Duas semanas depois...

Quando Paris chegou ao corredor todo pintado de paredes brancas, teve vontade de sair correndo. A paleta de cores daquela instituição era inexistente, sendo composta somente do mais puro e sufocante branco. O piso tinha uma coloração um pouco mais suja, bege, mas mesmo assim parecia assepticamente claustrofóbico. Era como estar preso em uma bolha de claridade que não termina, não importa para onde se olhe. Pelo menos deve ser melhor do que a escuridão em que ela costumava ficar.

Assim que eles pararam diante da porta branca, Sean Driskill, pai de Riley, disse:

— Você tem certeza que isso vai ajudá-la, Paris? Ela disse que se pudesse vê-lo e conversar com você, sairia daqui. Mas pensando com mais calma, eu não sei se ela está pronta... Ela viu coisas traumáticas demais...

Eu também, Paris pensou, mas não disse.

Ao lado dos dois estava uma médica de nome Kalarjian, prostrando-se na frente de ambos de maneira bastante séria e austera. Paris olhou para as costas da mulher, cobertas pelo jaleco também branco, e refletiu por alguns segundos. Por um lado ele queria falar com Riley. Talvez ele pudesse ajudá-la a se recuperar e a sair dali pra valer. Por outro lado, ele sabia que, por algum motivo, a sua presença trazia ainda mais dor para a garota. O pior de tudo era que ele também sofria ainda, mas estava conseguindo lidar com tudo aquilo. A morte do irmão lhe doía absolutamente todos os dias de sua vida, mas havia esperança. Pra Riley também, eu tenho certeza.

— Eu tenho certeza. — Paris respondeu, decidido.

A doutora Kalarjian então assentiu com um aceno de cabeça e, ainda segurando a bandeja com todos os pertences do rapaz, abriu a porta com um cartão eletrônico, dando as costas e se afastando com Sean ao seu lado.

Paris então estava sozinho. Ele suspirou uma única vez e abriu a porta.

Riley estava deitada em uma pequena cama acolchoada, vestida com um uniforme de paciente, inteiramente branco, e olhando na direção da porta. Ela estava ali há exatos treze dias, cercada por paredes brancas e macias, assim como o chão que ela tinha debaixo de si. A única coisa que destoava de tudo ali eram duas fotos, coladas com fita crepe (o branco, sempre o branco!) na parede. Uma delas era de Riley, Andi e Lucas abraçados e sorrindo, os três com uma expressão engraçada no rosto. A outra era uma foto de Riley com os pais, Sean e Lana, durante o último aniversário dela em que eles passaram juntos. Paris conseguia ver que naquela foto a ruiva estava extremamente magra, vestígio da sua bulimia.

Quando a garota o viu, ela arregalou os olhos. Paris estava pronto para dar meia volta e sair antes que ela começasse a chorar de tristeza, mas então algo diferente aconteceu.

Riley correu na direção do rapaz, levantando-se da cama num pulo. Quando ela colocou os braços ao redor do pescoço dele, Paris abraçou-a da maneira mais calorosa que conseguiu. Não demorou muito para que as lágrimas dela molhassem o ombro da camiseta marrom que ele estava usando, fazendo o rapaz suspirar. Apesar disso, aquelas não pareciam lágrimas de tristeza, mas de consolo.

— Eu sinto muito pelo seu irmão. — Ela falou de maneira fraca, ainda abraçando-o.

Oh.

É como se ela achasse que tudo aconteceu ontem...

— Obrigado. — Paris respondeu, soltando-se do abraço de maneira delicada. — E obrigado por salvar a minha vida naquele dia, tomando uma bala por mim. Estamos quites, certo?

Riley abriu um sorriso delicado, mas genuíno. Apesar de pequeno, aquele gesto fora suficiente para iluminar todo o mundo de Paris.

x-x-x-x-x

Paris e Riley comiam em silêncio na praça de alimentação do shopping center.

Diante do rapaz estava um prato de macarronada com um molho verde chamado “pesto”, o qual ele nunca tinha experimentado na vida. Apesar disso, ele sabia que Junior sempre adorara aquele prato, de modo que decidiu experimentá-lo. A ruiva por sua vez, comia somente uma mínima porção de sushi, segurando os hashi de maneira bastante segura.

Aquele era o primeiro passeio dela fora da clínica desde que decidira se internar lá de maneira voluntária, duas semanas antes, no dia após a morte de Andi, Junior e Nina. Paris não entendia direito o motivo daquela decisão, mas naquele momento ele passava pela maior dor de sua vida, de modo que não tinha forças para entender a escolha de Riley. Durante duas semanas, ele nem ao menos pensou nela, apenas no irmão falecido. Não comeu, não dormiu, apenas chorou, trancafiado em seu quarto. Abraçara-se a uma camiseta do gêmeo, deitara no beliche inferior e ficara ali durante horas e horas, até que sentiu toda a dor se esvair de si. E então, subitamente, foi tomado por um sentimento de aceitação, de paz. Junior estava morto e nunca mais iria voltar. Ele precisava aceitar aquilo ou viveria o resto da vida sofrendo.

Uma vida que ele recuperara, aliás. Para o rapaz, tudo o que acontecera em Malibu estava bem claro. A morte tentara levar Paris, com a arma de Nina, mas Riley interferira e ele foi pulado. Chegou então a vez de Junior, e ele morreu vitimado pelo tiro disparado acidentalmente pela namorada. A próxima da lista era Riley, mas então Nina morreu, caindo do farol em direção às pedras. A loira morrera quando a morte esperava levar a ruiva. Estava finalmente terminado. Era naquilo que tanto Paris quanto Riley acreditavam.

Logo quando a ajuda chegou ao farol, naquele fatídico dia, chegaram também os policiais. A polícia da Califórnia interrogara ambos a respeito das mortes. Ao ouvirem o nome da garota, eles rapidamente trouxeram a presença de Sasha Boney e Jim Abbott, velhos conhecidos da ruiva. Paris só conseguia imaginar o que eles haviam conversado com ela, mas fizera a sua parte. Muito bem feita, imaginava, já que nenhum deles estava na cadeia.

A morte de Junior fora um acidente causado por Nina, e isso os detetives compreenderam rapidamente, dadas às circunstâncias e as digitais da garota na arma e no pescoço ensanguentado do namorado. Eles não acreditavam que Paris havia matado o irmão, porque ele havia buscado ajuda. Menor ainda era a possibilidade de que Riley pudesse ter feito aquilo, já que não havia nada que a ligasse à arma do crime.

A morte de Nina, porém, fora um ponto que intrigara os detetives, em especial Abbott. Riley lembrava-se claramente do olhar sinistro que o homem lhe dirigira pela segunda vez, cada vez mais certo de que havia algo de errado com ela. Aquela era a terceira vez que pessoas morriam ao seu redor, de modo que a ruiva sabia que a atenção dos detetives estava toda voltada para ela. Apesar disso, eles não conseguiriam provar nada. Riley sabia que não fora a causadora direta de nenhuma daquelas mortes, de modo que seria impossível que eles provassem o contrário.

A morte de Nina fora um acidente, Riley dissera. Ela mentira a respeito do fato de que fora ela quem empurrara a loira, alegando que acontecera o contrário. A única evidência que provava esse fato eram as digitais de Riley na amurada, quando Paris ajudou-a a subir de volta. Isso, somado ao depoimento dele sobre ter visto o exato momento em que Nina derrubou Riley (mesmo não tendo visto a cena), foi o suficiente para que não houvesse nada que os policiais pudessem fazer contra a ruiva. Nina estava emocionalmente instável, assassinara o namorado e tentara assassinar Riley. O motivo? Só Deus sabe, foram as exatas palavras de Paris para Jim Abbott e Sasha Boney. Ele jamais lhes contaria a respeito da lista da morte. Jamais.

Apesar de tudo, aquele interrogatório parecia ter sido a gota d’água para Riley, o que fez com que ela se internasse por duas semanas, buscando se afastar de tudo e de todos. Isso, na prática, significava apenas ele, Paris. Ele tivera de lidar com todas aquelas dores sozinho, mas não culpava Riley. O peso que ela tinha nas costas era muito maior do que o dele. Era como a maldição de Cassandra, da mitologia Grega. Ela tinha o dom de prever o futuro, é verdade, mas carregava também a maldição de nunca acreditarem nela. Deve ser um fardo bastante doloroso.

— Você tem certeza de que está bem? — O rapaz perguntou de repente, tentando escapar dos pensamentos depressivos que queriam controlar sua cabeça.

Riley ergueu a cabeça e meneou-a positivamente, porém de maneira fraca, colocando um sushi na boca. Depois de mastigá-lo, disse:

— Bem eu jamais vou ficar, eu acho. Mas eu estou melhor. Eu estou conformada com o destino de todos eles. Sabe?

Sei mais do que você imagina, garota.

— Sei sim. — Paris respondeu, concordando de maneira genuína. E então continuou: — Você não vai acreditar no que tem me ajudado.

— O quê? — Ela perguntou, aparentando sincera curiosidade.

— O grupo da Lola! — O rapaz exclamou de repente, temeroso pela reação da ruiva.

Riley apenas franziu o cenho, confusa. Mas era verdade. Paris os visitara logo após o fim da primeira semana, na primeira vez que conseguiu sair de casa depois do velório do irmão. Lembrava-se pouco do que acontecera na ocasião, exceto o fato de que chorara muito. Lily e Cassiel estavam lá mais uma vez, e a garota loira lhe dera valiosos conselhos a respeito de perder alguém importante. Ela imaginava saber do que falava, afinal havia perdido o primeiro grande amor de sua vida, o pai de seus dois filhos. Apesar da preciosidade de suas palavras, Paris inicialmente não acreditara que o que Lily havia dito fosse comparável com a sua situação. Para ele, não chegava nem perto.

O tal Bobby fora namorado de Lily, um amor em sua vida. Um de muitos que poderiam existir. Paris sabia o quanto aquela dor era forte, porque havia perdido Michaela numa circunstância semelhante, mas a dor da morte de Junior era tremendamente maior. Quando Michaela morreu, o rapaz sentiu que perdera uma parte importante da sua vida. Mais: na época, a parte mais importante de sua vida. Mas quando o irmão morreu tudo foi diferente. O que ele havia perdido não era parte de algo externo a si, do mundo ao seu redor. O que havia morrido com Junior era parte de si mesmo. Uma vez Paris ouvira alguém dizer que não havia laço mais forte que o de irmãos gêmeos, nem mesmo o laço entre uma mãe e um filho. Para ele, aquela era uma verdade incontestável. Ele entendia o irmão como entendia a si mesmo.

Paris e Junior estavam ligados desde o primeiro momento em que viveram. Perder o irmão era algo doloroso demais para ser explicado em palavras. Àquele que viera ao mundo e estava grudado a ele desde que eles não passavam de células sem vida, não existia mais. Viraria pó, desapareceria. A sensação de estar parcialmente morto era angustiante. Paris era Junior e Junior era Paris. Só os dois conseguiam compreender plenamente aquela conexão. Nem mesmo os pais os compreenderiam.

Qual foi a surpresa de Paris, então, ao perceber que Lily podia saber mais do que ele supunha. Quando a garota chegou à segunda reunião de Paris, estava acompanhada de dois meninos de cinco anos, gêmeos. Eram os filhos dela, a quem a garota apresentou como Max e Bimbo. O primeiro era um agitado e enérgico garoto, correndo por todos os cantos da igreja. O segundo por sua vez era mais calmo, com uma aparência tranquila e uma personalidade afável. Lily explicara que ele tinha uma síndrome chamada de “cri-du-chat”, mas que isso só reforçava ainda mais o laço entre ele e o irmão. Paris compreendia aquilo mais do que a garota poderia imaginar.

E então, vendo os garotos brincarem na reunião, Paris soube que Junior estava bem, onde quer que estivesse. Soube que a parte dele que morrera estava viva, sim, só estava mais distante. Fosse no céu, fosse em outra dimensão... Junior existia, e em algum lugar ele e Paris estavam correndo de um lado para o outro, brincando como Max e Bimbo. Era assim que deveria ser.

Riley estava em silêncio, tentando decifrar o olhar perdido do rapaz à sua frente. Era difícil.

— Eu fico muito feliz que as reuniões tenham te ajudado, Paris. Aquelas pessoas parecem muito boas, especialmente a Lola e a Lily. — Riley começou, mas antes que Paris pudesse acrescentar algo, ela continuou: — Mas elas não vão funcionar pra mim. Eu só quero seguir em frente, mesmo. Tentar deixar o passado no passado. Falar sobre o que sente funciona para algumas pessoas, como você, mas não funciona pra mim. Eu preciso ficar sozinha. Eu rapidamente volto à ativa. Foi a Andi que me ensinou a ser assim. Eu preciso fazê-la ter orgulho de mim, pelo menos dessa vez.

Paris compreendia aquele sentimento. Ele também tentava viver cada dia de sua vida de uma maneira que pudesse deixar Junior orgulhoso.

— Tudo bem! — O rapaz falou, sorrindo. — Eu fico feliz em saber que você pensa assim. De coração. — E então Paris estendeu o braço por cima da mesa e tocou as mãos pálidas de Riley. Nos dedos dela, o esmalte preto estava bastante desgastado. — É reconfortante saber que você está nessa comigo.

Riley sorriu em retribuição. Ela afagou a mão que a tocava, utilizando sua outra mão. Disse:

— De agora em diante, pra sempre.

x-x-x-x-x

Riley acordou no meio da noite, assustada.

Ela sentou-se na cama e começou a respirar fortemente, sentindo o coração apertado e os batimentos cardíacos acelerados. Era como se uma força sobrenatural apertasse seu peito e tentasse sufocá-la em seu próprio sono. E tudo isso depois do pesadelo. O maldito pesadelo que ela vinha tendo há vários e vários dias, e que por algum motivo não a deixava dormir.

Era sempre a mesma situação. Ela estava em algum lugar, qualquer lugar, e então tudo começava a desmoronar. O teto caía por todos os lados, deixando a ruiva encurralada em seu próprio lugar. Riley então olhava para cima e um enorme bloco de concreto caía em cima de si, mas ela não morria. A garota conseguia sentir todo o peso do objeto, sufocando-a e apertando seu peito até que ela se sentisse desesperada e acordasse. Era sempre assim, todas as noites.

Riley olhou para o relógio na cabeceira da cama e percebeu que ainda não era nem meia-noite. Ela havia ido dormir bem cedo, exausta por algum motivo que não sabia explicar. Tateou por seu celular, ao lado do relógio, e o encontrou com facilidade. Ela então abriu o WhatsApp e viu que Paris não ficava online há mais de vinte e quatro horas, o que não era estranho, já que ele detestava o aplicativo. Mesmo assim, Riley sentiu-se angustiada e decidiu ligar para ele. Ainda é cedo, ele deve estar acordado.

O rapaz atendeu no segundo toque, confirmando a teoria da garota.

Oi Riley. Tá tudo certo contigo? — Ele disse quase que instantaneamente. Seu tom de voz parecia preocupado.

— Está sim. Eu te liguei só pra saber se você está bem. Você está bem?

Do outro lado da linha, ela ouviu Paris rir de maneira fraca.

Obrigado pela preocupação, gatinha. Mas eu estou bem sim, eu juro. Existe algo com o qual eu deva me preocupar?

— Não. — Ela respondeu prontamente. — Foi só uma sensação estranha que eu tive. Deve ser o estresse pós-traumático do qual a Doutora Law vive me falando. Desculpa depositar isso em você, Paris.

Não tem pelo que pedir desculpa, gatinha. — Ele falou de maneira calma. — Eu não me importo em atender suas ligações não importa qual seja o horário. Você pode contar comigo. — E então ele parou de falar, como se refletisse sobre alguma coisa. — Mas tenta não levar a sério esses pensamentos. Nada de ruim vai acontecer com a gente, fica tranquila. Se você não acredita em mim, vai até a reunião da Lola. A galera lá vai te falar a mesmíssima coisa.

— Eu já disse que...

Desculpa. — Paris a interrompeu. — Você já me disse o que pensa, então desculpa por ficar insistindo. Eu só quero que você fique bem.

Riley sorriu de maneira consternada. Paris era paciente demais com ela. Ele não merecia ter todas aquelas frustrações descontadas em cima de si, até mesmo porque ele próprio estava ainda tentando lidar com tudo o que acontecera. Não era justo.

— Obrigada por me ouvir e me acalmar. Eu vou ficar bem.

Você jura?

— Juro. — Ela confirmou de maneira incerta. — Fica bem também, ok?

Claro, gatinha. Boa noite.

A ruiva respondeu ao boa noite do rapaz e desligou a tela do celular, voltando a colocá-lo em cima da cabeceira da cama. Sem saber o que deveria fazer, Riley deitou-se mais uma vez, suspirando fortemente. Tinha medo de dormir e ter o mesmo pesadelo de sempre. Nunca acontecera por duas vezes na mesma noite, mas ela tinha medo de arriscar. No fim das contas, será que Paris poderia ter razão?

Só uma visita, não pode fazer mal. Quem sabe eles podem me ajudar?

Riley estava decidida. Faria qualquer coisa para conseguir ter sua vida normal de volta.

x-x-x-x-x

Quem falava naquele momento era uma garota loira bastante bonita.

Paris observava seus graciosos gestos sem prestar muita atenção na presença de todos ao redor dela. A reunião de Lola estava especialmente grande naquele dia, embora o rapaz conhecesse apenas a anfitriã, Riley, Lily e a garota que falava naquele momento, já que ela havia se apresentado para ele logo antes da reunião começar. O seu nome era Melissa, e ela aparentemente também era uma sobrevivente da lista da morte.

—... Não apenas metaforicamente, mas fisicamente. — A garota loira continuou dizendo. — Eu descobri que eu podia salvar a mim mesma dos desígnios da morte. Se ninguém viesse em minha ajuda, se a minha salvação dependesse unicamente de mim... Se eu fosse capaz de antever um movimento da própria morte e salvar a minha própria vida, então eu estaria liberta.

Encostada na porta de ferro que levava à varanda, Riley ouvia atentamente o que a tal Melissa dizia. Ela tinha as unhas pintadas de verde, o que, por algum motivo, chamou a atenção da ruiva. Tudo o que ela dizia fazia sentido, mas não interessava à Riley. Ela já estava salva, não importava quais métodos eles desconheciam a respeito de como escapar da lista da morte. O que a aprisionava dessa vez era algo muito maior, poderoso e invencível do que o último inimigo: a sua própria mente. Os pesadelos que a consumiam...

Lily olhou para a ruiva e percebeu a sua expressão de angústia quase que no mesmo instante. Enquanto Melissa ainda falava, ela pediu licença e levantou-se de sua cadeira, caminhando na direção de Riley.

— Nós podemos conversar por um segundo? — Ela perguntou.

Riley meneou a cabeça positivamente, concordando e se dirigindo até a varanda. Lily a seguiu. Elas então fecharam a porta atrás de si, enquanto observavam de maneira displicente o sol se pondo no céu. Foi a loira quem disse a primeira coisa:

— Me desculpa se eu estiver sendo intrometida, Riley. Mas você me parece... Angustiada.

Você está certa.

— Não é nada. — A ruiva mentiu. — Só uns pesadelos que têm me tirado o sono.

— Pesadelos? De que tipo?

— Não é nada não, eu... — Riley começou a falar, mas a outra garota a interrompeu.

— Eu não quero me intrometer na sua vida, eu juro. — Lily falou. — É que a expressão em seu rosto, os pesadelos... Você me lembra muito de uma amiga minha, a Alice. Ela teve pesadelos durante um bom tempo após a morte do Bobby. Ela também é uma índigo, aliás.

Riley franziu o cenho, curiosa. Subitamente flashes da morte de Sketch e de Claire começaram a passar em sua cabeça, o sangue deles respingando em seu rosto e em sua boca. O gosto do líquido vermelho...

— E onde essa Alice está hoje? — A ruiva perguntou de repente, meneando a cabeça negativamente como forma de afastar os flashes de sua mente.

Lily sorriu de maneira fraca.

— Ela está morando em Paris, trabalhando pra uma revista de moda de lá. — E diante da expressão de surpresa no rosto de Riley, a loira continuou: — Eu sei que nós aqui na reunião da Lola parecemos pessoas infelizes, que não conseguem seguir com a própria vida mesmo anos após termos sobrevivido à lista. Mas isso não é verdade. Nós somos felizes, eu sou feliz. E existem aqueles cuja felicidade não depende de estar em paz com o passado, mas de ver as possibilidades do futuro. É o caso da Alice e, arrisco dizer, o seu caso também. Se você não consegue ver tudo o que aconteceu na sua vida como algo que lhe traga paz, então apenas tente se esquecer de tudo isso. Arranje um hobby, se dedique mais aos estudos, trabalhe com algo que goste. Qualquer coisa que ocupe sua mente, pelo menos por agora. Eu te garanto que em pouco tempo só vai restar a saudade dos seus amigos. Mas uma saudade boa, nostálgica... Eu te garanto isso, Riley.

Quando a garota terminou de falar, a ruiva tinha os olhos lacrimejantes. Por algum motivo, aquela fala de Lily fora capaz de tocar em seu ponto mais íntimo, na ferida mais aberta e dolorosa. Riley já havia ouvido dezenas e dezenas de conselhos diferentes. De seu pai, da Doutora Law, de Paris... Mas apenas aquele conselho, o de Lily, parecia contemplar todas as suas angústias.

Riley estava disposta a tentar.

x-x-x-x-x

Três meses depois...

Paris e Riley esperavam do lado de fora do prédio onde ficava o teatro. Havia um pequeno atraso até que as enormes portas de madeira se abrissem e permitissem a entrada dos espectadores. Fazia um pouco de calor naquela noite, de modo que ambos não tentaram uma escolha de roupa mais formal, especialmente se comparado com as pessoas ao seu redor. A ruiva usava os cabelos presos em um elegante rabo de cavalo, mas vestia-se com uma calça cáqui, uma camisa de cetim preta e um blazer da mesma cor por cima dela. Em seus pés ela tinha um par de botas de cano curto. Seu visual era completado por um relógio dourado em seu pulso, um presente de aniversário de que sua mãe lhe dera e que havia chegado dois dias antes, direto de Nova York.

Já Paris estava vestido com uma camisa preta com as mangas dobradas e uma calça da mesma cor, embora feita de um material um pouco mais espesso. Ele também usava um par de botas em seus pés, bem como o colar com a aliança de Michaela em seu pescoço, guardado dentro da camisa. A barba por fazer já durava três meses, mas ele estava gostando daquele visual, de modo que não tinha planos de apará-la. Os cabelos estavam penteados para o lado, sem muita pompa, como de costume.

— Cassandra... Por que você quis assistir a essa peça? — Paris perguntou de repente, virando-se na direção da garota. Cassandra, huh? Brr.

Riley estava um pouco distraída olhando para as pessoas ao seu redor, mas conseguiu ouvir o que o rapaz dissera. Respondeu, olhando nos olhos dele:

— Acredite ou não, eu gosto de teatro. Eu e a Andi costumávamos gastar boa parte do nosso salário assistindo peças ou concertos de bandas de rock e metal, embora essa segunda parte não seja nenhuma surpresa né? — Ela riu, e o rapaz fez o mesmo. — Além do mais, a Cassandra era uma visionária. Literalmente.

Eu sei, Paris refletiu. Igualzinha a você.

Quando as portas se abriram, todos os espectadores entraram. O hall era bonito e formal, composto por um chão de mármore, paredes pintadas em tom de vinho e um enorme tapete vermelho, disposto por toda a extensão do local, desde a porta de entrada do prédio até a porta de entrada do teatro em si. Riley deslumbrou-se com a visão que tinha diante de si por alguns instantes. Paris aproveitou-se da distração dela e decidiu tirar uma foto. Por azar, o celular estava com som, de modo que o barulho do obturador foi ouvido por Riley.

— Hey! Sem fotos! — Ela brincou, tapando a câmera como se ele fosse um paparazzi.

Quando os dois entraram no local onde aconteceria a peça, os olhos de Riley se deliciaram com toda a estrutura. O teatro tinha a forma clássica de arena, onde o palco ficava na parte mais baixa, ao centro, com centenas de bancos de madeira estofados o circundando. Acima da cabeça deles estavam diversos holofotes e estruturas de ferro segurando-os. Todos eles estavam desligados, deixando o lugar quase que completamente imerso na escuridão, com exceção de pequenas luzes dispostas nas escadas, para que as pessoas conseguissem encontrar seus lugares.

Ao fundo, uma música tocava de maneira bem baixa, de modo a climatizar o ambiente enquanto os espectadores se acomodavam:

Like a lightning bolt

Your heart will glow

And when it's time you'll know

You just gotta

Ignite the light

And let it shine

Just own the night

Like the Fourth of July

Paris guiou a ruiva através dos corredores, enquanto ela segurava em sua mão o bilhete 18 da fileira O. 18-O. Isso me lembra o 18 O’Riley, a garota refletiu, embora considerasse aquela coincidência boba demais para contar ao rapaz. Eles continuaram descendo várias e várias fileiras, parando na segunda depois do palco, bem perto de onde a peça aconteceria, porém bastante longe das saídas. Quando Riley olhou para cima, todos os bancos acima do seu pareciam pequenos, com as pessoas do tamanho de formigas andando de um lado para o outro e procurando seus lugares.

Os dois sentaram-se de maneira confortável, ajeitando suas roupas. Paris suspirou. A atenção de Riley então foi chamada para uma pequena plaquinha de bronze colocada na beiradas do palco e fixada por pequenos pregos enferrujados. Forçando a sua visão, a ruiva conseguiu ler a mensagem dela. Dizia:

Em homenagem à estupenda Themis Aghata Dellis. Que o seu talento e a sua generosidade nos abençoem durante toda a eternidade.

— Oh! — Paris exclamou quase que imediatamente após Riley terminar de ler o que estava escrito ali. Aparentemente, ele também havia lido.

— O que foi? — Ela perguntou.

— Nada de importante. — O rapaz confirmou com um aceno de cabeça, como a pedir que ela ignorasse aquilo.

Mas aquela não era a verdade. Ele sabia quem era a tal Themis homenageada ali. Mais do que isso: ele assistira a sua morte em uma das últimas filas, quando fora assistir aquele mesmo espetáculo na Flórida, junto com o irmão e os pais. Na ocasião tudo o que eles conseguiram ver foi o momento em que dois enormes holofotes se chocarem no centro do palco, prensando o corpo da garota. E então Jeremiah e Katherina saíram do local arrastando os filhos, evitando que a cena grotesca que se seguiu se fixasse em suas mentes. Paris nunca mais pensara naquilo, até aquele momento, ao ver a placa. Por algum motivo, aquilo fez com que uma onda de eletricidade percorresse todo o seu corpo. Chega, Paris. Chega.

Por sorte, os pensamentos do rapaz foram interrompidos pelo começo da peça. Ou pelo menos o que ele achou ser o começo da peça.

Quando os fogos se acenderam no palco, num show de luzes escandalosamente belo, Riley olhou para trás, sentindo uma sensação estranha em sua nuca. No assento atrás do banco dela estavam os detetives Jim e Sasha. A ruiva pensou em falar alguma coisa para eles, mas nenhum dos dois pareceu perceber sua presença, absortos com o espetáculo de fogos no palco. Mas então, quando o homem abriu a boca de maneira surpresa, a garota voltou a olhar para o palco e o que viu fez todo o seu corpo congelar. Oh, não. Não, não, não...

O fogo se alastrou através do chão de madeira e explodiu de maneira ensurdecedora, fazendo algumas pessoas na primeira fila gritarem de susto. A ruiva ouviu um burburinho ao fundo, atrás de si, e viu que algumas pessoas se levantavam de suas poltronas. Quando ela ouviu o segundo estouro, sentiu a mão de Paris segurando seu braço com força e puxando-a para o lado oposto de onde ela olhava. Ele sabia o que estava acontecendo ali.

Subitamente o palco inteiro estava em chamas. Os espectadores do teatro subiam os degraus às pressas, tentando sair da sala, enquanto alguns seguranças gritavam ordens que nenhum dos dois conseguia ouvir ou entender. Mas então uma voz soou clara nos ouvidos de Riley, como se a pessoa estivesse ao lado dela:

—... É um bomba! Têm bombas por toda a extensão do teatro!

E outra:

— Terroristas!

E uma terceira:

— Deus nos ajude!

Riley olhou para cima no exato momento em que ouviu o terceiro estouro, e então uma parte da estrutura de metal que ficava no teto começou a ruir, caindo e esmagando as pessoas que estavam próximas das portas de saída. Ela viu o corpo de Jim Abbott sendo prensado junto com vários outros, enquanto sua gravata se enchia de sangue, o líquido vermelho escorrendo pelas escadas.

Outro estouro, e então dois holofotes caíram como pêndulos, em direções opostas, jogando algumas pessoas para longe, entre elas Sasha Boney. A mulher loira foi arremessada até o alto, batendo na estrutura de metal e caindo no chão como uma boneca de trapos, morta. Nesse ponto os gritos se tornaram altos e incessantes. Eram gritos de pânico e terror, de pessoas que sabiam que estavam morrendo. Riley conhecia aquela sensação melhor do que ninguém.

— Mas não pode ser! — Ela exclamou de repente, enquanto era arrastada por Paris para longe. A única sensação que tomava conta da garota era a frustração. Ela sentia-se genuinamente traída. — Nós derrotamos a morte! Por que isso está acontecendo?

Mas ele não respondeu. Paris nem ao menos se virou para ouvi-la. Ele apenas puxou-a para o lado esquerdo do teatro, passando por cima das poltronas e desviando das pessoas que se acotovelavam nos corredores. As portas de saída estavam obstruídas, mas o rapaz percebeu que dois seguranças balançavam lanternas em diferentes pontos do local, indicando saídas de emergência. Uma delas estava bem próxima deles, há cerca de vinte metros.

Foi então que Riley conseguiu ver o pequeno aparelho colocado embaixo do banco onde Paris estava. Era parecido com um videocassete, mas tinha em si uma pequena tela semelhante a dos aparelhos micro-ondas, em que estava inscrito: 0:18. E então 0:17. 0:16. 0:15...

— Uma bomba... — Ela murmurou para si mesma.

Subitamente, conforme as letras vermelhas da contagem regressiva iam diminuindo, todas as memórias de Riley ficavam claras. Especialmente as memórias daquele fatídico dia, as quais mudaram a sua vida para sempre. Por alguns milésimos de segundo a garota quis rir. E então quis chorar. E então se sentiu absurdamente estúpida. É claro. Mas é óbvio... Nós não enganamos a lista da morte de maneira nenhuma. Nós apenas a seguimos, como dois cordeirinhos a caminho do matadouro. Nós é que fomos enganados.

Quando eu empurrei a Nina daquele penhasco, eu deveria ter caído junto com ela e morrido. Nós duas morreríamos, primeiro eu e depois ela, como era o nosso destino final. Mas então o Paris interveio e me salvou, fazendo com que eu fosse pulada. A lista simplesmente recomeçou e levou Nina, que era a próxima. E então é a vez do Paris agora. E depois sou eu. Oh.

Dessa vez, porém, Riley não podia interferir na morte de Paris. Não era justo com ele. Não. Chega. Isso já foi longe demais. Ele morreria, era verdade, e ela iria junto com ele. Não havia mais nada a se fazer, nenhuma batalha a se vencer. Aquele era o seu destino e, depois de tanto tempo e tanta luta, ela estava disposta a aceitá-lo.

Paris, porém, não pensava da mesma forma. Quando ele tentou pular por cima do banco onde a bomba estava, sentiu a mão de Riley desvencilhando-se da dele, como se ela quisesse escapar da salvação. Quando o rapaz olhou para trás, durante um pequeno segundo que durou uma eternidade, ele viu o rosto complacente da ruiva. Ela sorria como se soubesse de algum segredo que ele não sabia, e aquilo o assustou tremendamente. Ele jamais descobriria o segredo daquele sorriso.

Quando Paris ouviu o zunido característico da bomba, o seu instinto de sobrevivência pediu que ele saísse dali a todo custo, mesmo sem saber do que se tratava. Sem pensar duas vezes, o rapaz pulou como um gato para longe dos bancos, caindo há cinco metros, em cima de algumas pessoas, e então rolando pelo corredor próximo da porta de emergência. Ele conseguiu sentir o calor atrás de si, e o barulho estrondoso que o deixou com o ouvido zunindo.

Eu quase morri. Eu... Eu me salvei. Assim como a Melissa disse. Ninguém veio em minha ajuda, eu antevi o momento em que iria morrer, e eu escapei. Acabou. Finalmente está tudo acabado.

Riley não sentiu nada. Não houve a pressão de seus pesadelos, nem o desespero, nem ao menos a dor de estar sendo sufocada. Tudo o que ela viu foi a luz, e então a claridade a abraçou, guiando a dama através da escuridão.

Fim.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.