— Que droga! — Calista exclamou. — Droga, droga, droga! Malditos Gengars! Fodam-se, seus fantasmas desgraçados!

Ash conteve uma gargalhada ao ver sua irmã mais velha andando de um lado para o outro no quarto como um furacão, vestida somente com calça jeans e um sutiã branco.

Os pés descalços de Calista faziam barulho contra o piso de linóleo, o que permitia a seu irmão perceber que ela ainda mancava. Se aquele péssimo temperamento não fosse tão frustrante, a cena seria cômica o bastante para fazê-lo cair na gargalhada.

— Ei, calma, mana. — O moreno disse, estendendo uma das mãos para segurá-la pelo braço quando ela passou. — Você não pode forçar essa perna, lembra?

— Ah, corta essa, Ash! — Calista exclamou, livrando seu braço com um puxão. — Vou matar aqueles Gengars, pode anotar o que estou dizendo.

— Eles são fantasmas, Caly. — Ash rebateu, suspirando de frustração e voltando a se recostar contra o encosto da cadeira na escrivaninha do quarto de sua irmã mais velha. — Eles já estão mortos.

— Não são fantasmas, seu bobalhão. — A morena corrigiu acidamente. — São apenas pokemon tipo Fantasma. Não é a mesma coisa. Deixe de ser estúpido.

— Ainda assim não podem morrer. Você é a estúpida aqui.

Calista simplesmente lhe mostrou a língua e virou as costas, resmungando baixinho enquanto vestia uma camisa azul-celeste de botões, os quais abotoou em tempo recorde.

Ash conteve uma gargalhada, ainda tentando parecer zangado para o caso de ela olhar em sua direção. Aquela maluca não mudara nem um pouco. Fingia ser uma dama refinada em público, mas ainda era a mesma encrenqueira brigona de sempre.

Assim que a jovem terminou de domar seus cachos rebeldes em um rabo de cavalo e calçou um par de tênis, o casal de irmãos seguiu para o hospital. No que parecia ser uma tradição da família Ketchum, Calista dormira demais e os dois quase perderam o horário de visitas daquele dia.

Ash subiu para ficar com a mãe enquanto sua irmã mais velha conversava com os médicos, recebendo todas as informações de último minuto, uma vez que Dehlia receberia alta em algumas horas.

Quando a morena enfim subiu, encontrou Ash e Pikachu jogando uma espécie de guerra de dedões, com a diferença de que o Pokemon Rato tentava prender o dedão de seu treinador usando a ponta da cauda. Dehlia dormia a sono solto.

— Ei, vocês dois. — Calista disse, aproximando-se para acariciar as bochechas vermelhas do pokemon tipo Elétrico. — Mamãe ainda vai dormir por algum tempo. Podem ir treinar, se quiserem. Eu cuido dela.

— Tem certeza? Não vão acabar se matando?

— Muito engraçado, bobalhão. — A performer kantoniana revirou os olhos. — É sério, podem ir se divertir um pouco. Vamos ficar bem.

— Certo. Me ligue se precisar de alguma coisa.

— 'Tá bem.

Ash deixou mãe e filha sozinhas. Dehlia esperou até ouvir os passos de seu filho mais novo se afastarem para entreabrir os olhos, espiando sutilmente por entre os cílios para ter certeza de que ele já fora.

— Tudo bem, mãe. — Calista disse, rindo baixinho. — O Ash já foi.

A matriarca Ketchum abriu os olhos, retribuindo o sorriso de sua filha mais velha. Ela estivera esperando por aquele momento, tinha planejado tudo assim que Ash decidira que voltaria para casa com elas. Por isso fingira estar dormindo quando ele entrara. Queria falar a sós com Calista, antes que perdesse a coragem.

— Oi, Caly. — Dehlia tentou imprimir alguma animação em sua voz. — Já é hora de ir?

— Quase. — Foi a resposta. — Só precisamos esperar os médicos anunciarem oficialmente, e então vamos para casa.

— Calista, você não precisa ...

— Eu sei. — A jovem interrompeu. Seu tom era ríspido, mas seu sorriso foi gentil. — Mas eu quero, mãe. Tenho muita coisa para compensar.

— Nós duas temos, meu bem. A começar por isso.

Calista se surpreendeu quando sua mãe lhe estendeu uma corrente de prata. O formato dos elos, a forma como se conectavam, era vagamente familiar. Intrigada, a morena se perguntou como não havia notado o objeto antes, mas logo supôs que o professor Carvalho o havia trazido em algum momento a pedido de sua mãe. Quando viu o pingente, porém, essa teoria foi pelos ares. Calista estendeu uma das mãos para tocá-lo quase por reflexo, com um arquejo de surpresa.

— Meu amuleto! — Ela exclamou. — Pensei que o tivesse perdido quando ... Quando eu ...

— Quando você foi embora. — Dehlia completou gentilmente. — Sim. Eu o encontrei debaixo da sua janela naquela manhã. Foi como eu tive certeza de que você não pretendia voltar.

A atmosfera no quarto se tornou mais densa enquanto mãe e filha se entreolhavam em absoluto silêncio. Entre elas pesava o fardo de todas as palavras não ditas durante aqueles anos de ausência.

— Mãe ... — Calista disse enfim, baixinho. — Sinto muito. Eu nunca devia ter ...

— Está tudo bem, Caly. — Dehlia garantiu carinhosamente. — Não importando as consequências, nós duas agimos como achamos que era certo. É isso que importa.

— Não é, não. — Calista rebateu, sentando na beira da cama da mãe. — A senhora sabe que, cedo ou tarde, vamos precisar falar sobre isso. Não podemos simplesmente fingir que o passado não aconteceu.

— Eu sei. — Dehlia afirmou, estendendo uma das mãos e descansando-a no joelho de sua filha. — Mas, mesmo que não possamos fingir, também não podemos apressar a verdade. Tem muita coisa que você não sabe, Caly. Muita coisa que ainda não está pronta para saber.

— Como o que?

— Ainda não. — A mulher de cabelos castanhos sorriu ligeiramente. — Agora que tenho minha menininha de volta, não quero me arriscar a perder você de novo. Vou contar tudo quando chegar a hora. Até lá ... Deixamos isso de lado. Recomeçamos. O que me diz?

— Para mim, isso parece uma tentativa de reescrever o passado. — Calista respondeu hesitantemente. — Mas tudo bem, eu concordo. Não é como se eu não fosse reescrevê-lo, se pudesse.

A jovem girou o amuleto nas mãos. Tinha a forma de uma pokebola. A parte superior vermelha era feita de rubi e a parte inferior, branca, era de madrepérola. No centro, onde seria o botão do dispositivo, havia um pequeno cristal engastado. Na base, quase invisível a não ser que se girasse o objeto sabendo de antemão o que procurar, havia uma inscrição:

Para minha amada princesa

Os Ketchum nunca desistem.

Papai.

— Mãe ... — A voz de Calista saiu embargada, e ela sentiu as lágrimas arderem em seus olhos. — Obrigada.

Dehlia simplesmente sorriu, parecendo satisfeita.

— Agora o amuleto está de volta aonde pertence. — Declarou. — Lembra o que seu pai disse quando deu isso a você?

A pergunta a atingiu como um caminhão, fazendo a lembrança voltar em um flash, com intensidade o bastante para tirar-lhe o fôlego.

— "Para te proteger". — Calista repetiu quase automaticamente as palavras que estavam gravadas em sua memória. Podia até ouvir a voz do pai, grave e ligeiramente rouca, porém sempre gentil. Reconfortante, até. — "Use sabiamente, no momento certo." O que acha que ele quis dizer, mãe?

— Eu não sei. Liam nunca teve a chance de me contar, ou não quis. O próprio amuleto era um segredo entre vocês dois. Ele nunca me falou sobre a inscrição na parte de trás. Eu só a percebi depois que você foi embora.

Calista ponderou aquela resposta. O amuleto havia sido o último presente de seu pai, em seu sétimo aniversário. Normalmente as memórias de sua infância eram borradas, indistintas. Isso era algo que aceitara muito tempo atrás, mantendo as poucas coisas de que conseguia se lembrar com clareza como tesouros.

Aquela noite era uma dessas lembranças, clara como cristal. Podia ver os olhos de seu pai, tão escuros que pareciam negros sob a luz fraca da lâmpada noturna, quando ele gentilmente sacudira seu ombro para acordá-la de um sono leve. Ela jamais esquecera as palavras que ele sussurrara ao deixar o amuleto em sua mão, pois foram a última coisa que ouviu de seu pai. No dia seguinte Liam Ketchum saiu em uma viagem de negócios e desapareceu. Foi pouco depois disso que Dehlia se mudou com Calista para a cidade de Pallet.

— Eu vou descobrir o que aconteceu com ele, mãe. — A jovem jurou baixinho. — De um jeito ou de outro.

— Caly ... — Dehlia moveu a mão apoiada no joelho da filha, deslizando-a para o ombro da morena e apertando suavemente. Aquilo era exatamente o que temia, aquela determinação ferrenha. — Certas coisas são melhores deixadas em paz. Liam desapareceu há quase vinte anos. Você precisa deixá-lo ir.

— Mas ... Mas ele não nos abandonaria assim, mãe! — Calista protestou com veemência. — Não houve funeral, porque nunca encontraram o corpo dele. Papai deve estar em algum lugar por aí, tenho certeza, e não pôde voltar por algum motivo.

— Esqueça isso! — Dehlia quase gritou. Ela respirou fundo, tanto para se acalmar quanto para tomar coragem, e encarou sua filha nos olhos com firmeza. — Seu pai está morto, Calista! Recebi o relatório da equipe de busca, mas nunca lhe contei por que você era jovem demais.

— O que?! — A jovem exclamou, pulando de pé, sua voz um grito de ultraje. — Não podia ter escondido isso de mim, mãe! Não tinha o direito! Eu merecia saber!

— Querida, nunca encontraram prova nenhuma. — Dehlia explicou. — Foi o outro motivo pelo qual eu nunca quis lhe contar nada. Um ano se passou sem qualquer pista, é claro que Liam seria considerado morto. Baseado no local onde encontraram a última pista, supuseram que seu pai caiu em um dos fossos da caverna. Infelizmente, os níveis inferiores da Caverna de Cerulean nunca foram acessíveis. É perigoso demais.

— Então ... Ele entrou na caverna, mas nunca saiu?

— Exatamente. Encontraram Ladie, a pokemon favorita dele, na metade do caminho para a cidade de Viridian. Pense bem, Caly. Você se lembra do quanto Liam a adorava. Por qual outro motivo seu pai a abandonaria, a não ser que não tivesse escolha?

A jovem kantoniana, que até então havia se mantido de pé, com as mãos na cintura, sentou-se novamente na beira da cama da mãe. Suas pernas estavam fracas demais para sustentá-la.

Ela se lembrava de Ladie, a Pikachu de seu pai, cujo nome havia sido pensado como um anagrama ao nome de sua mãe, em homenagem à mulher que Liam mais amava. E ele adorava aquele pokemon mais do que quase tudo no mundo, exceto sua esposa e filha. Pensar naquilo fez os olhos da morena marejarem mais uma vez, e ela apressadamente limpou uma lágrima rebelde que teimou em cair.

— O que aconteceu com ela? — A irmã de Ash inquiriu enfim. — Com a Ladie.

— O professor Carvalho a acolheu. Eu não pude ... Não consegui. E ele era o melhor amigo do seu pai, afinal.

— Então a Pikachu de Daisy, aquela com quem brincávamos ...

— Isso mesmo. — Dehlia assentiu, sorrindo de leve ante a memória. — Era Ladie. Por isso ela sempre preferiu você. E, se quer saber, é por isso também que Daisy nunca a evoluiu. Você se lembra do quanto ela idolatrava o seu pai. Perdi a conta das vezes em que aquela menina me implorou para que eu a deixasse contar a verdade sobre Ladie.

— E por que a senhora nunca deixou?

— Porque saber sobre ela apenas faria você sofrer. E ... Eu não queria ... Não podia arriscar que você decidisse tê-la como seu primeiro pokemon.

Uma batida na porta dissipou a atmosfera mais uma vez tensa, interrompendo Calista antes que ela pudesse responder ao que sua mãe dissera. Eram Ash e o professor Carvalho, os dois parecendo extremamente animados.

— Então ... — O homem mais velho perguntou. — Prontas para ir, madames?

As duas se entreolharam, Dehlia implorando pelo silêncio de sua filha mais velha.

Ainda não, aquele olhar dizia. Por favor, ainda não.

Calista hesitou, mas enfim assentiu discretamente, resolvendo respeitar os desejos de sua mãe. Ela então se virou e sorriu para o professor.

— Sim, professor. — A jovem respondeu, forçando-se a soar animada. — Vamos logo para casa.

Os dedos de sua mão esquerda se fecharam ao redor do amuleto em forma de pokebola, que mantinha oculto em seu bolso. Ainda se encaixava perfeitamente, apesar dos anos passados.

Calista jurou que não se separaria mais daquele objeto. Não acreditava naquela história sobre seu pai haver morrido. Não mesmo. Liam estava vivo, ela podia sentir. E não desistiria até encontrá-lo, independentemente do que qualquer um dissesse.