Do lado de fora do estábulo, o sol raiava de maneira brilhante no céu. Michaela escovava sua égua Shania de maneira delicada e carinhosa. Ela possuía o animal desde que tinha quatro anos de idade, e aprendera a montá-la quando ela não passava de um filhote. Com o passar dos anos, as duas desenvolveram uma cumplicidade tremenda, no nível de Michaela ficar horas no estábulo contando segredos para o animal. De certa forma, Shania fazia parte do que a garota era.

Vinda de uma família rica e de herdeiros, Michaela sempre teve todos os bens materiais que desejou. O pai nunca a assumiu e, embora ela o conhecesse, o laço entre ambos era inexistente. Sua mãe, por outro lado, era presente em sua vida, mas não de uma forma satisfatória. Victoria Jackson se achava boa demais para ser uma mãe. Passava boa parte de sua vida viajando e fazendo compras, e ocasionalmente lidando com assuntos profissionais da empresa de cosméticos da qual era dona. Michaela fora criada pelos empregados da mansão onde morava, tendo a mãe como uma figura que ocasionalmente aparecia e lhe ditava alguma regra.

Não era de se espantar então que, durante a infância e boa parte da adolescência, a sua melhor amiga fosse uma égua.

Nina fora a primeira pessoa a quem Michaela considerou uma verdadeira amiga. As duas se conheceram no início do high school, quando a amazona veio transferida de um colégio particular para aquele colégio público. O motivo fora uma escolha pessoal da garota, exausta do mundo elitista que a cercava. Aquela fora, em sua opinião, a decisão mais acertada de sua vida. Em meses fez uma amiga de lealdade à toda prova, e algum tempo depois arranjou um namorado carinhoso e a quem amava muito. Paris era um verdadeiro príncipe para ela. Bonito, gentil e preocupado. Tudo o que ela podia querer em alguém.

Quando a amazona terminou de pentear Shania, alguém bateu na porta do estábulo.

— Mimi? — Paris disse, entreabrindo a porta.

— Entra, lindo.

O rapaz timidamente entrou no estábulo e também timidamente olhou ao redor, procurando algo que não soube dizer o que era. Ele vestia-se com uma camisa polo preta e uma calça cáqui, aparentando ser um dos mauricinhos que Michaela detestava. Mas ela entendia o porquê dele fazer aquilo: pela primeira vez em toda a sua vida, Victoria assistiria a filha competir em uma corrida. Era também a primeira vez que Paris veria a mãe da namorada, de modo que o rapaz queria passar uma boa impressão. O que, no mundo em que Michaela vivia, significava que ele deveria parecer um mauricinho estúpido.

— Eu emprestei essas roupas do Junior, o que você acha?

— Você está ridículo. — Michaela disse, rindo. — O que significa que está perfeito.

Paris riu e se aproximou da namorada, sentando no banquinho de madeira ao lado dela.

— Você está nervosa?

Michaela pensou por alguns segundos, mas então respondeu:

— Um pouco. Eu estou confiante de que consigo ganhar essa competição, mas ao mesmo tempo eu estou com um pressentimento ruim. Sabe? Talvez seja pela presença da minha mãe.

Paris meneou a cabeça positivamente, compreendendo a situação.

— Talvez ela esteja diferente, Mimi. A tragédia no Atlântida fez todo mundo refletir melhor sobre a própria vida. Talvez a sua mãe tenha se dado conta de que poderia ter te perdido, e está tentando consertar o relacionamento entre vocês.

— É, talvez você tenha razão. — A garota murmurou, olhando para baixo.

O rapaz tinha plena confiança no que estava dizendo. Em sua casa mesmo, as coisas estavam bem diferentes. Pela primeira vez na vida, parecia que seu pai notava sua presença, e lhe elogiara por duas vezes (embora uma delas fosse pela escolha da camisa). Até mesmo sua mãe parecia mais doce e receptiva. Paris havia perdido vários colegas de classe, era verdade, mas ganhara pais novos.

O difícil era saber até que ponto aquela mudança era genuína. O acidente era recente, a ferida ainda estava aberta. Depois de cicatrizada, tudo poderia voltar ao que era antes. Até mesmo seu colégio, fechado por tempo indeterminado por conta da tragédia, em breve voltaria ao normal. O que todos ali precisavam era de um fechamento. Assim que tivessem a oportunidade de dizer seus “adeus” e perceber que as coisas realmente haviam mudado, voltariam a ser quem eram. Se adaptariam, mas não mudariam suas essências. Jeremiah e Katherina Nowak voltariam a ser quem eram, e Paris voltaria a ser a ovelha negra da família.

— Bom, eu vou te deixar sozinha pra você se arrumar. — Paris disse de repente, se levantando. Ele então se inclinou e deu um beijo na testa da namorada, dizendo: — Break a leg. — E saiu.

x-x-x-x-x

Sketch estava pontualmente as duas na casa de Riley. A garota sorriu ao vê-lo em sua porta, mas arregalou os olhos ao perceber que ele tinha vindo de moto. Seu pai estava de folga naquele dia, de modo que a garota apressou-se a sair antes que ele visse que os dois iriam de motocicleta. Sean Driskill conseguia ser muito antiquado quando queria, e a sua opinião a respeito daqueles veículos era preconceituosa e soberana.

O rapaz sorriu quando a ruiva o puxou pelo braço, apressando-se em colocar o capacete e sentar-se na garupa. Sketch deu dois tapinhas em sua própria cabeça, ainda com o capacete, e deu a partida na motocicleta, saindo do quintal dos Driskill antes que o pai de Riley os visse.

Quando os dois chegaram ao local onde ocorreria a apresentação do globo da morte, Riley sentiu um arrepio na nuca. Eles estavam nos limites da cidade, em um enorme terreno abandonado. Ali havia apenas terra seca por todos os lados, e diversas construções velhas e abandonadas, reminiscências de uma antiga fábrica têxtil. A ruiva imaginava que se tratava de uma propriedade privada cuja qual o dono havia se esquecido. Ou era simplesmente um terreno do governo, abandonado sem motivo aparente.

Ali havia diversas pessoas, quase todas elas com roupas no estilo punk. Riley vestia-se com uma regata preta, um colete jeans e um short preto, completados com uma meia calça escura e um par de coturnos também escuros. Seus cabelos estavam soltos e, depois do passeio de moto, bastante bagunçados. Ela definitivamente se encaixava ali.

Sketch por sua vez, usava uma calça jeans simples e uma camiseta branca, completada por um colar com um pingente de cavalo em seu pescoço. Era, com certeza, a pessoa que mais de destacava ali, mesmo carregando um capacete debaixo do braço.

O globo da morte estava localizado em um lugar estratégico, bem no meio terreno baldio. A armação de ferro escura parecia segura, e dentro dela duas motos já corriam, provavelmente fazendo algum tipo de teste. Riley distraiu-se olhando para elas, notando que, estranhamente, a porta por onde os motociclistas entravam e saíam, parecia ser feita de um metal diferente, talvez mais novo e soldado a pouco tempo.

— O meu primo é aquele da moto vermelha. — Sketch disse, apontando para uma das motos que já estava dentro do globo.

Riley meneou a cabeça positivamente, compreendendo.

— E quantas motos vão estar ali dentro ao mesmo tempo?

Sketch deu com os ombros.

— Oito, dez, doze... Eu não sei direito. Mas são várias. É um show bastante bonito.

A ruiva não soube direito como responder àquilo, então apenas concordou com um aceno de cabeça. Lembrava-se vagamente de ler na internet sobre um acidente com um globo da morte, que causou a morte de uma mãe e uma filha. Era terrível só de pensar.

Uma corrente de ar passou por trás da garota, e ela sentiu todo o corpo arrepiado, como se tivesse sido atingido por um raio. Olhou ao seu redor e percebeu diversas coisas. Duas garotas com rabos de cavalo de mãos dadas e pulando; um homem jogando uma lata de cerveja amassada no chão; um senhor barbudo cuspindo um chiclete vermelho; e por fim, uma criancinha. O garoto parecia ter dois ou três anos, e estava no colo de sua mãe. Ele segurava dois brinquedos em suas mãos. Um deles era uma motocicleta, e o outro era um cavalo de plástico.

O cavalo estava sem uma das patas.

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Paris estava sentado na arquibancada ao lado do irmão, que por sua vez tinha Nina ao seu lado. Do outro lado dele estava Victoria Jackson, com seu impecável chapéu branco e o seu terno feminino cor de rosa. Ela tinha em mãos uma bolsa Balenciaga branca, em que um chaveiro estava pendurado. Era um penduricalho de metal com o desenho da roda de uma motocicleta, o que era deveras piegas para uma mulher tão refinada.

— Senhoras e senhores! — Anunciou o apresentador da corrida de cavalos através do microfone. — Sentem-se confortavelmente, que a corrida está para começar!

E então todos aplaudiram, inclusive Nina e os gêmeos. Paris inclusive se levantou, procurando por Michaela entre os corredores na linha de partida. Não foi difícil encontrá-la, já que Shania era o único cavalo branco dali, e tinha uma cela cor de rosa em cima de si. A amazona já estava montada no animal, acariciando seu rosto e falando alguma coisa em seu ouvido.

Michaela conseguia sentir que a égua estava estranha. Ela parecia um pouco abatida, e pela primeira em anos se recusara a colocar sua cela na primeira tentativa. Era quase como se ela não quisesse competir daquela vez.

— Vai ficar tudo bem com você, Shania. Eu prometo. — A garota disse com carinho.

E então o juiz apontou a arma para cima, atirando e dando início à corrida.

Shania disparou na frente de todos os outros corredores, voando pela pista. Michaela segurava de maneira firme em sua égua, sentindo o vento vindo em direção ao seu rosto e beijando-a como Paris fazia. A poeira existente no vento não a incomodava, e apenas a adrenalina tomava conta de si.

— Vai Mimi, arrasa! — Nina exclamou, dando um pulinho.

— Você consegue, querida! — Paris gritou também.

Victoria limitava-se a olhar de maneira estoica para a pista de corrida.

Michaela e sua égua completaram a primeira volta sem dificuldade, em primeiro lugar. Apesar disso, a garota sentia que aos poucos ia perdendo território, e sentia a dificuldade da égua em manter o ritmo. O animal parecia cansado, a amazona conseguia sentir. Naquele momento ela internalizou que não havia problema em perder desde que Shania ficasse bem, e estava prestes a puxar as rédeas do cavalo e parar ali mesmo, para evitar que a égua ficasse pior, quando o pior aconteceu.

Shania caiu no chão com um baque surdo, levantando muita poeira. Todos na arquibancada expressaram suas reações de surpresa, e Paris e o irmão levantaram-se de suas cadeiras no mesmo instante, preocupados.

Por conta da poeira, Michaela não conseguia ver quase nada ao seu redor, apenas o coração batendo mais forte. E então ela ouviu o barulho do galopar dos cavalos.

O primeiro deles acertou-a em cheio, derrubando-a de costas há vários metros. Mas havia muitos atrás deles. O segundo e o terceiro cavalos passaram por cima da amazona sem piedade, pisando em seu estômago e cabeça. Michaela cuspiu uma quantidade imensurável de sangue e então arfou, tentando respirar. Quando o quarto cavalo passou por cima dela, sua visão ficou escura, e apenas o sol no céu lhe foi visível. Ela desejou a Deus que Shania estivesse bem.

O quinto cavalo pisou diretamente em seu rosto, quebrando seu pescoço.

Atrás de si, os cavaleiros e amazonas iam lentamente parando seus cavalos, se dando conta do que acontecia. Quando a poeira abaixou e todos na arquibancada puderam ver o que havia acontecido, um único grito foi ouvido. Um grito feminino, representando a dor de uma mãe.

— Michaela, meu bebê...!

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Havia onze motos dentro do globo da morte, Riley contou.

O sol havia sumido do céu, e o vento que fazia era cada vez mais forte. Sketch tremia, esfregando os braços, mas a ruiva tentou se mostrar mais forte, por algum motivo que nem ela mesma conseguia compreender. Seu pensamento ia longe, era verdade, mais especificamente nas palavras de Anna, a garota do vídeo.

Ela havia previsto um acidente, assim como Riley. E então todas as pessoas começaram a morrer, porque ela havia, de alguma forma, estragado com os planos da morte. A morte..., Riley refletiu. Como alguém enfrenta a morte? Até mesmo na bíblia ela é referida como o último inimigo. Ninguém consegue enfrentar a morte.

Aquele era um conceito complexo demais para Riley entender, pelo menos naquele momento. Ela já sabia o diria a Sketch mais tarde, quando ambos fossem comer alguma coisa, mas temia estar certa. Riley não duvidava de tudo o que ouvira da boca de Anna, mas também não acreditava que seu destino estava selado e não havia nada que ela pudesse fazer.

As motos giravam dentro do globo, fazendo manobras arriscadas que os olhos de Riley e Sketch mal conseguiam acompanhar. Os dois estavam bem próximos do globo, mas a uma distância segura, atrás do cordão de isolamento. O rapaz tinha os olhos azuis brilhando, fascinado com as manobras, enquanto Riley não conseguia tirar a expressão de tensão de seu rosto.

A portinhola do globo tremia mais intensamente a cada volta que uma das motos fazia em cima dela. A entrada estava trancada por nada além de uma fina e maleável barra de ferro, e ver aquilo fazia o coração de Riley bater mais forte.

— A gente pode ir embora mais cedo, Sketch? — Ela perguntou de repente, as palavras saindo de sua boca num rompante.

— Só mais um pouquinho, Riley. — O rapaz pediu, olhando dentro dos olhos dela. — É por causa do frio?

— É sim. — Ela mentiu, preferindo parecer fraca à paranoica.

Um estrondo foi ouvido logo que a garota pronunciou sua última palavra. A portinhola de ferro que prendia as motos voou pelos ares, caindo em algum canto do terreno árido. Riley olhou para o globo no mesmo instante, e percebeu a moto vermelha vindo na direção dos dois, voando com a mesma velocidade que percorrera no globo da morte antes de ser arremessada para fora dele. Restou a Riley fechar os olhos. Sketch não sentiu nada.

A moto caiu com força em cima do rapaz, derrubando-o no chão. As rodas dianteiras passaram por cima de sua cabeça, esmagando-a e fazendo uma quantidade imensurável de sangue e pedaços do cérebro espirrar no rosto de Riley. As rodas traseiras, por sua vez, passaram por cima do tronco e do braço direito do rapaz, arrancando-o do corpo.

O motociclista caiu em seguida, junto do veículo, embora ambos estivessem bem. O rastro de sangue deixado até que a moto parasse era terrível demais para se olhar.

Quando Riley abriu os olhos, ela tremia de maneira espasmódica, as unhas pretas de encontro ao rosto de maneira violenta. Sketch estava caído no chão, com a cabeça esmagada e o corpo em pedaços. A ruiva sentiu seu estômago embrulhando, e uma vontade incontrolável de vomitar.

Virou-se para o lado e assim o fez, sentindo o líquido cor de rosa escorrer por seus lábios vermelhos. As lágrimas vieram em seguida, e Riley caiu no chão em cima do próprio vomito, chorando e gritando diante da cena macabra que acabara de presenciar.

Subitamente o acidente no iate não era o momento mais trágico de sua vida.

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Um ano depois...

A luz do fim da tarde que entrava pela janela do hospital iluminava o rosto de Paris, fazendo seus olhos verdes brilharem. O rapaz estava sentado em um banquinho de madeira e vestia-se com um jaleco azul cheio de broches e enfeites, visual completado por uma boina amarela em sua cabeça. Em seu colo estava o violão, que ele tocava de maneira delicada e dedicada, enquanto uma plateia de mais ou menos dez crianças o assistia atenciosamente. Paris cantava:

Até o sol não tem o mesmo brilho sem você aqui

E o céu azul também perdeu a cor ao ver você partir

Tudo pra mim

Esse amor foi tudo pra mim.

Ao fim da música, todas as crianças o aplaudiram, assoviando e sorrindo. Paris agradeceu a todas elas e se virou para outro rapaz de jaleco azul que também estava na sala, acenando para que ele prosseguisse. O amigo sorriu em resposta, e começou a chamar as crianças para perto de si para uma roda de leitura. Todas seguiram o outro rapaz, enquanto Paris colocava seu violão no chão e suspirava.

— Essa música é muito bonita. — Ele ouviu uma voz feminina dizer.

Paris olhou para cima e percebeu que quem estava ali era uma mulher oriental que ele não conhecia. Ela era extremamente bonita, como uma boneca. Usava um vestido de verão florido e tinha os cabelos presos por uma tiara violeta.

— Obrigado, senhorita...

— Ziegler. — Ela respondeu solenemente. — Claire Ziegler.

— Obrigado senhorita Ziegler. Meu nome é Paris. — O rapaz respondeu, apresentando-se pelo apelido. Paris então se levantou, com o violão em mãos e pronto pra sair, mas foi interrompido pela oriental.

— Você é voluntário? — Ela perguntou, o seguindo.

Ao perceber que a mulher não estava ali para ver as crianças, Paris decidiu continuar caminhando, conversando com a oriental no corredor do hospital em direção ao estacionamento:

— Sou sim. Eu venho todas as terças, quintas e domingos, mas só na ala pediátrica. — Paris confirmou. — Elas gostam de me ver tocar, e eu gosto de vê-las sorrir, então eu acho que nós dois vencemos, certo?

Claire abriu um largo sorriso e meneou a cabeça positivamente. O rapaz perguntou:

— E você? Está visitando alguém aqui?

A oriental meneou a cabeça positivamente.

— Meu marido.

— E ele está bem? — Paris interessou-se, mas logo sentiu que invadia a privacidade de Claire. Vermelho de vergonha e sem saber o que dizer, tentou corrigir sua indiscrição: — Falta de educação de minha parte. Me desculpe.

— Ele está em coma. — Claire respondeu, parecendo não ter se importado. — Há um ano. No começo eu vinha visitá-lo todos os dias, mas agora eu venho... — E então ela fingiu estar tentando se lembrar de algo. — Todas as terças, quintas e domingos. — E riu.

Paris não conseguiu conter o sorriso decorrente da fala de Claire, mas então se sentiu incrivelmente inapropriado. Ela acabara de lhe contar que o marido estava em coma, e ele rira. Mas ela também riu. E se eu entendi direito, ela está flertando comigo. Será que isso é algum tipo de pegadinha? Mas então desistiu de pensar naquilo. Talvez ela só quisesse se sentir melhor sobre si mesma. Um ano era tempo demais para ficar ao lado de alguém naquela situação. Talvez Claire não se sentisse valorizada, amada. Eu sei disso. Faz exatamente esse tempo que a Michaela se foi, mas eu ainda estou ao lado dela. A minha princesa amazona. É deprimente.

— Eu sinto muito, Claire. — E então Paris calou-se, corrigindo: — Quis dizer que sinto muito senhora Ziegler.

— Eu gosto de Claire. — Ela devolveu, parando de andar ao chegar em frente à porta de um dos quartos. — Mas obrigado pelas suas palavras, Paris.

O rapaz sorriu de maneira solene e então se curvou, se despedindo da mulher e seguindo seu caminho. Claire acompanhou o rapaz com os olhos até que ele dobrasse o corredor e sumisse de seu campo de visão. Ela então se virou e ficou fitando a porta branca e fechada por um bom tempo antes de abri-la. Quarto 180, estava escrito na placa. Antes dele foi o 250, o 260, o 090 e o 110. Nessa ordem. Eu espero que eles parem de mover o James de quarto, refletiu.

Não havia um só dia que Claire não refletisse sobre o acidente que eles sofreram no dia de seu casamento. E a cada nova reflexão, ela concluía que tudo aquilo era natural. Que direito ela tinha de ser feliz? Ela desdenhara do milagre da vida e tentara esmagá-lo por duas vezes. Duas vezes em que desejou estar morta e quase esteve. Era apenas natural que quando tentasse viver sua vida de maneira feliz, esse direito lhe fosse negado. Isso é pra você aprender, algum ser superior diria. O milagre do qual você desdenha, é algo valioso demais. James adoraria estar no seu lugar... E Claire gostaria de estar no lugar dele, ela diria. James, mais do que qualquer outra pessoa, merecia viver.

Claire entrou no quarto e deparou-se com seu irmão Kazuhiro dormindo na poltrona que ficava ao lado da cama onde James estava. Ele tinha um videogame portátil em mãos, que ainda estava ligado. A oriental decidiu não acordá-lo nos minutos seguintes, e ficar apenas observando a ambos. Quem os visse ali, não diria que Kazuhiro dormia e James estava em coma. Os dois tinham a exata mesma expressão facial. A placidez absoluta. A calma. O sono...

Pensar naquilo, fez Claire se lembrar de uma cantiga de ninar que Constance costumava lhe cantar. A mulher então se prostrou ao lado do marido e, tocando seus cabelos recém-cortados, sussurrou de maneira ritmada:

Sleep my love as the birds above

Do rest their weary wings

Let the rain play a gentle song to help your dreams sing

Sleep my love, close your eyes

And when you awaken, the new day will bring to you a bright new world

Quando você acordar, o novo dia vai lhe trazer um brilhante mundo novo…

E então algo inesperado aconteceu.

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A música dentro do dormitório de Riley era alta o suficiente para abafar qualquer pensamento. A garota estava de camiseta e calcinha, deitada com os cabelos vermelhos espalhados pela cama e um cigarro na boca. Ela balançava a cabeça no ritmo da música, sentindo-se zonza por conta do álcool, evidenciado pela garrafa de vinho barato vazia caída ao seu lado.

De dentro do aquário, Felicia escorregava com as patas no vidro, tentando escapar. Como de praxe aquela era uma tarefa inútil, mas a tarântula jamais seria capaz de racionalizar isso.

Foi então que alguém bateu na porta.

A princípio Riley decidiu fingir que estava desmaiada de bêbada para não precisar atender quem quer que fosse. Fechou os olhos e tentou absorver todo o torpor causado pela combinação do tabaco com o álcool, aliados a uma música ensurdecedoramente alta. Mas as batidas continuaram, cada vez mais fortes, cada vez mais constantes.

— Me deixa em paz, porra! — A ruiva gritou, jogando a garrafa de plástico na direção da porta.

Puta que pariu, Riley! — Ela ouviu uma voz familiar dizer do outro lado.

Não pode ser... Agora?

— Vai embora! — Riley resmungou de maneira alta, para que conseguisse ser ouvida. — Não tem nenhuma Riley aqui.

Você vai abrir essa porta ou eu vou precisar arrombar? Eu já fiz isso antes, você sabe.

Sim, Riley bem sabia. À contragosto, a ruiva levantou-se da cama num pulo, sentindo-se zonza e caindo sentada na cama no mesmo instante. Ela demorou alguns segundos para se recompor, mas então seguiu até o som e o desligou, deixando que um silêncio ensurdecedor reinasse no quarto pela primeira vezes em dias. Riley parou diante da porta e suspirou. Retirou o cigarro da boca e o jogou no chão, pisando em cima dele com seus pés descalços para apagá-lo.

— Puta que pariu. — Andi exclamou, quando Riley abriu a porta. — Que porra aconteceu com você?

Riley revirou os olhos e se afastou, deixando que a outra entrasse. A ruiva então caiu na cama, exausta, e ficou observando o teto e refletindo. Se Andi tinha vindo ali para brigar, ela iria se arrepender.

— Eu não consigo entender. Mesmo. Como você conseguiu descer tão baixo. —A garota de cabelos azuis falou, enquanto abria caminho entre as roupas jogadas no chão e as embalagens de pizza e comida chinesa espalhadas por todos os lados. O dormitório tinha uma boa estrutura, não muito velha, mas Riley fizera um belo trabalho em deixá-lo uma zona completa. Nas paredes havia pôsteres de bandas de rock que Andi e ela gostavam, mas fora isso (e Felicia, no aquário), nada ali lembrava a antiga Riley. Para a amiga, era triste ver o que havia acontecido com a ruiva.

— Você veio me dar o sermão trimestral, estou certa? — Riley falou de maneira afetada e debochada, sinal de que estava claramente embriagada. — Recado dado. Volte daqui três meses.

Andi aproximou-se da cama onde Riley estava deitada e parou de pé. Ela usava uma calça skinny bordô e uma camiseta regata preta, bem como botas escuras em seus pés. Apesar disso, sua maquiagem era fraca e natural, diferente do usual.

Andi estendeu o braço e disse:

— Levanta, Riley.

A fala pareceu entrar por um ouvido da amiga e sair pelo outro. Riley não se moveu um centímetro.

— Última chance. Me dá a mão e levanta dessa cama agora, Riley.

Assim como da primeira vez, Andi foi ignorada.

— Isso vai doer mais em mim do que em você.

E então a garota de cabelo azul inclinou-se e pegou os cabelos de Riley de maneira firme, puxando-a e obrigando-a a se sentar. A ruiva tentou se desvencilhar, mas Andi foi mais forte e a segurou. A outra então ergueu o braço, mas segundos antes de sua mão alcançar o rosto da amiga, Andi segurou seu pulso e lhe deu um tapa no rosto com a mão livre. O estalo ecoou por intermináveis segundos.

Riley olhava para a amiga de maneira perplexa, sem saber o que dizer.

— Eu não vou mais tolerar isso. Eu sou sua amiga desde que eu me conheço por gente, Riley. Nós passamos pelas piores fases de nossas vidas juntas. Quando eu me isolei de todo mundo por causa da Nina, você esteve do meu lado. Quando a sua mãe abandonou você e o seu pai, eu estive do seu lado. Quando você previu a porra daquele acidente e salvou a minha vida, nós estávamos uma ao lado da outra. Por dez meses eu venho deixando você seguir sua vida e tomar as suas próprias decisões, porque eu sou a sua melhor amiga, e não a sua mãe. Mas eu não vou mais agir assim. Eu não vou ficar sentada assistindo você destruir a sua vida e jogar fora a jornada que nós tivemos até chegarmos aqui.

Ao fim do seu discurso, Andi tinha os olhos marejados. Riley também os tinha, e estava a ponto de chorar. A amiga de cabelos azuis não resistiu e, enquanto as lágrimas caíam, continuou:

— Eu não vou deixar um maldito acidente ser a porra da coisa mais importante das nossas vidas. Nossos colegas morreram, o Sketch morreu, fim. A vida segue em frente, Riley. Por quase um ano você tem se afundado nesse mar de álcool, cigarro e música alta, e por quê?

— Porque não faz diferença nenhuma. — A ruiva retrucou, dando com os ombros. — Todos nós vamos morrer. É a lista. A Michaela morreu, o Sketch morreu...

— Há um ano. — Andi interrompeu a amiga. — E desde então, nada mais aconteceu a nenhum de nós. Eu já ouvi você falar a respeito dessa lista incontáveis vezes, mas até agora a morte dos dois não passou de uma infeliz coincidência. E você, nessa sua ansiedade e temor de morrer amanhã, perdeu um ano da sua vida.

— Você não entende nada.

— Eu entendo mais do que você imagina. — Andi disse, se levantando da cama e olhando ao redor. — Isso acaba hoje. Você vai passar as suas férias do college comigo, na minha casa. Quando as aulas voltarem a gente dá um deixo de encaixar todas as matérias nas quais você foi reprovada na sua grade.

Riley ouvia a tudo calada, sem saber o que deveria dizer. Por um lado odiava Andi e odiava a maneira como ela estava tentando controlá-la e decidir o que ela deveria fazer de sua vida. Por outro lado estava tremendamente agradecida pelo fato da amiga ter vindo resgatá-la. Ela jamais conseguiria expressar de maneira consciente, mas inconscientemente não poderia estar mais aliviada. Quem sabe isso realmente não acabe hoje?

— É melhor você deixar todos esses lixos que você agora chama de roupa aqui. Eu te empresto umas coisas. — Andi disse, voltando a se sentar ao lado da amiga. Ela então tocou o rosto de Riley com as mãos e colocou a cabeça dela apoiada em seu peito. — Tudo vai ficar bem, amiga. Tudo. Nós vamos ficar bem. Você consegue acreditar em mim?

Riley apenas meneou a cabeça positivamente, o máximo de gratidão que conseguiria exprimir. Apesar disso, não acreditava nas palavras de Andi. Mesmo um ano tendo se passado, ela ainda duvidava que as coisas fossem ficar melhores. Não, ainda não acabou, eu tenho certeza disso. Mas eu também sei que jamais vai acabar se eu ficar parada, esperando que ela chegue. Eu preciso lutar, descobrir as brechas no sistema e então burlá-lo. Chega de se esconder, Riley.

É hora da dama colocar a cara no sol.