Faltava pouco para as aulas acabarem. Algumas pessoas já davam os primeiros sinais de saudosismo, mas eu estava animadíssima para não ter mais que acordar diariamente às seis da manhã. Claro que eu sentiria saudades de algumas pessoas, mas nada que não pudesse ser resolvido com uma saída eventual.

Como eu estava contente, aquilo se refletia nos meus desenhos. Tive que montar um estojo novo com lápis aquareláveis porque estava sentindo uma necessidade de colocar um pouco mais de cor no papel. E como eu estava focada nos desenhos, acabei passando a maior parte dos intervalos em silêncio.

— Já ouviu aquela teoria de que somos a média das cinco pessoas com quem mais convivemos? — Maia perguntou, provavelmente para quebrar o silêncio.

— Acho que sim — respondi, meio distraída, enquanto desenhava.

— Estou começando a acreditar nisso — ela divagou.

Olhei para Maia e ergui uma sobrancelha.

— Isso quer dizer que eu sou meus pais, meu irmão, você e, agora, a Tainá. Não, não acho que eu seja assim.

— Talvez você seja — ela provocou.

— Não viaja. Você só está dizendo isso porque o Thiago está passando a popularidade dele para você. Eu vi os garotos do primeiro ano virem conversar ontem.

— Até parece. Não é por isso que eu estou falando isso, mas ele é legal mesmo. Descobrimos que nós dois somos viciados em animes, coisa que eu nunca imaginei. Então sempre temos assunto novo. E os meninos estavam marcando de nos encontrar na Comic Con — ela explicou.

— Falei para você que as pessoas te amariam se te conhecessem melhor. E... A Rafaela ainda te odeia?

— Não. Todo mundo sabe que ele nunca ficaria com alguém como eu, um dia ela teria que acordar. Garotos como ele só pensam bundas grandes. E ainda assim... Acho que o Thiago não vai demorar muito para terminar esse namoro. Sério, é muito ciúmes e sem motivo nenhum.

— Que saco. Relacionamento sem confiança é péssimo. Meu ex era desse jeito, ficava me sufocando. Pelo menos o sexo era bom — ponderei. — Mas não vale a pena.

— Achei que você tivesse se tornado santa — ela debochou.

— Maia, minha querida amiga, Tainá é uma boa pessoa, mas ela não é tão convincente assim — disse isso e sorri maliciosamente.

Sem pensar muito nos meus traços, eu estava desenhando alguma coisa que parecia impressionista, mas eu não sabia bem o que era. Pareciam meninas dançando numa espécie de rave, com silhuetas ao redor e algumas luzes coloridas, de um jeito meio psicodélico. Maia tentou ficar me assistindo enquanto eu desenhava, mas eu a empurrei para longe.

— Você é muito chata — ela reclamou.

Pisquei para ela e continuei a desenhar. Depois de um tempo, Maia ficou entediada e foi conversar com outras pessoas. Antigamente ela colocaria seus fones de ouvido e ficaria ali do meu lado. É óbvio que eu gostava de vê-la mais animada, mas eu sentia falta da companhia.

***

Algumas coisas simplesmente acontecem e a gente nem se dá conta. No meio dos meus desenhos e da amizade de Maia com os meninos do primeiro ano, acabei passando mais intervalos sozinha. De vez em quando, Flávio vinha conversar, mas geralmente era só para fazer graça ou contar alguma fofoca nova.

— Você já viu o canal da Elisa? — Flávio perguntou.

Arregalei os olhos e franzi a testa.

— Isso mesmo que você ouviu. E tem mais de seiscentos mil inscritos — ele continuou. — Pode ver, o nome do canal é ElisaBits.

— Caraca. Eu nem sabia que a Elisa tinha rede social — falei, enquanto pesquisava o canal dela no YouTube. Fiquei chocada que era verdade.

— Pois é, ninguém acreditou quando viu. Agora o Daniel só fala nisso. Ele não vai desistir até ela comer na mão dele.

Revirei os olhos. Até pouco tempo antes tinha visto ele se pegando com uma menina do primeiro ano por trás do ginásio. É com muita vergonha que admito que já fiquei com Daniel algumas vezes, então posso dizer por experiência própria que ele era um idiota.

— Quer apostar que ele consegue? — Flávio sugeriu.

— Quer saber? Sou time Elisa — respondi.

— Cinquenta reais?

— Fechado.

Aquilo me fez ter uma ideia. Vi num programa de televisão que o gato maracajá era uma espécie de leopardo considerada um dos animais mais traiçoeiros do mundo. Peguei meu lápis grafite e comecei a traçar os primórdios daquele animal.

***

Mais um intervalo em que eu não dava a mínima em passar a maior parte do tempo sozinha com meus lápis. Não entendo como algumas pessoas têm medo de ficar só. Para mim, o silêncio é uma das coisas mais inspiradoras do mundo. O problema é que pessoas também estão nessa mesma categoria e elas dificilmente permanecem em silêncio por muito tempo.

Estava a fim de fazer uma coisa mais geométrica nesse dia. Achei que estava desenhando uma pessoa, mas no final acho que desenhei um anjo. Pintei com vários tons de azul.

— Que coisa linda — alguém chegou de repente.

Olhei para trás, era a Tainá. Como eu não estava a fim de discutir sobre o anjo Gabriel, só continuei pintando.

— Eu reparei de longe que você desenhou uma onça no outro dia. Estava lindo demais.

Fiquei sem jeito. Nunca fico à vontade quando as pessoas me elogiam.

— Era um leopardo — corrigi.

Achei que ela cansaria de ficar ali do meu lado e voltaria para as amigas em cinco minutos, mas não, ela insistiu em fica me vendo desenhar. Fiquei visivelmente incomodada. Depois de alguns minutos, Tainá começou a olhar para o meu braço.

— Suas tatuagens têm algum significado? — ela perguntou.

— Você sabia que nem todas as tatuagens precisam ter significado? — fui ríspida para que ela fosse embora logo e quase puxei meu braço para longe dela.

— Eu sei, mas as suas têm significado? — aquele jeito de continuar com a mesma expressão alegre e ignorar minhas reações me irritavam profundamente.

Respirei fundo, sem paciência.

— Algumas têm.

— Dá para ver que esses desenhos são a sua cara — ela comentou. — Seu traço é muito bonito.

Fiquei meio pasma que Tainá já podia reconhecer um desenho meu. Ninguém além da minha família sabia que eu tinha desenhado as minhas tatuagens.

— E olha... Eu emoldurei o canguru. Todo mundo ficou apaixonado por ele.

Sorri para ela. Apesar de eu achar Tainá um tanto irritante, era aquilo que eu aspirava como artista: fazer as pessoas sentirem algo.

— Conta uma história de alguns desses desenhos. Por favor...

Olhei para ela como quem diz “sério mesmo?”.

— Por favor, Ceci... — ela implorou.

Pensei bem. Por um lado, eu não gostava de falar sobre mim, mas por outro lado poucas pessoas tinham mostrado tanto interesse no que eu desenhava. E não era o tipo de curiosidade simplista, de quem só quer ver o que estou desenhando, era curiosidade pelo que me movia ao desenhar. Então comecei a folhear o caderno.

— Essas meninas dançando sobre as luzes de um prisma somos nós? — ela perguntou, quando viu o desenho psicodélico.

— Talvez — eu não tinha resposta.

Engraçado que para ela eram as luzes de um prisma e para mim eram as luzes de uma rave. Talvez fosse a mesma coisa sobre diferentes ópticas. Decidi que dali em diante o desenho se chamaria “Prismas”.

— Por exemplo, esse anjo foi aparecendo sem eu planejar, mas algumas vezes eu penso antes. Gosto de associar desenhos a pessoas, especialmente animais — expliquei.

— Sou um canguru? — Tainá se animou.

Fiz que sim com a cabeça. Associei o jeito maternal dela aos animais marsupiais. Tainá era o tipo de pessoa que gostaria de manter seus amigos num bolso para proteger, e cangurus também são animais muito fortes que lutam pelo seu espaço. O rabo do canguru é uma espécie de terceira perna usada para manter o equilíbrio. A religião era a cauda dela.

— E o leopardo? — ela questionou.

No início, fiquei meio sem jeito em falar sobre o tema do desenho, pois Elisa era amiga dela, mas depois tive a ideia de usar aquilo ao meu favor.

— Hum... É uma longa história...

— Que você vai me contar... — ela terminou minha frase.

Dei uma risada cínica de leve. Se eu contasse para ela sobre o desenho, Tainá contaria para Elisa e as chances de eu ganhar a aposta com Flávio aumentariam.

— É que representa o Daniel de uma maneira não muito positiva. Sei que você é amiga da Elisa, então não sei se é certo — fingi inocência.

— Fique tranquila. Elisa não está mais interessada nele e eu também não sou muito fã desse garoto.

Vibrei por dentro e já comecei a pensar em como eu poderia gastar meus cinquenta reais. Seria uma das apostas mais fáceis de se ganhar.

— A inspiração veio de um programa de televisão que assisti sobre os gatos maracajá. Fiquei sabendo que são animais extremamente traiçoeiros. São lindos, com esses olhos gigantes, mas são animais noturnos e solitários que têm garras de jaguatirica. Ele consegue imitar o som das presas para atraí-las até uma emboscada.

Nesse ponto da conversa, Tainá trazia uma expressão desconfortável e meio triste pelo que tinha acabado de ouvir.

— Você entendeu, não foi? — perguntei.

— Claro que sim. Eu e Bia avisamos que ele não valia a pena, mas Elisa quis insistir. Só que ela já aprendeu a lição. Agora ele voltou a se aproximar depois que as pessoas do colégio descobriram que ela faz sucesso na internet. É patético — Tainá gostava dele menos do que eu esperava.

Já sentia os cinquenta reais no meu bolso. Coloquei a mão do ombro dela para mostrar meu apoio a tudo que ela tinha dito.

— Acertou na mosca — ela prosseguiu. — Sei que você não leva muito o que digo em consideração, mas seus desenhos precisam ser publicados.

— Precisam ser aprimorados — corrigi.

Ela moveu a cabeça negativamente, discordando da minha correção. Éramos ótimas em discordar.

***

Uns dias depois começaram chuvas tenebrosas na cidade e tudo estava um caos. Como de costume, aproveitei os dias chuvosos para pintar. Quando eu estava pendurando alguns desenhos novos na parede, recebi uma mensagem.

Tainá (11:23) – Cecília, soube do desabamento nas encostas? O barro destruiu algumas casas e muitas pessoas morreram. Estamos fazendo um mutirão na igreja para arrecadar alimentos e prestar serviços básicos. Apareça por lá, se puder. Precisamos de ajuda.

Olhei na internet a tragédia que foi. Crianças ficaram sem pais e pais perderam seus filhos. Muitas casas foram destruídas. Dezenas de pessoas estavam morando em abrigos nas igrejas. Mostrei a mensagem para o meu irmão.

— Estou livre hoje. Podemos ir — Caetano falou.

Típico do meu irmão. Ele era chato, mas também me orgulhava demais.

Nem me preocupei em usar roupas góticas dessa vez, coloquei a primeira coisa que achei no guarda-roupa. Chegamos ao mutirão poucas horas depois. Haviam crianças chorando por todos os lugares. A chuva não parava de cair. Caetano foi prestar orientações jurídicas para algumas famílias, que não sabiam nem os direitos que tinham naquela hora.

— Obrigada por ter vindo — Tainá agradeceu, quando eu finalmente a encontrei. Ela parecia muito ocupada em meio àquela bagunça.

— Não sei como posso ajudar. Meu irmão já arrumou o que fazer, mas estou aqui para o que precisarem.

Ao escutar isso, Tainá pensou um pouco e fomos encontrar aquele pastor insuportável cujo culto fui obrigada a assistir no outro dia. O homem me encaminhou para uma sala em que outros voluntários estavam dividindo as doações em caixas. No caminho, vi Beatriz de longe e dei um tchau tímido para ela. Foi um dia puxado. Passei umas cinco horas seguidas montando cestas básicas. Não reencontrei Tainá e Caetano por muito tempo, mas estava tão ocupada que nem deu tempo de procura-los. Ouvi pessoas orando por todos os lados. Alguns até cantavam hinos gospel, mas era a hora errada para ironizá-los. Acalmaram algumas pessoas, isso é fato.

Ao final do dia, os voluntários foram chamados para jantar no refeitório. Distribuíram sopa e cachorro-quente para todos. Estava frio e as chuvas pareciam ter piorado. Todos estavam apreensivos.

— Valeu o esforço — meu irmão comentou, enquanto eu estava perdida olhando para todas as direções.

— Verdade, mas temos que ir. Já está tarde — lembrei.

— Espere por mim aqui. Vou ao banheiro e já volto para irmos embora.

Vi Tainá com os pais no outro lado do salão. Resolvi ir até lá me despedir antes de ir embora. Quando eu me aproximei, ela já veio na minha direção.

— Obrigada por ter vindo, Cecília. Você não sabe o quanto essa ajuda é importante para essas famílias — Tainá disse.

Notei que os pais dela comentavam algo enquanto nos olhavam. Logo imaginei que deveriam estar me observando como um quadro numa exposição.

— Foi ótimo, mas preciso ir. Espero ter ajudado.

Ela concordou, me abraçou e voltou a conversar com seus pais. Quase fui conversar com eles, mas Caetano me mandou uma mensagem.

Caetano (19:12) – Tentei te achar, mas não te encontrei. Por que você não me esperou onde falei? Estou te esperando no carro.

Tainá (19:13) – Foi mal. Fui me despedir da Tainá. Já estou indo.

Caetano (19:14) – Certo. Estou esperando.

Enquanto eu digitava no celular, algumas pessoas ocuparam o espaço entre os pais de Tainá e eu, então eles não puderam me ver, mas eu podia escutá-los.

— Parece uma boa menina sem os quilos de maquiagem e as roupas esquisitas — a mãe dela comentou.

— Como sempre, você foi uma ótima a influência para os seus amigos, minha filha. Essa menina parece outra — o pai falou.

— Faço o melhor que posso — Tainá disse.

Revirei os olhos. “Santainá” atacava novamente tentando transformar as pessoas em algo que elas não são. Eu não podia esperar algo diferente de uma pessoa como ela, mas ela precisava acordar.

***

Não gostei do meu desenho naquele dia, então arranquei a folha do caderno e atirei no lixeiro, só que não acertei. De longe, vi que Tainá apanhou o papel amassado, abriu para conferir o que eu tinha desenhado, amassou novamente e jogou na lixeira.

— O que era?

— Nem tudo tem resposta certa — continuei desenhando.

Dessa vez, peguei no lápis com tanta força que a ponta quebrou.

— Puta que pariu! — quase gritei e a assustei um pouco.

Peguei meu estilete e comecei a refazer a ponta, mas eu estava com tanto ranço da Tainá que nem aquilo eu estava conseguindo fazer direito.

— O mutirão foi ótimo. Arrecadamos alimentos para três meses. Algumas famílias já estão sendo encaminhadas para receber o aluguel social. Foi muito proveitoso.

— É... Pena que algumas pessoas precisam de um motivo religioso, tipo medo de ir para o inferno, para ajudar seus semelhantes.

— Não é por causa disso. Quer dizer, foram as mãos de Deus, mas...

Não ouvi o resto. Coloquei meus fones de ouvido no maior volume para não escutar nada. Vi que ela tentou falar por algum tempo até cansar e sair frustrada. Flávio estava assistindo tudo à distância. Ele se aproximou e falou alguma coisa. Apontei para os fones de ouvido e os retirei para escutá-lo. Ele repetiu o que havia dito.

— Aí está a Cecília de sempre. Já estava com saudades dela.

Dei um sorriso sem graça e recoloquei os fones de ouvido. Engoli seco. Terminei de apontar o lápis, mas a espessura ainda não estava boa e eu não tinha saco para continuar apontando com o estilete. Continuei a desenhar, e agora era um céu relampejando sobre a sombra de vários prédios. Flávio disse outra coisa e eu tirei os fones por mais uns segundos para escutá-lo.

— É a cidade ultimamente — ele comentou e saiu.

Flávio era divertido, mas ele não sabia muito sobre os meus desenhos. Poucas pessoas sabiam.

***

— Tem lasanha!

Minha mãe abriu a porta do meu quarto e falou aquilo. Fiz que sim com a cabeça, sem animação, e voltei a mexer no celular. O problema é que a minha mãe tem um dom de saber quando alguma coisa está errada, então ela resolveu sentar-se na beirada da minha cama.

— Precisa de algo? — perguntei.

— Só queria saber porque está tão estressada hoje. E por que você não esbanjou nenhuma reação significativa quando eu avisei que tem lasanha? Você adora lasanha!

Dei de ombros e continuei mexendo no celular. Não podia deixar a psicologia dela me afetar.

— Cecília, não adianta dar de ombros. Você sabe que eu não fujo de debate tão facilmente — ela falou enquanto alisava meu ombro.

— É só idiotice da escola.

— Gosto de histórias mais detalhadas...

Tirei os olhos da tela do celular e respirei fundo. Eu sabia que minha mãe não mudaria de assunto até eu contar uma história satisfatória. E ela nunca ficava satisfeita com mentiras porque ela também tinha o dom de identificar mentiras.

— É que eu estou decepcionada com algumas pessoas que ficam querendo mudar as pessoas e enfiar religião goela abaixo.

— É aquela sua amiga nova, não é?

Fiz que sim com a cabeça. Minha mãe já tinha entendido tudo em segundos, agora eu seria bombardeada com perguntas as quais ela já sabia a resposta. Era típico e irritante.

— O que ela fez?

— Ela simplesmente disse aos pais que faz o melhor que pode para me influenciar positivamente. E por influenciar positivamente entenda me transformar em algo que eu não sou. Isso é pura falsidade. As pessoas deveriam gostar das pessoas pelo que elas são, não é? — desabafei. Eu estava muito irritada.

— Deveriam — minha mãe respondeu. — Num mundo ideal, as pessoas gostam das diferenças e convivem em harmonia. Mas vivemos no mundo real, Cecília. E isso vale para você também. Aposto que se dependesse da sua influência todas as pessoas teriam tatuagens, cultuariam a Amy Winehouse e falariam mais palavrões do que deveriam.

— Você está dando razão a ela? — fiquei indignada.

— Não falei isso.

— Certo. Você está querendo dizer que eu também não gosto de tudo nela, o que é verdade. Eu mudaria algumas coisas, sim. A diferença é que eu aceito ela sendo chata e fazendo trinta perguntas por minuto e não estou te dizendo que faço o que posso para mudar isso.

— Cecília... Olha pelo ponto de vista dela, querida. Você recebeu uma educação diferente da dela. Seu pai e eu demos toda a liberdade para você e seus irmãos conhecerem várias culturas e religiões. E nós te amaríamos se você tivesse feito escolhas exatamente iguais às delas.

— É justamente isso que estou falando...

— Mas o fato dela querer para você o mesmo que ela deseja para si mesma a faz uma pessoa ruim?

Fechei os olhos e dei um riso sem graça. As perguntas da minha mãe me tiravam do sério e sempre me faziam questionar meus conceitos. Pensei um pouco numa réplica.

— Mas mãe... Muitas coisas no mundo deram errado por causa disso, por causa de pessoas que acham que o melhor para elas é o melhor para todo o resto.

— Não tiro sua razão, mas isso só acontece quando as pessoas usam o medo como arma. O medo leva ao ódio e o ódio leva a violência e intolerância. Quando as pessoas se tratam com carinho e respeito, isso não acontece. Essa menina já levantou a voz com você?

Fiz que não com a cabeça e olhei para baixo.

— Então você terá que ter paciência e mostrar para ela que há espaço para tudo nesse mundo. E que pode continuar assim por muito tempo. Além do mais, pessoas mudam pessoas. É normal. Aposto que ela também não é mais a mesma depois de ter te conhecido melhor — ela piscou para mim.

— Paciência não é meu forte — brinquei.

Eu já me sentia mais leve. Minha mãe é incrível.

— Cecília, te conheço bem. Eu sei disso — ela riu. — Agora vamos comer essa lasanha porque estou com fome.

Levantei e fui atrás dela em direção à cozinha.

— Mãe. Isso não é coisa de um dos seus livros, é?

— Pessoas sem mistério. Capítulo 13.

— Poxa, mãe — caçoei.

— Estou brincando. E pode tirar aquele desenho de cocô da porta da geladeira, engraçadinha.

Dei uma gargalhada. "Algumas coisas não mudam e isso não é necessariamente ruim", pensei.