Pobres almas desafortunadas
Arco 2 - Parte 7
Elliot corria esbaforido atrás de mim. Eu quase não via a cidade ao meu redor, quase não sentia as pessoas em que esbarrava. Pensava apenas na praia, até que ela preencheu minha visão. Na areia, a poucos metros das ondas, um pequeno grupo de homens lutava contra uma rede de pesca. Por entre seus braços, tive o vislumbre de uma cauda verde.
— Ei, o que estão fazendo? — bradei, correndo pela areia. — O que pensam que estão fazendo?
As batidas em meu peito estavam aceleradas. Eu empurrei um dos pescadores para o lado, ansioso, temeroso. Arregalei os olhos para aquele tritão que me encarava, o mais puro horror brilhando em seus olhos verde-musgo.
Não era Ariel.
— Senhor Daren, veja só o que nós fisgamos! — exclamou um dos pescadores, sorrindo com orgulho. — É só uma pena que não seja uma sereia, não?
O pobre tritão se debateu, lutando contra a rede que o envolvia. A corda roçava em sua pele, ferindo as mãos e a cauda. Ele gritava em uma língua que só eu compreendia.
Me soltem! Me deixem em paz!
— Vocês por acaso são idiotas? — rosnei, dando um tapa na nuca do homem mais próximo. Ele largou a rede para esfregar a cabeça. — Vão matá-lo assim. É um bendito tritão, pelos céus! Fora da água, morrerá em pouco tempo!
Eu queria que eles o devolvessem ao mar. O pobrezinho chorava, revirando-se violentamente, usando toda a sua força para atingir os homens hostis com sua cauda. Eu observava, enfeitiçado. Queria salvá-lo, mas simplesmente não podia me entregar assim... Não sem antes encontrar a Erika.
— Escutem o senhor Daren — pediu o moleque, espremendo-se ao meu lado. — Ele não... — Seus olhos cinzentos arregalaram-se. — Uou... incrível...
O tritão parou de lutar. Encarou Elliot por um breve segundo, como se implorasse a ele. Seus lábios se moveram.
Socorro.
— O que foi que ele disse? — Elliot virou o rosto. — Que língua é essa?
— Criaturas do mar não entendem a língua humana — expliquei-lhe. — Ele não faz ideia do que estamos falando. Está assustado. Certamente acha que vai morrer.
Talvez morresse. Ele definhava aos poucos nos braços daqueles desconhecidos. Os olhos verdes começavam a se fechar. Eu tinha de fazer alguma coisa, tinha de agir logo. Ah, desgraça! Tudo bem! Era hora de acabar com o disfarce. Cerrei os punhos, preparado para desferir alguns socos e fugir.
— Deixem-no em paz!
Os homens ergueram os rostos, esquecendo-se do tritão por um instante. Eu os imitei. Olhei assombrado para a garota que corria pela areia.
— Soltem-no agora! — ordenava Erika com uma vozinha esganiçada.
Atrás dela, Grimsby tropeçava. Ele era o conselheiro real e — ela detestava admitir — o supervisor de Erika. Sua função era mantê-la em segurança nos arredores do castelo. Pelo visto, não a exercera muito bem. A princesa corria, levantando o vestido para que seus pés não enroscassem na renda. Seus cabelos negros estavam um caos.
— Devolvam essa pobre criatura ao mar. — Erika estancou a poucos passos de nós. — Imediatamente.
— Vossa Alteza! — arfou Grimsby, tocando seu ombro. — Tenha um pouco de bom senso! Uma dama como a senhorita não deveria jamais...
— Cale a boca, Grimsby. — E ainda me perguntam por que eu amo essa garota! — Eu mandei soltar o tritão. Vocês não ouviram?
Os olhos dela queimavam, queimavam cada um que estava ali. Os pescadores soltaram a rede, sentindo-se culpados. Deixaram o corpo inerte de sua presa cair na areia. Apenas Elliot continuava olhando para ele com um ar maravilhado.
— Eu disse imediatamente — prosseguiu Erika. — Ou darei ordem de prisão a todos vocês.
Houve uma comoção. Os homens lutavam entre si para soltar a pobre criatura e devolvê-la ao mar. Apenas nesse momento Elliot se deu conta de que a princesa estava por perto, e seu objeto de admiração passou a ser ela.
— Vossa Alteza... — murmurou Grimsby, tremendo. — O seu pai...
— Na ausência dele, eu dou as ordens, Grimsby. — Ela respondeu com uma autoridade que eu nunca tinha visto antes.
— Então, minha cara Princesa Erika, creio que seja o momento de dispensá-la.
Virei o rosto, buscando a origem daquela voz. Henrique parou ao lado de Grimsby e alisou seu bigode.
— Trago ordens do rei.
Erika mordeu o lábio inferior.
— E quais são elas, capitão? — indagou, pronunciando a última palavra com desprezo.
Henrique ignorou.
— O Rei James deseja que o tritão seja levado a seu encontro. Neste exato momento, a Guarda Real está providenciando uma banheira para o transporte.
— Uma banheira, Henrique? — Erika voltou-se para ele. Tenho de admitir que ela tinha muita garra. Mesmo baixinha, sustentava seu olhar. — É o melhor que podem fazer?
Ele a encarou de cima. Pude perceber que os sentimentos eram mútuos.
— Não poderíamos transportá-lo em uma caixa, não é mesmo? — Voltou-se para os pescadores. — Vocês ouviram, homens! — Henrique aguardou enquanto suas ordens eram cumpridas. Sua pose era impassível. — E quanto à senhorita, Vossa Alteza, creio que esteja na hora de retornar a seus aposentos.
O desprezo dela se refletiu em meus olhos.
— Vai pagar por isso, Henrique.
Era apenas um sussurro, mas eu escutei. Ele arqueou as sobrancelhas, descrente.
— Vou pagar por cumprir as ordens de seu pai? Não me faça rir.
A banheira não tardou a chegar. Os pescadores encheram-na com água do mar e jogaram o tritão ali dentro. Ele se mexeu ligeiramente. Com um movimento sincronizado, os homens ergueram-na e seguiram até o castelo, acompanhados de perto por Henrique.
— Princesa... — murmurou Grimsby, receoso. — Se me permite...
— Vá embora, Grimsby.
O pobre conselheiro encolheu-se diante da agressividade.
— A senhorita precisa retornar ao castelo. O Rei James...
Ela ainda mordia os lábios, frustrada. Elliot pareceu despertar de um transe.
— Eu a acompanho!
Erika olhou de soslaio para ele. A contragosto, permitiu que ele a acompanhasse até o castelo. Eu desejei com todas as forças que ele tivesse um pingo de sensibilidade, mas o moleque desatou a falar sobre o bendito tritão, ressaltando todos os detalhes.
— Ele parecia bem apavorado mesmo. Fiquei surpreso por ele ter cachinhos. Você viu? Estavam meio nojentos por causa da água e da areia, mas sem dúvida eram cachinhos.
A voz distanciou-se aos poucos. Na praia, só restamos eu e Grimsby. Até que Grimsby decidiu seguir a princesa, e eu fiquei sozinho. O sol se punha. Arrasado, lancei meu olhar ao horizonte. Pisquei duas vezes. Podia jurar ter visto um bater de cauda.
O tritão já havia sido levado quando eu finalmente recebi permissão para adentrar a Sala do Trono. Henrique estava parado em posição de descanso diante do rei e da rainha, que conversavam em voz baixa com Grimsby. Em um terceiro trono, mais baixo que os outros dois, Erika fazia uma careta emburrada. Ela me lançou um olhar cheio de súplica.
— Majestade — chamei educadamente.
— Meu caro Daren! Estávamos esperando você! — O Rei James abriu um sorriso luminoso. — Viu o tritão?
— Sim, eu vi, Majestade. Era justamente sobre isso que...
— Não é fabuloso? — Ele balançou a cabeleira negra, exultante como uma criança que acaba de ganhar um brinquedo novo. — Quantos outros reis podem dizer, como eu, que possuem um jovem tritão? Um tritão! Eu sabia que as histórias que minha querida mãe contava eram verdadeiras!
— Majestade... — tentei outra vez.
— Essa notícia se espalhará pelo mundo! — profetizou o rei, erguendo o dedo em riste. — Rei James, o capturador de tritões! O que acha, Capitão Henrique?
Henrique sorriu.
— Divino, Vossa Majestade.
— Vão construir uma estátua minha no centro da cidade! Rei James e seu tritão! Uma mascote muito mais interessante do que aquele cachorro babão, se querem saber...
— Querido — chamou a rainha com delicadeza. — Creio que o senhor Daren esteja tentando nos dizer algo.
O Rei James engasgou, envergonhado. Só então ele olhou de verdade para mim.
— Oh, sim, claro. — Pigarreou. — Pois não, senhor Daren?
Tive de conter um suspiro.
— Majestade, temo que não seja uma decisão sábia manter o tritão como nosso prisioneiro.
James voltou-se para mim com uma expressão levemente confusa. Parecia uma criança que não entendeu se ganhará ou não o brinquedo que tanto deseja.
— As criaturas do mar costumam ser amistosas, mas se mostram bastante ferozes quando um dos seus é ferido. Se mantivermos o tritão aqui, seremos caçados.
É claro que metade do que eu disse era mentira. Eu tinha sérias dúvidas de que o Rei Tritão mandaria suas tropas à superfície para resgatar aquele pobre jovem. Afinal, ele não buscou vingança quando a vítima foi sua esposa.
— Além disso — prossegui —, se o tritão for mantido fora da água, ele certamente irá morrer.
Os olhos do rei arregalaram-se.
— Pelos céus! Ouviu isso, querida? Nós precisamos providenciar uma prisão com água imediatamente!
Eu quase engasguei. Aquilo só poderia ser brincadeira! Até mesmo Erika olhou para o pai como se ele fosse louco.
— Se me permite, Majestade — disse Henrique, sempre com o mesmo tom de voz irritantemente calmo —, esse problema já foi resolvido. A pequena torre sobre as colunas de pedra possui um chafariz que podemos transformar em uma piscina em poucos dias. É um bom lugar para manter o tritão enquanto decidimos o que fazer com ele.
— Excelente ideia, capitão! Grimsby, quero que você comande a obra. Precisamos de uma piscina para o tritão imediatamente! Tem minha permissão para iniciar os trabalhos hoje mesmo.
— Sim, Majestade! — exclamou o conselheiro, fazendo uma mesura e deixando a sala logo em seguida.
Fiquei parado, estarrecido com o absurdo daquela situação. Pelos mares! Estávamos falando de uma vida! Estávamos falando de um jovem assustado que fora conduzido ao cativeiro por conta de um capricho! Cerrei os punhos, a raiva subindo meu peito. Tenho quase certeza de que a concha mágica começou a brilhar.
— Você só pode estar de brincadeira!
Olhei para o lado. Erika estava de pé. Também cerrava os punhos.
— Ele está com medo, papai. Liberte-o agora!
— É “senhor” para você, Erika. — O rei repreendeu-a, seco. — E não se esqueça: quem dá as ordens aqui sou eu.
— Mas o senhor tão pode fazer isso! — A vozinha dela ficava esganiçada de novo. — Ele é uma pobre criatura. Tenha piedade! Ele certamente tem uma família em algum lugar que está preocupada com seu desaparecimento.
— Bobagem... — O rei fez um gesto de desdém, como se dispensasse a filha.
— Mãe! — Erika voltou-se para a Rainha Helena. — Por favor, a senhora sempre foi mais sensata. Liberte o tritão, por favor!
— Sente-se, Erika — respondeu a rainha.
Os olhos azuis brilharam enquanto grossas lágrimas se acumulavam neles. Erika voltou-se para Henrique, sua última esperança.
— Capitão?
Ele fez uma reverência.
— Estou aqui para cumprir as ordens de meu rei.
Erika virou-se para os pais, depois para Henrique de novo. As lágrimas desceram por seu rosto.
— Eu não sobrevivi para ver esta cena! — gritou.
— Erika!
O Rei James fez menção de se levantar, mas a filha já havia desaparecido por uma porta lateral. A Rainha Helena levou as mãos ao rosto.
— Capitão... — principiou James.
— Eu vou atrás dela — disse em um átimo. — A princesa vai me escutar.
Todos olharam para mim, cheios de expectativa. Lentamente, o rei meneou a cabeça.
— Por favor, senhor Daren, vá atrás dela.
Assenti. Caminhei até a porta lateral e a puxei. Antes de sair, lancei um último olhar ao salão. A Rainha Helena parecia desamparada.
Erika estava sentada na Sala do Coral, soluçando no pescoço de Max. O cachorro gania baixinho, chorando com ela. Em silêncio, puxei uma cadeira e me sentei ao lado dos dois. A princesa ergueu o rosto assustado.
— Ah, é você...
— Decepcionada?
— Não. — Ela fungou e usou a manga do vestido para secar as lágrimas. — Tive medo de que fosse o Henrique...
Sorri.
— Ele é assustador, não é? Até parece que aquele bigode vai te comer.
Erika riu.
— Você não viajou tanto quanto eu, mas eu lhe digo: aquilo parece um bigode de morsa! Se o capitão ao menos fosse mais gordo e dentuço...
Ela gargalhou.
— Ah, Daren — murmurou, secando os olhos. — Só você para me fazer sentir melhor. — Ela sorriu de leve. — O que vamos fazer?
Suspirei.
— Eu não tenho nem ideia. Convencer seu pai será uma tarefa difícil. Sua Majestade sempre foi muito teimoso. E com Henrique apoiando suas decisões...
— Eu queria que o Henrique fosse mandado para muito, muito longe daqui — Erika segredou, abraçando suas pernas. — Não gosto dele.
— Alguém neste reino gosta?
Ela balançou a cabeça.
— Henrique é adorado por todos daqui. Ele é visto como um herói. Pessoalmente, eu gostava mais do Capitão Alfred. — Erika fungou de novo. — Ele me servia peixe grelhado quando ninguém estava olhando.
Ficamos em silêncio por um momento. Eu quis dizer que também sentia falta de Alfred. O velho não era de falar muito quando estava sóbrio, mas eu simplesmente gostava dele. Feitiço algum no mundo explicaria toda a admiração que eu tinha pelo lobo do mar.
— Elliot disse que prenderam o tritão nas dependências do Henrique. Acho que para ninguém tentar resgatá-lo.
— Quem? — franzi o cenho. — Ah, o moleque...
— O Elliot é legal. — Ela acomodou o queixo entre os joelhos. — Ele me disse que, quando olhou para o tritão, soube que precisava devolvê-lo ao mar. Que arriscaria a própria vida se tivesse um bom plano...
Grunhi, enciumado.
— Aposto que o moleque só disse essas coisas para te impressionar.
— Não. — Erika balançou a cabeça de novo. — Ele estava sendo sincero. Eu vi a sinceridade nos olhos dele. Elliot é meu amigo, então eu sei que ele é uma pessoa boa.
Virei o rosto. Minha empatia por aquele garoto diminuía a cada segundo. Se ele continuasse com suas palhaçadas para cima da minha menina, eu ia transformá-lo em um peixinho dourado e jogá-lo para o Max.
— Está com ciuminho, Daren? — A voz de Erika soou zombeteira. Para piorar, ela olhava para mim contendo o riso. — Está com ciuminho do Elliot?
— Desgraça! E por que eu teria ciúmes daquele moleque atrevido e desmiolado? Ele é quem deveria ter ciúmes de mim!
Erika riu com gosto.
— Você está com ciúmes!
— Ora, sua pequena provocadora. Cuidado com tuas palavras! — disse, fazendo menção de empurrá-la de leve.
Ela saltou para longe de mim.
— Eu sabia que, no fundo, você se importava comigo! — cantou as palavras, saltitando de um lado para o outro com Max em seus calcanhares.
Eu me levantei e dei alguns passos até ficar de frente para ela.
— Mas é claro! Queria que eu tivesse deixado você se afogar?
Erika afastou-se mordendo o lábio. Soube na mesma hora que ela estava se lembrando do que dissera a seus pais.
— Como poderemos salvá-lo, Daren?
Eu suspirei. Ainda hesitante, toquei sua face corada, sentindo sua pele quente e seus cabelos soltos. Ela fechou os olhos.
— Não se envolva nisso, Erika. Não desafie seus próprios pais. Deixe tudo por minha conta. Deixe as consequências caírem sobre mim.
— Mas, Daren... — Ela abriu os olhos outra vez, e as lágrimas tornaram a cair. — Eles podem te matar!
— Que tentem fazer isso. Quero vê-los tentar! — Com um sorriso, encostei minha testa na dela. — Confie em mim, Erika. Eu salvarei o tritão. — Hesitei, fitando seus olhos cheios de dúvidas. — É uma promessa.
A porta atrás de nós abriu-se com um leve rangido. Henrique surgiu na soleira, observando-nos assombrado. Erika afastou-se de mim no mesmo instante.
— Creio que seja hora de a princesa retornar aos seus aposentos.
— Creio que seja hora de o capitão retomar seus afazeres — ela respondeu no mesmo tom.
— Quem me dera o senhor Grimsby ou a senhorita Angela estivessem aqui para que eu não tivesse de cumprir suas funções. Retorne a seu quarto, Princesa Erika. E não ouse sair.
Erika chamou Max e caminhou orgulhosa para fora da sala. Não abaixou o rosto uma única vez e sustentou o olhar gélido de Henrique até desaparecer no corredor. O capitão esfregou o pescoço, cansado, e me analisou com cautela.
— Seja lá o que estiver planejando, eu recomendo que esqueça. E mantenha distância da Princesa Erika. O senhor é uma má influência, senhor Daren. Considere-se avisado.
Ele fechou a porta, mergulhando-me no silêncio. Grunhi baixinho. Desgraça! Esqueça o moleque! Se alguém merecia ser transformado em esponja do mar, era o capitão!
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