Como em todas as quartas-feiras, mais um treino pesado tinha acabado e minhas pernas estavam tão cansadas que eu sentia como se um trator tivesse passado por cima delas. Havia chamado meus amigos para assistir o campeonato lá em casa, mas nem pensei que estaria tão esgotado. Oito horas da noite e o sono já estava me dominando, quando os garotos começaram a chegar.

— Vocês sabem onde é a sala de televisão — apontei para o corredor.

Fui até a cozinha pegar umas cervejas e salgadinhos, levei até a sala e deitei no sofá. Apesar de todo o barulho a cada gol feito, cochilei como uma criança.

— Daniel! Daniel! — eram os gritos do meu pai, a pior maneira de acordar alguém.

— Oi? Oi, pai — falei, assustado, enquanto me recompus.

— Boa noite, meninos — ele falou por educação. — Daniel, sua mãe está chamando na cozinha.

— Boa noite — alguns disseram.

A maioria dos meus amigos já sabia que meu pai era uma pessoa difícil de lidar, então aquilo pouco surpreendeu. Olhei para Jorge e ele estava rindo de um jeito descarado, sabendo que eu levaria alguma bronca. Respirei fundo e fui até a cozinha a passos lentos para adiar a conversa.

— Daniel, seu merda, eu não trabalho o dia inteiro para bancar você brincando de Neymar e no final do dia encontrar minha sala ocupada por um monte de marmanjo. Quem te deu permissão?

— Calma, Carlos. Não precisa falar assim também — minha mãe intercedeu.

— Calma nada. Esse imbecil está precisando de uma surra grande o suficiente para impedi-lo de usar essas pernas novamente. Se você continuar tratando-o como uma criança, ele nunca vai aprender.

— Desculpa, pai. Achei que vocês viajariam hoje — tentei falar algo, mas naquele momento a discussão era dos meus pais.

— Muito inteligente pagar escola de futebol por mais de dez anos e depois acabar com a carreira dele assim — ela ironizou.

— Cala a boca, Meire. Você vai dar razão para ele? — disse isso apontando para mim sem olhar na minha direção.

— Realmente, meu filho. Não dá para chamar um monte de gente sem pedir permissão antes. Seu pai tem razão desta vez — este foi o momento em que minha mãe se lembrou de que eu estava ali.

— Vou pedir para meus amigos desocuparem a sala — falei.

— E amanhã tem treino, seu idiota. Se você não se dedicar cem por cento ao esporte, vai acabar como empregado do Victor. Estamos entendidos?

— Sim, pai.

Ainda meio sonolento, fui até a sala e avisei a todos que precisariam ir quando o primeiro tempo terminasse. Meu cansaço era tanto que nem consegui ficar com vergonha.

— Poxa, cara — Tiago falou.

— Desculpa, pessoal. Acabou a cerveja por hoje — avisei.

— Está tudo bem com seu pai? — Flávio perguntou.

— Vai ficar. Ele é sempre assim. É só drama.

Quando todos foram embora, falei para meu pai que a sala estava livre para assistir o segundo tempo em paz. Fiquei na sala esperando, mas ele deve ter assistido no escritório. Dormi na poltrona e acordei no dia seguinte. Nessas horas eu sempre me perguntava por que eu não tinha ido morar na Irlanda junto com Victor.

O cansaço é até amigo nessas horas, afinal, dormi como uma pedra e acordei preparado para ir ao colégio e depois seguir para o treino. Não vou mentir que preferia fazer um supletivo em uma escola qualquer e terminar logo o ensino médio para focar no futebol, que é o que eu quero fazer para toda vida, mas meus pais insistiram que eu precisava de um plano b. Meu maior desejo era mostrar para eles que eu não precisava de um plano b. Fazia projetos na minha cabeça, imaginando o primeiro contrato assinado com um bom clube, a compra da primeira casa a qual eu poderia levar quem eu quisesse, uma grande carreira em que o Victor quem quereria ser meu secretário.

Nesse dia, o colégio foi o mesmo tédio de sempre. Até o intervalo foi meio chato, pois tentei ficar evitando Elisa. Eu gostava dela como pessoa, era bonita e tal, mas não quis dar falsas esperanças naquele momento. Imagino que ela estava querendo distância de mim depois do episódio vergonhoso em que viu meu pai chamando minha mãe de puta.

Para deixar meu dia mais interessante, pelo menos o treino foi proveitoso. Senti que estava com bastante energia dessa vez. Quando terminei meus exercícios, fui ao vestiário tomar um banho.

— Daniel, Elisa ainda vai vir assistir os treinos? — Martinho parecia bastante curioso.

— Elisa? Acho que não, cara. Por quê? Você está interessado nela? — estranhei o interesse repentino.

— Claro que não, mané. Tenho noiva e eu a amo muito. Ela adora a Elisa, é só por isso que perguntei.

— Já era, Martinho. A fila andou. É por isso que ele é conhecido como The Flash — Brian brincou.

— Sua noiva conhece a Elisa? — perguntei.

— Daniel, é a ElisaBit — Silva retrucou, do outro lado da sala, como se isso fosse óbvio.

— Elisa o quê? — franzi a testa, pois não estava entendendo nada.

— O cara nem sabe quem ela é — Silva continuou com aquele tom de quem não está acreditando no que está falando.

Martinho começou a rir, pegou o celular e me mostrou o canal que Elisa tinha no YouTube. Bit era seu sobrenome, Bittencour, diminuído. Tinham vários vídeos de gameplay, tags, desafios e outras coisas dos temas mais aleatórios possíveis. Quando rolei a página, descobri que ela tinha quase quatrocentos mil inscritos.

— Gente. Ela tem muitos inscritos — comentei, já de queixo caído.

— E é merecido. O canal dela é bem legal, para ser sincero. Comecei a assistir com a minha noiva um dia desses. Ela já estava animada para conhecê-la — Martinho disse.

— Ela joga FIFA melhor que muitos caras. Tirei uma foto com ela um dia desses — Silva falou.

— Lembro que vi vocês conversando naquele dia. Achei que ela tinha pedido uma foto contigo — eu disse.

— Fui eu quem pedi. Você brincou dessa vez, The Flash. — Silva explicou. — Se ela estiver a fim de um novo jogador...

— Temos um fã aqui — Brian brincou, apontando para Silva. — Agora até eu quero ver esses vídeos.

Nem tive tempo para reagir, mal processei a novidade e saí meio fora do ar do treino. Fiquei chocado com a conversa que tinha acabado de acontecer. Nunca pensei que Elisa era o tipo de garota que tem coragem de se expor na internet daquele jeito. Afinal, era só a Elisa do colégio. A primeira coisa que fiz ao chegar em casa foi ligar o tablet para assistir alguns vídeos.

Olá, terráqueos! Aqui é a ElisaBit e hoje é dia de tags. Essa semana foi meio corrida para mim então hoje vou falar um pouco sobre mim. Para ser mais exata, são cinco fatos estranhos sobre mim. Foi difícil escolher apenas cinco, mas eu consegui. E esse vídeo merece alguns likes porque é, tipo, muita exposição. Combinados? Dependendo do número de likes eu posso fazer mais vídeos parecidos.

Peguei uma caneca de café para assistir o vídeo, pois achei que seria chato e demorado. Já estava me preparando para tirar prints e mandar para os meus amigos.

O primeiro fato estranho sobre mim é que eu tenho uma mania estranha de apelidar as pessoas inconscientemente. Sério, é um dom para arrumar os piores apelidos. Não é por maldade, é automático. É que eu faço associações na minha cabeça muito facilmente. Por exemplo, uma vez minha amiga dormiu aqui em casa e esqueceu de tirar a maquiagem, e até hoje eu a chamo de Panda. É um apelido carinhoso. E teve um cara que eu gostei há um tempo, e não leve a sério o que digo, mas eu o chamava de DiCaprio moreno. Minhas amigas dizem que nem a unha do dedinho do pé esquerdo dele deve se parecer com a do Leo, mas eu os achei parecidos. O que eu posso fazer?

Olhei no espelho e fiquei pensando se era eu. Os outros caras do colégio que eu sabia que tinham ficado com a Elisa pareciam menos com o Leonardo DiCaprio que eu. Talvez fosse o cabelo liso ou os olhos claros. Gargalhei sozinho. Elisa era uma comédia.

O segundo fato estranho sobre mim é que eu sou a melhor pior cozinheira que você poderia conhecer na sua vida. Eu já inventei pratos nunca imaginados na história da culinária. Certo, isso pode ser um exagero, mas é fato que eu consigo misturar coisas que não tem nada a ver e fazer uma coisa comestível. Por exemplo, pizza de fígado. Eu sei, fígado é uma coisa polêmica, como azeitonas, mas eu garanto que pizza de fígado funciona. E é uma de-lí-cia. Molho de goiabada no cheeseburguer é outra criação minha. Essa combinação é menos unânime que pizza de fígado, mas fica bom. É sério, acreditem em mim. Testem em casa e me falem. Vocês têm que experimentar antes de me julgar, certo? Na verdade, não me julguem, julgar é errado — ela dá uma risada solta. — O terceiro fato estranho sobre mim é que eu tenho pavor a galinhas. Tudo isso porque minha avó comprou um pintinho na feira, o nome dele era Sherikan. No começo era legal, eu até dava formigas no bico dele, mas Sherikan cresceu e virou um demônio de asas. Acho que mimamos ele demais. Ele virou um galo tenebroso que corria atrás de pés inocentes para bicar. Acho que é por ele que hoje eu passo longe de galinheiros.

Levei minha mão à testa. Ainda estava meio chocado que era Elisa falando aquelas coisas tão aleatórias. Só que eu não podia negar que ela me fazia rir.

Eu vou me arrepender de dizer isso, mas quando eu fico nervosa eu falo como um robô. É sério. E não é gaguejar. É... O-i? Me-u no-me é E-li-sa. Parece um robô mesmo. Nem perguntem o porquê disso, eu não sei. Deve ser hereditário. E isso vai me denunciar toda vez que eu ficar nervosa nas próximas décadas.

Gargalhei mais uma vez, pois me lembrei de que ela falava assim comigo no começo, quando eu ainda não a conhecia direito. Era algo como: Da-ni. É... Humm... Tu-do bem?

Antes do próximo fato, por favor, se inscrevam no canal, isso me ajuda bastante — apertei no botão para me inscrever. — Eu não sei se isso é um fato estranho sobre mim, mas quando eu era criança, quando alguém me perguntava o que eu queria ser quando eu crescesse, eu dizia que queria ser a Hebe Camargo. Para mim, ela é um exemplo de apresentadora e, sobretudo, de mulher. Só que não é comum uma criança de cinco anos sonhar em ser a Hebe Camargo, ou é? Enfim... Acho que devia ter algo haver com os colares extravagantes e o cabelo loiro. Eu ficava no espelho por horas imitando-a e chamava todo mundo de gracinha. Ainda bem que eu não quis dar selinho em ninguém.

Fiquei pensando quem em sã consciência pensaria numa coisa daquelas. Acho que só havia uma pessoa assim no mundo.

— E foi isso. Esses foram cinco das muitas coisas estranhas sobre mim. Mas quer saber? Todo mundo é um pouco estranho, e talvez esse seja nosso melhor ângulo. Nos vemos na próxima conexão espaço-terra, terráqueos. Adoro vocês! Câmbio, desligando.

Meu café havia acabado, mas acabei passando a noite fazendo maratona de todos os vídeos do canal ElisaBit. Descobri que era verdade a história de videogames e que Elisa tinha chegado a ganhar alguns campeonatos. Descobri que ela tinha uma paixão esquisita por inventar receitas malucas e algumas pessoas ainda tentavam imitá-la. Descobri que muitas garotas a tinham como modelo e muitos caras estavam tão apaixonados por ela a ponto de deixar dez comentários por vídeo pedindo por uma chance.

Terráqueos, eu não queria estar fazendo esse vídeo, mas ontem uma mulher foi morta na porta de um clube noturno na minha cidade — ela também fazia vídeos mais sérios. — É mais um caso de mulher vítima de abuso pelo parceiro, mas as autoridades lavarão as mãos. A Marta era maravilhosa, um exemplo de força, beleza e coragem. Infelizmente, os pais dela precisa de ajuda para pagar um advogado. Abrimos uma vaquinha para ajudá-la, mas, por favor, se você for advogado e puder ajudar, entre em contato comigo. É importante sair do espaço e colocar os pés no chão pelas causas em que acreditamos. Morando do outro lado do universo ou não. Câmbio, desligando.

Sabe quando você olha para uma pessoa e fica fascinado por ela estar fazendo exatamente o que gosta? Foi assim que eu fiquei. E eu não estava esperando isso. Não posso acreditar como não reparei que Elisa era essa fonte de luz própria.

Dormi muito tarde nesse dia, sem perceber o tempo passar. Vi que dormiria apenas três horas quando liguei o despertador, mas eu não estava nem arrependido dessa vez.

***

— Elisa? — interrompi a conversa dela com as amigas.

Percebi que Tainá trazia com uma expressão de desprezo. Beatriz só conseguiu erguer as sobrancelhas.

— Um minuto, Gabriel. Já falo contigo — ela respondeu sem nem se voltar para mim.

Tainá e Beatriz nem conseguiram esconder o risinho. No fundo eu já imaginava que ela tinha ficado chateada pelo jeito como eu sumi, mas fingir que havia se esquecido da minha voz ou do meu nome não funcionaria comigo.

— É... É o Daniel. É sério, Elisa. Precisamos terminar a biografia — apelei.

Então ela finalmente se virou para mim, apertou as pálpebras e continuou com aquela expressão de desanimação.

— Ah. Desculpa, Daniel, eu já havia me esquecido disso. Eu já terminei a minha parte. Você precisa de ajuda com alguma coisa?

— Ainda não tenho quase nada. Preciso de ajuda — deu para ver que ninguém acreditou na minha preocupação acadêmica. Elisa ficou pensativa por uns três segundos, com impaciência explícita em seu rosto.

— Certo. Depois eu falo contigo — ela avisou e voltou a me ignorar.

Quando Elisa continuou a conversa com as amigas, elas ainda não conseguiam esconder as risadas. Pude ouvir um “até que enfim” enquanto caminhava para longe, só que não sou de desistir tão fácil.

Ao fim da aula de química, Elisa veio na minha direção. Sabia que ela não demoraria a vir. Ela podia ser a ElisaBit, mas eu ainda era o Daniel Borges.

— Daniel, meus pais estarão em casa na sexta, depois da aula. Estou meio ocupada esses dias, mas eles podem te ajudar.

— Certo, combinado.

Foi desanimador. Pelo jeito eu já não era capaz de deixá-la com a voz robótica de novo. Nem acreditei que eu tinha me humilhado só para conversar com os pais dela. Imaginei o vexame que seria isso, mas concluí que, olhando pelo lado positivo, talvez eu tivesse mais uma chance com ela se eu os conquistasse.

***

— Boa tarde, senhor? — eu estava mais nervoso que antes de entrar em campo.

— Boa tarde, Borges! Elisa avisou que você viria. Ela está trabalhando agora, mas pode ficar à vontade. Meu nome é Tales. Entra aí — ele me empurrou de leve para dentro de casa enquanto me cumprimentava.

O pai de Elisa me tratou como se fôssemos velhos amigos. Fiquei surpreso como ele me deixou tão à vontade. Tales parecia extremamente jovem, estava suado e vestia roupa de corrida. Calculei que ele deve ter sido pai na adolescência.

— Antes de tudo, queria te falar que o time está muito bom nessa temporada, cara. Você e o Brian estão se superando — fiquei ainda mais aliviado quando descobri que acompanhava meu time.

— Ah... Obrigado. É trabalho em equipe. É um prazer es...

Quando eu estava terminando de me apresentar e agradecer pela hospitalidade, outro homem apareceu. Parecia ocupado e segurava uma pilha de documentos. Esse era um tanto mais formal que Tales e parecia ter a idade dos meus pais.

— Olá. Meu nome é Ailton — ele me cumprimentou com um forte aperto de mão. — Sou o pai da Elisa. Fique à vontade. Tem lanche na cozinha, se tiver com fome.

Foi aí que percebi que quando Elisa falou “meus pais”, ela literalmente quis dizer dois pais. Ailton era uns quinze anos mais velho que o Tales e bem menos atlético. Elisa tinha o pai descolado e o pai coruja, dois pais a mais que eu. O estranho é que ela parecia com os dois.

— Boa tarde, Sr. Ailton. É um prazer conhecê-los.

Ailton estava apressado, então logo saiu da sala em direção a outro cômodo. Os olhos dele era parecidíssimos com o de Elisa, mas não tive tempo para procurar outras semelhanças. Tales, por sua vez, tinha a cor da pele, o sorriso e o jeito de falar da Elisa.

— Muito legal conhecê-los. Vocês são casados a quanto tempo? — perguntei.

Tales deu uma gargalhada e olhou para mim como se eu fosse muito inocente.

— Você realmente precisa de ajuda com essa biografia. Eu sou irmão da mãe da Elisa.

— Ela foi barriga de aluguel? — questionei, enquanto assimilava a história. Eu tinha certeza que Tales e Ailton era um casal.

— Sim, ela foi nossa barriga de aluguel — após escutar toda a conversa do outro cômodo, Ailton voltou de repente e deu um beijo na testa de Tales, que limpou o sobejo com a mão e jogou uma almofada em Ailton.

— Sai daí, panaca. Estou bem com a minha namorada — Tales reclamou.

Nem sei como foi minha reação. Obviamente, ambos ficaram rindo da minha expressão, perdido no meio daquela confusão.

— Minha irmã faleceu ao dar à luz, Daniel. Eu moro aqui com meu cunhado desde então para ajudar o Ailton e, de sobra, não pagar aluguel. É por isso que Elisa tem dois pais. Ailton não tem o que é preciso para me conquistar — Tales explicou, tentando manter a conversa descontraída.

— Ah... Sinto mu... — quis me desculpar, mas nenhum dos dois se importou muito com a situação.

— Nossa família é diferente mesmo. Elisa está lá em cima no estúdio. Pode ir conhecer o lugar depois, se quiser. Tales está com algumas fotos e lembranças que guardamos. Deve servir para o seu trabalho — Ailton nem me deixou terminar.

— Está ótimo, senhor. Obrigado.

Tales ficou me ajudando a escolher algumas fotos. Elisa era uma dessas meninas que gostavam de passar a tarde brincando na rua, tinha muitos amigos e jogava videogames desde pequena. Ela tinha alguns vídeos gravando algo parecido com vlogs aos sete anos de idade. Era uma criança hilária e adorável.

— Ela já tinha talento para o YouTube, senhor — admirei.

— Elisa sempre foi minha maluquinha. E pode me chamar de Tales, cara.

— Ela se parece mais com você que o com o Ailton.

— Já sei disso. Melhor para ela. Só não conte para ele.

Ele era muito engraçado. Contou que acabou morando lá sem planejamento e que tinha dezoito anos quando ela começou a chamá-lo de pai. Claro que isso assustou algumas namoradas, mas a ligação que tinha com Elisa era mais forte que tudo. Devia ser com ele que Elisa havia aprendido o tanto que sabia sobre futebol.

— Acho que tem uma foto da Elisa na minha carteira — avisou.

Achei que estava falando de uma foto da Elisa que estudava comigo, mas não. A Elisa de quem Tales estava falando era a Elisa França. Escolheram dar o mesmo nome da mãe à criança. Elisa França era tão linda quanto a Elisa que eu conhecia, só que de um jeito diferente. Enquanto a Elisa que conheci era descolada e geniosa, a mãe dela trazia um olhar tímido e doce.

— Desculpa por perguntar, mas não foi difícil lembrar da sua irmã enquanto você a chamava de Elisa?

— Não tem remédio para essas coisas, só tempo. Foi uma homenagem que Ailton quis fazer. Além do mais, elas sempre foram muito parecidas. É um lembrete de que parte da minha irmã continua aqui comigo.

— Na Elisa que eu conheço... — completei-o.

Ele concordou comigo e sorriu com os lábios fechados. Tirei uma foto da mãe de Elisa com o celular.

— Acho que acabamos por aqui. Você já tem todo material que Ailton separou. Pode ir conhecer o estúdio se quiser, basta subir a escada. Fica no final do corredor à esquerda.

Ele apontou para a direção da escada e se retirou para tomar um banho. Segui as instruções e acabei numa sala enorme cheia de câmeras, luzes e videogames. O lugar era incrível. Elisa estava gravando, usando uma das paredes coloridas como plano de fundo.

— Iremos sortear um jogo para vocês na sexta-feira. Para participar, é só deixar um comentário aqui em baixo. E... — ela interrompeu a gravação abruptamente quando percebeu que eu estava ali.

— Desculpa. Eu não queria interromper — fiquei atrapalhado.

— Daniel? Quem te... Bem... Es-te é o es-tú-dio que eu uso para... — fazia tempo que Elisa não falava como um robô.

— Seus pais falaram para eu vir aqui. Agora sei tudo sobre você, ElisaBit — fiz questão de frisar o nome artístico.

— Qual dos meus pais se gabou por mim? — ela perguntou, revirando dos olhos.

— Nenhum. Na verdade, eu descobri um dia desses pelo Silva, lá no treino. Seus vídeos são maneiros. Sinto muito se atrapalhei a gravação.

— Tudo bem. Eu já tinha acabado. Agora é hora de editar.

Elisa correu para frente do computador enquanto eu caminhava pelo estúdio. As paredes coloridas tinham fotos com pessoas conhecidas, a placa de 100 mil inscritos e algumas artes aleatórias.

— Esse é o Castanhari? — observei que Elisa tinha várias fotos com pessoas famosas.

— Sim, é ele mesmo. Muito simpático, por sinal.

— Por que você não me contou antes sobre isso? Por que as pessoas no colégio não sabem mais sobre isso? — nunca imaginei que Elisa tinha amigos celebridades.

— Algumas pessoas sabem. A Beatriz, a Tainá... — ela explicou, enquanto nem olhava para mim, vidrada no computador.

— Você entendeu o que eu quis dizer... — interrompi.

— Faço os vídeos porque eu gosto, mas no início não imaginei que tudo tomaria essa proporção. Foi acontecendo naturalmente e eu não tenho cara de chegar no colégio fazendo minha própria propaganda.

— Deveria. Seus vídeos são hilários — elogiei.

— Tá. Valeu. É que eu também não quero que as pessoas se aproximem de mim por causa disso, sabe? É legal saber que as pessoas gostam de mim por quem eu sou, não pelo meu número de inscritos ou de conhecidos populares.

— Entendi.

Tirei uma selfie na frente da tela verde que ficava numa das paredes e fui em direção à mesa do computador. Coloquei a mão no ombro de Elisa e percebi que ela ergueu as sobrancelhas por um segundo, estranhando a situação, mas continuei lá.

— Eu gostei de você por quem você é — lembrei.

Elisa interrompeu um pouco a edição, deu uma risadinha de três segundos com os olhos fechados e foi direta comigo pela primeira vez em muito tempo.

— Olha, Daniel. Tudo bem você vir ao estúdio e fazer perguntas, mas nós dois sabemos que isso aí é balela — ela manteve um sorriso de leve no rosto.

— Hã? — não entendi onde ela queria chegar.

— O que a gente teve foi legal por um tempo, mas acabou, certo? Você foi o primeiro que se afastou, então já vou logo avisando que essas cantadas baratas não vão funcionar — ela piscou para mim.

Fiquei meio sem reação, mas não tirei o sorriso do rosto para ela não perceber que eu tinha ficado meio irritado. Foi aí que Elisa se levantou e estendeu a mão.

— Amigos? — ela perguntou.

— Amigos — respondi, meio perdido, ao apertar a mão dela. As pessoas naquela família sabiam me deixar confuso.

— Sem ressentimentos — ela continuou a mexer no computador.

Não sei o porquê, mas depois desta situação constrangedora as coisas entre nós ficaram mais simples. Parece que ela estava querendo dizer aquilo há muito tempo. Talvez eu devesse ter esperado um pouco mais antes de ter dado qualquer sinal, mesmo que mínimo, de interesse. Quando a tensão diminuiu, conversamos sobre futebol e decidimos descer para assistir um jogo que ia passar naquela tarde. Tales já estava em frente à televisão.

— Pedi pizza. Quer jantar conosco, Borges? — ele convidou.

— Quero sim. Valeu, Tales — agradeci. Era melhor que voltar para casa e ouvir meu pai gritando.

— Sobrou fígado de ontem, pai? — Elisa perguntou.

— Já esquentei — Ailton gritou da cozinha.

— Tudo preparado, então — Tales falou.

Acho que meus olhos arregalados deixaram claro que eu ainda não estava preparado para experimentar pizza de fígado. E olhe que eu não tenho nada contra fígado bovino.

— Calma, garoto. Juro que é melhor do que você imagina — Tales interviu. — E você não vai fazer essa desfeita, vai?

— Claro que não, Tales — respondi, claramente morrendo medo.

— Ele está brincando. O fígado não é obrigatório — Elisa interviu, já rindo de mim.

O jogo começou e a pizza ainda não tinha chegado, mas fiquei ali esperando. Eu estava cansado da semana, mas assistir ao jogo com eles me desestressou. Acho que pela primeira vez vi como é assistir um jogo em família.

— Nossa, olha as pernas do Dado. É por isso que ele está jogando tão melhor agora — ela comentou. Acho que estava querendo me provocar.

Tales olhou para mim e revirou os olhos. Dado era um jogador bem mediano que continuava jogando como sempre.

— Será que criamos uma maria chuteira? — Ailton disse para Tales, enquanto trazia baldes de pipoca improvisados para diminuir a fome.

— Pai! Não mesmo! — ela quase gritou.

Nessa hora eu quase tive um ataque de risos só de ver o desespero no rosto dela.

Por ironia, a pizza chegou uns dois minutos depois da pipoca. Elisa foi atender, colocou uma fatia num prato e trouxe um pedaço sem fígado para mim. Enquanto eu devorava a fatia, Tales e Ailton foram com ela até a cozinha. Ouvi eles cochichando e fiquei curioso, então caminhei até lá e fiquei um pouco na porta para que eles não me vissem.

— Sério, pai, que vergonha! — ela reclamou.

— Foi só uma brincadeira, Lili. Não sabia que você ia ficar tão ofendida — Ailton tentava ser sério, mas não conseguia, o que a deixava mais irritada.

— Além do mais, eu aprovo o garoto — Tales falou.

— Não exagera, Tales — foi quando Ailton não viu mais graça.

— Quem tem que aprovar sou eu e adivinha? Não! — ela contestou, inquieta.

Notei que Elisa estava saindo da cozinha nessa hora e tive que caminhar até lá para que não me vissem no corredor. Quando me viram, rapidamente mudaram o assunto e passaram a falar do fígado.

— Precisa de alguma coisa, Daniel? — ela perguntou.

— Sei que posso me arrepender, mas fiquei curioso. Vou experimentar essa pizza de fígado que vocês tanto falam.

— Aê! — Tales comemorou. — Sabia que eu estava certo em ir com a sua cara.

Quando você pensa na mistura de pizza de queijo com fígado de boi, não parece uma coisa muito boa, mas não acho que soa tão ruim. Quando eu experimentei, o gosto era pior do que eu poderia imaginar. Era o preço de ter bisbilhotado a conversa alheia. Infelizmente, como eu não queria desapontar ninguém, comi a fatia até o final e cada mastigada parecia eterna. Recusei uma terceira fatia com a desculpa de que já estava satisfeito.

Apesar da experiência terrível da pizza, foi uma noite divertida e há meses eu não me sentia tão despreocupado. Ali eu não pensei nas expectativas da minha família, era só sobre aquele momento. Também era sobre Elisa. Sim, eu já a achava interessante antes, mas do canto do sofá, sem que nenhum dos pais me flagrasse, eu fiquei observando aqueles cabelos compridos ficarem bagunçados com qualquer sinal de gol.

— Obrigada pela pizza e pela ajuda no trabalho, pessoal. Vocês são demais — agradeci.

— Se quiser voltar algum dia para assistir outro jogo, pode vir. Você já é de casa, moleque — Tales convidou, gritando à distância, enquanto eu e Elisa nos afastávamos.

Ao escutar isso, Elisa levou a mão à testa e senti que ela estava mais preocupada com aquilo do que uma pessoa sem interesse em mim estaria.

— Tchau, Daniel — ela se despediu.

— Câmbio, da Terra — brinquei.

Como resposta, Elisa sorriu, fez sinal de continência e fechou a porta. Pensei em dar um abraço nela, mas concluí que era melhor dar um pouco mais de espaço. Eu deveria agir com calma se quisesse reconquistar a confiança dela.

Quando cheguei em casa, por sorte, todos estavam dormindo. Tomei um banho e pulei na cama. Quase dormindo, senti meu celular vibrar.

Laysa (01:29) – Oi, Dan. Estou livre amanhã o dia inteiro. Sugiro que passe aqui em casa

Laysa (01:30) – P.S. Meus pais viajaram ontem e só voltam na terça.

Pelo menos eu tinha um plano b.