olhos, ainda estava suando frio, mas ao ouvir Solan chamar por ela com tanta preocupação em sua voz, seu instinto materno falou mais alto do que qualquer outra coisa.

— Solan? O que houve? Você está bem? – A guerreira limpava o suor do rosto com sua destra.

— Estou bem..., mas você não estava. Estava delirando, chamando por Gabrielle, então vim aqui para acordá-la. –Solan tentou mascarar o carinho em sua voz, mas Xena percebeu que ele estava sem jeito por tê-la chamado de mãe pouco tempo depois de ter discutido com ela.

— Obrigada. –A guerreira deu um sorriso fraco. O menino se levantou de onde estava e voltou para suas peles.

Daquele dia em diante a convivência com Solan foi um pouco mais difícil, o garoto falava com ela de um modo muito desconfiado, mas Xena sentia que ele queria se aproximar, só não queria dar o braço a torcer admitindo isso para si mesmo. A guerreira não sabia, mas Solan não sentia mais raiva dela. Havia sentido, é claro, quando ela lhe contou que era sua mãe. Havia sentido mais raiva ainda quando descobriu que ela não pretendia contar nunca, mas ao vê-la completamente suada enquanto delirava, toda a raiva em seu coração se dissipou. Agora só estava com vergonha por ter a chamado de mãe em tão pouco tempo, então fazia de tudo para se manter distante dela. Pretendia viver distante dela, teria seguido esse plano se não tivesse encontrado um dos pergaminhos de Gabrielle. Não era um pergaminho qualquer, era um intitulado Órfão de Guerra, se lembrando do que havia dito à Xena na noite em que ela contou a verdade, o menino desenrolou o pergaminho e se pôs a ler.

Não posso imaginar a dor que Xena sentiu ao reencontrar o filho que ela deu aos centauros nove anos atrás. A questionei a respeito do motivo dela tê-lo abandonado e ela me respondeu apenas com um “você não entenderia” e não entenderia mesmo. Solan é um menino esperto e bom, queria ser um guerreiro e estava sempre com a espada de seu pai, mas eu disse a ele que ele não precisava fingir que era um guerreiro porque seu pai foi um... imagina se ele soubesse que sua mãe é uma guerreira também.

Tentei fazer amizade com ele, mas ele é bem difícil... tal mãe, tal filho. Foi naquela mesma tarde que Solan foi sequestrado por um dos antigos guerreiros de Xena, ao ver o desespero em seus olhos, pude compreender o porquê de ela ter dado a criança para os centauros criarem. Logicamente, ela se arrependia de não ter ouvido a primeira palavra dele e de não ter visto seus primeiros passos, mas saber que ele não era um alvo de seus inimigos fazia com que a culpa pesasse menos em seu peito. No final do dia, pouco antes de irmos embora, Xena conversou com Solan na beira do lago... quando voltou estava triste, não tinha contado a verdade para ele, me disse que preferia que ele fosse um órfão de guerra do que mais um dos membros mortos de sua família.

A criança interrompeu a leitura do pergaminho, engolindo em seco pôs o pergaminho de lado e se lembrou do que havia dito à Xena quando ela lhe contou que era sua mãe. Sentia culpa, Gabrielle escreveu em seu pergaminho que Xena havia escondido isso dele porque não queria que ele fosse mais um dos mortos em sua família... e Solan disse a ela que ela o abandonou porque queria se livrar dele, mas não era verdade.

— Mãe. –Solan a chamou em um tom de voz baixo, mas a guerreira que possuía ouvidos treinados conseguiu escutá-lo. – Obrigado por ter me transformado em um órfão de guerra... sei que você só queria me salvar. –Xena deu um sorriso fraco e fingiu que não tinha escutado o filho, para que não ficasse envergonhado.

Os dias se passaram, logo viraram anos e Solan já possuía seus doze anos de idade. Quando Xena via ele treinar com o cajado... o cajado de Gabrielle. O cajado que a barda tanto amava e que agora Solan amava por ela... conseguia vê-la em seu filho. O cabelo longo e loiro dele também se parecia muito com o de sua amada, quando ele está de costas é quase como se ela tivesse enxergando a própria Gabrielle. É triste, porque Xena sabia que não era ela... nunca seria. Tudo o que restava era sair da depressão em que havia se instalado anos atrás para finalmente chegar à aceitação. O que alegrava seu coração sofrido era ver Solan crescendo e seguindo os passos da barda.

— Mãe, eu não quero lutar. Quero ser um poeta. –O garoto mordeu o lábio inferior, segurava um dos pergaminhos de Gabrielle em suas mãos trêmulas, estava inseguro ao dar aquela notícia para sua genitora, tinha medo de que ela não aprovasse.

— Um poeta? Como Gabrielle? –Solan observou os olhos da guerreira brilharem radiantes. Desde a morte da barda, Xena não tinha muitos momentos de felicidade, mas ao ver seu filho manifestar o desejo de seguir os mesmos passos de sua amada lhe dava um sopro de vida.

— Sim, isso incomoda você? –Desviou o olhar de sua mãe e se pôs a ler um dos muitos pergaminhos de Gabrielle.

— Me incomodar? Claro que não, isso é maravilhoso, Solan! Gabrielle ficaria muito feliz... –A voz da mulher tremeu ao se lembrar das noites em que sua barda escrevia em seus pergaminhos.

— Sei que ficaria. Espero ser digno do legado dela. –Solan sorriu para a mãe e se levantou, deixando a guerreira a sós com seus pensamentos. Ele sabia que sua mãe queria chorar, mas sabia também que ela era uma mulher dura, jamais demonstraria fraqueza chorando na frente de seu filho.

O luto não é uma experiência linear, simplesmente porque a dor não segue um padrão preestabelecido. A princesa guerreira já havia passado por quatro estágios do luto: a negação, a raiva, a barganha e depressão. Estava prestes a finalmente chegar à aceitação. Mas ouvir Solan dizer que queria ser um poeta, fez todas as lembranças que tinha com Gabrielle virem à tona, e a dor de não a ter mais ali fez com que ela regredisse ao quarto estágio do luto, a depressão.

Ninguém é capaz de compreender a dor do outro. Ninguém. Mesmo que ambos tenham amado Gabrielle, Solan ainda não era capaz de compreender verdadeiramente a dor de sua mãe enquanto observava lágrimas resvalarem de seu rosto. Até gostaria de compreender o porquê daquela ferida no peito de sua mãe ainda não ter cicatrizado, quando a do seu quase não apresentava nenhuma cicatriz, mas não conseguia. Então o garoto apenas deu passos firmes até a guerreira e a abraçou gentilmente. Deixou que chorasse enquanto seu corpo tremia em completo desespero.

— Se eu... tivesse com ela... isso não teria... acontecido. –A guerreira soluçava entre uma palavra e outra. – Ela está morta... por minha causa. –Tentou se desvencilhar do abraço da criança, mas nem mesmo para isso possuía forças. O choro incessante lhe tirou quase toda a energia que tentava conservar ao longo de todos aqueles dias.

— Não é sua culpa... –Solan passou as mãos no cabelo da guerreira na tentativa de acalmá-la. – Gabrielle já a perdoou, você precisa se perdoar também. Sabe, mãe... a saudade não dói de verdade. –O menino deu um beijo desajeitado na testa de sua mãe, e ela ensaiou um sorriso envergonhado ao perceber que estava chorando nos braços do seu filho de doze anos.

Naquela noite ao olhar para a ovelha de madeira que era de Gabrielle, a guerreira se lembrou de que ela servira como uma luva para alimentar ainda mais a sua raiva por Esperança, mas agora ao olha-la, se parecia cada vez mais com uma âncora que servia para a afundar cada vez mais no mar de desespero que sentia pela perda da barda.

Dormir para Xena era uma experiência particularmente muito desagradável, todos os seus sonhos envolviam a morte de Gabrielle. A mulher tentava ao máximo resistir ao sono, mas naquela noite ao dormir não teve sonhos ruins, ainda sonhava com sua alma gêmea, mas dessa vez ela não estava morta em seus braços, havia paz em seu rosto (apesar de uma pitada de tristeza) e vida também.

— Xena, você quer morrer? Quer deixar Solan sozinho, é isso que você quer? –Gabrielle apareceu para a guerreira trajando um manto branco brilhoso, em seu lindo rosto havia serenidade, mas era perceptível que a dor de sua amada açoitava sua jovem alma.

— Não... eu amo minha vida. Amo meu filho, mas continuar sem você tem sido muito difícil. –A guerreira deixou lágrimas banharem seu rosto cansado e sofrido.

— Sei que a minha morte lhe encheu de dor, Xena. Mas meu amor... amor de todas as minhas vidas... a saudade não dói de verdade. Eu estou morta, mas o seu filho está vivo e ele precisa de você. –Xena sorriu ao lembrar de seu filho lhe dizendo está mesma frase há alguns instantes atrás. – A vida é trágica e bela ao mesmo tempo. Você precisa viver as tragédias e as belezas da vida, não quero que viva apenas as tragédias. –A moça limpou com seu dedo indicador as lágrimas que resvalavam do rosto de sua amada guerreira. – Não empalideça sua face lamentando erros do passado, me deixe ir. Deixei o meu instinto materno me cegar a respeito de Esperança, e eu paguei por isso... não quero que fique em penitência eterna pelos erros que eu cometi. Liberte-se da culpa, dispa-se da dor e tenha uma boa vida com seu filho... viva as belezas da vida, Xena. –A barda se aproximou dos ouvidos da guerreira para sussurrar aquela última frase e em seguida lhe deu um leve beijo nos lábios.

Ao acordar, Xena se sentiu ligeiramente abandonada, mas logo um sentimento intenso de amor que apenas a sua querida Gabrielle podia lhe proporcionar invadiu seu peito. A verdade é que o tempo não cura a saudade, nem a dor de perder alguém que nasceu para estar com você. Pensar na pessoa tortura a sua mente, envenena a sua alma e rouba a sua vida a cada dia que passa, o tempo se torna um inimigo, pois ele não ajuda, só machuca ainda mais. No passado, ao pensar nos momentos que compartilhou com Gabrielle, ela se lembrava do tchau que a barda deu a ela naquela tarde... parecia um tchau, um até logo, só parecia. Era um adeus para sempre, era morte. Nem a princesa guerreira podia lutar com a morte, apesar de querer. Já havia barganhado com os deuses por Gabrielle muitas vezes, nenhum deles tinha a atendido. Ela não entendia que um adeus da vida é um adeus, a morte não dá chances, apenas disfarça o adeus de alguém em “até logo”, “tchau”. Os que se vão não dizem adeus... dizem tchau, com o tempo dizem até nunca mais. Mas o adeus... o adeus não é dito de fato.

Se lembrando do que Gabrielle havia lhe dito em seus sonhos, Xena finalmente entendeu que a saudade é apenas um véu que os deuses põem diante dos nossos olhos para que sintamos falta daqueles que um dia amamos. Amar e perder dói, rasga a alma e destrói os sentimentos, mas pior do isto é não amar, não sentir saudades daqueles que partiram. Foi assim que Xena passou a entender que nenhuma dor é para sempre, foi então que ela chegou ao quinto estágio do luto, a aceitação. Não podemos culpar a morte por tudo, porque o fato é que para Celesta (a morte), pouco faz a diferença entre os mortos e os que irão morrer.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.