Pov. João

O resto da semana foi tranquilo, logo no outro dia comecei a trabalhar na Ruth Goulart. Era uma sensação de nostalgia arretada, andar pela aquela escola que me trazia tantas lembranças do passado. Quando eu fui até a casa de máquinas, não tive como não ficar emocionado ao pensar que quando eu morava ali, não fazia ideia de quantas aventuras pai d’égua eu ainda ia viver. O dia no trabalho fica mais divertido com o Lindomar e o jeito atroado dele, não tem um dia que a gente passe sem dar uma boa gargalhada. Já a convivência com a Dona Ruth ainda não é das melhores, nos cumprimentamos normalmente todos os dias, mas é difícil ver ela de bom humor. Parece que o tempo passou e a mulher ficou mais amargurada.

Bom, no final de semana, fui com a turma pra Padaria do Durval e foi muito massa, era bom ver todo mundo junto de novo, tava com uma saudade arretada desse povo. Na segunda-feira minha faculdade começava. Acordei com as galinhas, me arrumei rápido e fui. Quando cheguei lá, fiquei besta com o tamanho do lugar, parecia que não tinha fim, me perdi algumas vezes até encontrar a minha sala (com a ajuda de uns funcionários). Assim que entrei, parecia que eu estava em um sonho, era a sala mais cheia de instrumentos que eu já tinha visto na minha vida. De todos os tipos, clássicos, elétricos, acústicos, de sopro, de corda, de batucar. Rapaz, era uma coisa linda.

Mal cheguei na sala, não demorou muito tempo pro sonho virar pesadelo. Quando fui olhar pra os alunos na sala, tomei um susto ao ver que eu conhecia um deles. E tinha que ser justamente ele, o Bento. Num era possível que esse cabra tinha que tá em todo lugar que eu tô. Acho que ele percebeu que eu tinha olhado pra ele, porque ele olhou pra mim, então percebi que o pensamento dele não parecia ter sido muito diferente do meu. Nem tivemos tempo pra reclamar direito, logo o professor já tava na sala pra dar as instruções sobre o curso e etc. Tava tudo massa, exceto a presença do Bento que fazia questão de responder a todas as perguntas do professor. Como sempre, ele não perdia tempo na hora de se amostrar. Tentei responder ao máximo de perguntas também, pra mostrar que eu não sou brôco. Já vi que agora ia ter que me esforçar mais ainda pra ser o melhor da sala, porque aquele cabra não ia deixar barato.

Por sorte, a primeira aula não foi tão demorada, logo a gente tinha sido liberado. E o melhor era que pelo que eu percebi, nem todas as aulas eu ficava na sala do Bento, porque nossas grades eram diferentes. Ô coisa boa. As outras aulas passaram num instante, sem o geniozinho da música pra interromper toda hora com alguma observação inteligente, tudo fluiu mais rápido. Quando eu vi, já era a última aula. Bem na hora que o professor tava no meio de uma explicação, meu celular começou a tocar. O professor olhou pra mim com cara de bicho, eu pedi desculpa e fui atender fora da sala. Quando vi quem era já estremeci por dentro e atendi o mais rápido que pude.

— A que devo a honra da ligação da senhorita? – respondi, tentando parecer o menos nervoso possível.

— Joãaao! Me desculpa por ligar pra você no meio da aula, é que é muito urgente e eu não poderia deixar de te falar agora, porque você precisa vir pra cá e eu tô muito feliz, mas nervosa ao mesmo tempo, não tem como nã... – ela falou daquele jeito acelerado de sempre, sem nem parar pra respirar.

— Poliana! Respira, mulé! Oxe, fale de vez o que aconteceu! Que eu já tô ficando aperreado. – eu disse.

— A tia Luíza! A bolsa estourou, ela tá indo pro hospital e-e eu também. Eu tô quase chegando aqui, você pode vir? Por favor? – ela disse em tom de súplica. Como eu poderia dizer não a ela.

— Oxe, na hora! V-vou só falar com meu professor e ver aqui o que eu preciso fazer pra sair mais cedo. Te vejo aí. Ah! Me diz o nome e o endereço do hospital – eu falei já caminhando de um lado para o outro. Assim que ela me disse o nome, me despedi e corri pra sala pra falar com o professor e pegar minha mochila. Corri pra o ponto de ônibus o mais rápido possível, perguntei a um motorista qual ônibus eu pegava pra chegar naquele hospital e esperei, enquanto batia o pé sem parar e olhava para o relógio toda hora. Finalmente, o ônibus que o motorista falou, chegou. Entrei e esperei ansioso que o cobrador me avisasse o ponto que eu iria descer (como combinamos quando cheguei). Cheguei, entrei no hospital e logo procurei a moça da recepção pra saber onde a tia Luíza estava, mas nem precisei esperar pela resposta, logo ouvi uma voz bem conhecida chamar meu nome. Virei e vi que era a Poliana já correndo em minha direção, fiz o mesmo e a abracei.

— João! Que bom que você tá aqui! – ela disse, o que fez meu coração bater mais forte – Você chegou rápido, minha família acabou de chegar. O tio Marcelo tá com a tia Luíza, mas acho que daqui a pouco ele vem aqui.

— Eu peguei o primeiro ônibus que consegui! Mas como é que a tia Luíza tá? Tudo bem? – eu perguntei enquanto andávamos até perto das outras pessoas.

— Sim, graças a Deus! Estamos todos muito ansiosos, eu não me aguento de felicidade – ela disse com um sorrisão lindo de orelha a orelha e como sempre com aquela animação contagiante, não pude conter um sorriso. Falei com o Durval, a Raquel, a Lorena, o Gui, a Cláudia, o Gael, o Benício, a Yasmin, a Joana, o Sérgio, o Luigi, o Mario, enfim. Todo mundo tava lá, aguardando o novo integrante da família. Me sentei do lado da Poliana pra conversar. Mas percebi que apesar dela dizer que estava apenas feliz, ela me parecia um pouco aperreada.

— Que cara é essa? Tá preocupada com sua Tia? Tenho certeza que vai dar tudo certo e logo, logo o bebê vai tá aí, saudável todo. – eu disse, na tentativa de acalmar ela.

— Não, não. Eu não tô preocupada com isso – ela disse pensativa.

— Então, tá preocupada com o quê? – perguntei.

— É que... o bebê tá chegando. – ela disse e fez uma pausa pra suspirar. Eu mantinha uma cara de “e...”, ansioso pela resposta – E com o bebê, além de virem muitas felicidades, também virão algumas despesas a mais. A tia Luíza e o tio Marcelo, como eu já te disse, não estão na melhor situação financeira. Eu pensei que eu poderia de alguma forma ajudar, sabe? Porque, afinal, eles me criam como se eu fosse uma filha e eu sei que isso não custa barato. Sinto que preciso retribuir de alguma forma e agora, com a chegada do bebê, é impossível não se sentir no dever de ajudar nas despesas da casa.

— Bom, se é assim, eu concordo. Acho que se você fizer isso, eles vão ficar felizes. – eu disse.

— Não estou tão certa disso. Acho que o Tio Marcelo sim, já a Tia Luíza, difícil ela concordar com isso. Eu nem falei nada, porque eu sei que por mais necessitada que ela esteja, ela não vai aceitar que precisa de ajuda. Muito menos de mim. Aposto que ela diria que “uma menina de uma família como a minha” nunca deveria ter que trabalhar e iria se atormentar por isso. Se eu for arranjar esse emprego, eu não posso deixar que ela descubra. – ela disse, decidida.

— Oiaa, quem é tu e o que fez com a verdadeira Poliana? Nunca pensei que ia ouvir tu dizendo que iria mentir pra ninguém. Quem te viu, quem te vê. – falei, debochado.

— M-mas é por uma boa causa, né? – ela disse preocupada – Eu sei que você tá certo, eu não deveria mentir, mas dessa vez, eu acho que preciso fazer isso.

— Relaxe, mulé! Eu tô brincando contigo. Acho uma boa ideia sim, sabe que eu já gosto de uma aventura. Só fiquei surpreso com o quanto tu mudou. – eu sorri e ela retribuiu. – Mas, o que tu vai fazer?

— E-eu não sei ainda. – ela falou, dando uma risadinha envergonhada.

— O que tu gostaria de fazer se pudesse? – perguntei, tentando ajudar.

— Bom, eu não tenho nenhum talento especial. Algo que me destaque dos outros, sabe? – ela disse com plena convicção e eu ouvi, incrédulo.

— Arre-égua! Se tu num tem talento, eu também não – eu disse – Tu é a melhor atriz que eu já vi e ainda canta muito bem! Se isso não se chama talento, eu não sei o que é. – eu falei e ela riu.

— Ai, João! Eu nem sou tão boa assim, por mais que eu tenha pais super talentosos, eu não acho que desenvolvi tanto assim. – ela disse, enquanto colocava uma mecha do cabelo pra atrás da orelha. Percebi que o rosto dela ficou um pouco vermelho, o meu também.

— Num desenvolveu porque não quis – eu disse, curto e grosso. Mas depois tentei suavizar. – Se tu tivesse continuado praticando lá no outro colégio, não teria pra ninguém. Garanto que assim que tu voltar pro meio artístico, tu vai se encontrar. – ela sorriu.

— Talvez você esteja certo. Mas como esses “talentos” podem me ajudar a arranjar um emprego? – ela perguntou. O que me deixou pensativo por um momento.

— Já sei! Tive uma ideia massa! Como tu sabe, eu tô trabalhando na Ruth Goulart, na limpeza e... – ela arregalou os olhos, surpresa.

— Como assim?! Você não me contou isso! – ela protestou.

— Ah é né? Eu achei que tinha contado. – eu falei. – Eu consegui o emprego naquele dia que fui na sua casa, acabei esquecendo de contar, porque tu precisava de mim naquela hora. – eu falei e ela fez uma expressão de gratidão.

— Own! Obrigada, João. Mas continue, que eu quero saber tudo. - ela disse.

— Então, consegui o emprego pra trabalhar na limpeza da Ruth Goulart, fiz uma entrevista com a dona Ruth e passei. Mas o que eu quero dizer com isso é que, eu consegui trabalhar lá, você é uma boa atriz e uma aluna querida do colégio (coisa que eu não era e ainda consegui), a escola é conhecida por contratar ex-alunos pra trabalhar lá. Ou seja... – eu falei e o rosto dela se iluminou.

— Sim, sim, sim! Eu posso conseguir trabalhar lá na Ruth Goulart! – ela disse, quase dando pulinhos de alegria. – Mas como? Nas aulas de teatro?

— Foi o que eu pensei. O Yuri ainda trabalha lá e talvez ele precise de uma assistente, quem sabe? – eu falei e ela não se conteve, deu um daqueles gritinhos de felicidade. Depois olhou ao redor e viu que algumas enfermeiras e pacientes olharam pra ela.

— Acho que preciso conter um pouco minha alegria – ela riu envergonhada. Depois me agradeceu e me abraçou. – Vou lá na escola o mais rápido possível. – ela disse e logo em seguida, o Marcelo apareceu e cumprimentou todo mundo.

— João! Que bom te ver, macho! – ele disse, radiante. Seus olhos estavam mais brilhantes que nunca, todo emocionado. – Sabe, considero você meu primeiro filho. Cuidar de você naquela época foi uma baita experiência pra me preparar pra esse novo desafio. – ele disse e eu não tive como não ficar emocionado.

— Rapaz, fale essas coisas não que não tem macho que não chore – falei já enxugando uma lágrima descendo pelo meu rosto. – Mas e aí? Tudo certo com a tia Luíza e com o bebê? – eu perguntei e ele respondeu afirmativamente. – Que bom! Mas a pergunta que não quer calar. É menino ou menina? – eu perguntei, curioso e ele riu.

— Aguenta a ansiedade, João. Já, já você vai descobrir, junto com todo mundo aqui. Prefiro deixar na surpresa. – ele disse.

— Ah! Assim eu não me aguento. – eu disse, fingindo impaciência. – Brincadeira, macho. Eu espero, depois eu dou minhas sugestões de nomes. Uns nome chique estilo Genivaldo, Jurema, Francisca, Jurandir. – falei em tom brincalhão.

— Eu até consideraria suas sugestões se os nomes já não tivessem sido escolhidos. – ele falou, rindo. – Bom, agora eu tenho que voltar pra lá, a Luíza precisa de mim. – ele falou, se despediu de todo mundo e voltou pro quarto. Enquanto isso, eu voltei a sentar do lado de uma Poliana já emocionada.

— A emoção já começa a bater, né – eu disse, enquanto me sentava.

— Sim, mal posso esperar pra entrar e conhecer meu priminho ou priminha. – ela disse.

— Você também não sabe se é menino ou menina? – perguntei.

— Não. Eles mantiveram em segredo. E eu até acho melhor assim, mais emocionante. – ela respondeu, enquanto enxugava algumas lágrimas. Depois disso, a gente silenciou por um tempo.

— Poliana – eu disse e ela olhou pra mim – Você... pensa em se casar um dia? Ter uma família, tipo seu tio e sua tia. – perguntei, nervoso. Ela ficou um pouco pensativa e depois riu.

— Eu não sei, eu acho que sim. Algum dia. – ela disse, ainda rindo ao imaginar. – Mas não acho que isso vá acontecer tão cedo. Não consigo me imaginar longe dos meus tios, ainda mais daqui pra frente que eles vão precisar de mim. E além do mais, não acho que alguém vá querer se casar comigo. – ela disse e eu fiquei sem acreditar no que estava ouvindo.

— Deixe de ser abirobada, menina. – eu disse, rindo ao ouvir aquilo.

— Ué, mas é a verdade, João – ela disse, como se tivesse toda a certeza do mundo disso. – Eu não sou bonita e às vezes chego a ser bastante irritante. – tive que gargalhar ao ouvir isso.

— Não é bonita?!? – acabei falando um pouco mais alto do que o normal, o que fez algumas pessoas olharem. Fiquei um pouco vermelho. – Já pensou que...é... tem gente que pensa diferente, Poliana? – falei envergonhado.

— Claro que não – ela falou, enquanto balançava a cabeça. – Tenho espelho em casa, João. Sei que não há nada de especial em mim. Minha aparência é só comum. Meu rosto não é nada parecido com aqueles que saem nas revistas, meu nariz é apenas um nariz, meus cílios não são longos, enfim. – ainda não podia acreditar no que estava ouvindo, então insisti.

— Já se olhou no espelho quando tá falando, Poliana? – falei, tentando disfarçar meu encantamento.

— Não, né – ela respondeu rapidamente.

— Acho que tu deveria fazer isso. – parei de falar, antes que dissesse mais do que devia. Ela me olhou confusa. Depois só voltou a ficar pensativa.

— Bom, talvez eu deva jogar o Jogo do Contente nesse caso também. Próxima vez que eu reclamar da minha aparência, pode dizer “Poliana, se seu nariz é comum e seus cílios não são longos, fique feliz que pelo menos você tem nariz e cílios. ” – ela disse nos fazendo gargalhar. O tempo passou e logo ouvimos o som de choro de bebê. E estava mais alto do que esperávamos. Não demorou muito tempo pra um médico aparecer e chamar toda a família.

— As famílias podem vir ver os bebês! – ele disse e eu cuspi a água que tava tomando.

— BEBÊS?! – Todo mundo perguntou. O médico afirmou. Todos começaram a chorar e se abraçar. Poliana então, chorava desde que ouviu o choro, quando ouviu que eram dois, aí que veio a cachoeira. Segurei na mão dela e a abracei. Logo ela seguiu pra o quarto junto com a família. Enquanto nós, esperamos ansiosamente para o momento que poderíamos conhecer os bebês.