Pintos no Lixo

Capítulo único


O hot dog da Márcia faliu. Não conseguiram superar a crise das salsichas. Então Félix se lembrou que, um dia, disse pra Maciel que nem de gari conseguiria emprego, ou quem sabe de gari ele conseguiria emprego. Afinal, gari presta concurso. A fama que César espalhou sobre ele não o impediria de passar em um concurso público.

Ele até poderia prestar qualquer tipo de concurso. Mas, no jornal, ele leu que a contratação seria imediata. Márcia precisava do dinheiro e ele também.

Sendo assim, ele foi lá, se inscreveu e, como tem mais neurônios que a maioria, passou. Em pouco tempo, começou a trabalhar de gari.

Para seu desespero, ele foi destacado para trabalhar bem nas redondezas do hospital e do shopping, onde funciona o restaurante japonês de Niko e a boutique de Edith.

Félix ficava apavorado trabalhando, morrendo de vergonha que alguem o visse. Passava assim os dias, prestando mais atenção nas pessoas que iam e vinham do que no chão que tinha que varrer.
Mas, um dia, o inevitável aconteceu. Passou por ali um conhecido. E logo quem!

Ele até tentou se esconder, mas não conseguiu. Niko o viu e se aproximou dele:

– Félix, finalmente te encontei!

Niko ficou feliz em reve-lo. Já havia tempo não tinha nenhuma noitícia do amigo. Levou alguns segundos para que entendesse o que Félix fazia. Surpreendeu-se.

– Então, é esse o segredo do seu trabalho? Você está trabalhando de gari.

– Não, sou um policial disfarçado. Sai daqui que você está atrapalhando minha investigação.

Niko não riu, embora tivesse entendido a brincadeira.

– Félix, eu estava preocupado com você. Você sumiu.

– É... pois é... sumi. Dá licença, Niko... preciso continuar trabalhando.

– Porque você nunca mais apareceu no restaurante?

– Porque estou trabalhando muito, não está vendo?

– Mas não precisava desaparecer assim... Olha, passa lá mais tarde que eu...

Félix ficou nervoso, já estava se sentindo mal com toda aquela exposição. Estão falou rispidamente:

– Niko, não dá, ok? Não dá mais pra ir sempre te visitar no restaurante. Sou um gari, tá? Pronto, confesso. Estou varrendo ruas e recolhendo lixo.

– O que isso tem a ver com ir lá no Gian e... e me ver?

– Eu não tenho tempo! Não tenho tempo de ir até onde moro, tomar banho, trocar de roupa e voltar até aqui... Niko... quer saber? Melhor a gente parar... parar de se ver. É isso, melhor assim.

– Parar de se ver? Porque? O que foi que eu fiz? Sou seu amigo, Félix!

– Niko... veja bem meu estado, eu sou um gari.

– E dai? É um trabalho honesto como outro qualquer.

– Carneirinho... o melhor pra você é me esquecer de vez. Vai embora!

– Não, eu nao vou!

– Niko! Veja bem. Sou um gari, vivo sujo, no meio do lixo! Não sou mais aquele homem elegante e perfumado que voce conheceu. Sei que você nao vai gostar de mim assim.

– Para Félix...

– É verdade. Não precisa ficar aqui por pena, vai embora.

– Para de dizer essas coisas... não estou aqui por pena, estou por...

– Você merece alguém melhor do que eu. Vai... sai daqui. Sai, pelas contas do Rosário!

– Félix... nada disso importa pra mim... eu...

– Vai embora logo, é melhor pra nos dois! - Félix gritou assustando Niko.

O caminhão de lixo, que estava ali perto, ligou o motor. Félix caminhou até lá, subiu no veículo e se foi. Niko ficou ali triste, parado e pensando em como resolver aquela situação. Ele precisava fazer algo para que Félix entendesse que certas coisas importam bem menos que outras.

Niko queria estar mais perto dele, para ajuda-lo ou simplesmente porque... porque o queria em sua vida. Ele sempre soube que o verdadeiro Félix não era aquele de terno e gravata, então que diferença fazia se ele agora vestia roupas sujas de quem limpa ruas?

Félix podia ter vergonha, de um dia ter sido um executivo e agora estar ali naquele emprego. Mas, para Niko, aquele era um trabalho digno como qualquer outro.

O Carneirinho não ia desistir fácil.

Algumas semanas se passaram.

Um belo dia, Niko apareceu com uma vassoura na mão vestindo uniforme da Prefeitura e, todo sorridente, cumprimentou Félix, que trabalhava e tomou um susto.

– O que é isso, criatura?

– Félix, eu sou um gari agora.

– Oi? Niko... não tenho tempo para brincadeira, tenho um quarteirão enorme pra varrer.

– E eu vim ajudar!

Niko começou a varrer ao lado dele.

– Que palhaçada é essa, Carneirinho? Desde quando você é gari?

– Desde hoje. Hoje é meu primeiro dia.

– É o dia do apocalipse, isso sim.

– Félix. Presta atenção. Se essa é a unica maneira de ficarmos próximos... então tá. Também vou viver sujo e trabalhar com o lixo.

– Será que eu ouvi bem? Você está maluco?

– Nunca estive melhor do que estou hoje.

– Você vai trocar seu restaurante por essa vida aqui?

– Meu restaurante está no mesmo lugar. O Edgar está cuidando dele. À noite eu passo lá e vejo como estão as coisas. Aliás, eu preciso de um gerente, sabia? Você podia ter me falado que precisava de emprego.

– Niko... você não sabe nada, nada sobre mim...

– Sei o que importa. Se você aceitar, pode vir trabalhar comigo.

Félix balançou a cabeça em sinal negativo. Niko ainda não sabia dos seus erros do passado. Ele não achava justo aceitar trabalhar para Niko, em um cargo de confiança, sem que ele soubesse a verdade. E Félix ainda não estava pronto para contar.

– Carneirinho... tem muita coisa que você precisa saber sobre mim. Enquanto isso, é aqui que vou ficar trabalhando.

– Você que sabe. Quando quiser me contar, você me conta. Quando quiser o emprego, você me fala. Até la eu sou um gari como você.

Niko sorria e o olhava nos olhos. Seu olhar traduzia todo um amor, desses que não se explica, nem se sabe quando surge. Mas é tão grande que transborda.

Enquanto Félix olhava para ele incrédulo, e não conseguia dizer uma palavra, Niko continuou:

– Félix, se você acha que, porque agora anda sempre sujo, não é bom o suficiente pra mim, então está resolvido o problema. Eu vou andar sempre sujo também.

O medo, a insegurança e a falta de amor ainda levaram Félix a tentar fazer Niko mudar de ideia.

– Carneirinho... não. Pensa bem... uma pessoa como eu, não vale à pena.

Ele se virou e começou a caminhar até o caminhão de lixo, sabendo que já era a hora de partir.

Niko foi atrás.

– Eu vou com você, Félix.

– Não Niko... não venha, isso não é pra você... – Félix começou a correr.

Niko acelerou o passo para alcançá-lo.

O caminhão de lixo ligou o motor, indicando que era hora dos garis subirem para ir até outra rua.

Ele pararam, frente à caçamba do caminhão. Félix entrou e sentou-se. Niko, para não deixar nenhuma dúvida do que queria e de como se sentia. disse com bastante convicção enquanto subia na caçamba, meio desajeitado.

– EU VOU PRA ONDE VOCÊ FOR, FÉLIX!

Félix se deu por vencido. Aquele Carneirinho ia mesmo segui-lo ele querendo ou não. E quem disse que ele não queria? Então estendeu-lhe a mão:

– Vem. Vem meu Carneirinho.

Puxou ele para dentro da caçamba, para perto de si. Niko caiu por cima dele e se beijaram. No meio do lixo. E quem disse que eles se davam conta de onde estavam?

Lá foram eles varrendo ruas entre um beijo e outro. Felizes como dois pintos no lixo.

Mas não para sempre como garis. Apenas até certo dia.

Aos poucos, Félix foi contando para Niko sobre todos os seus erros. E surpreendia-se cada vez mais com o Carneirinho, que o entendia e o ajudava a encontrar, dentro dele mesmo, a pessoa que ele realmente era. Aos poucos ele foi se aceitando, se perdoando, se revelando. Aos poucos ele aprendeu sobre sentimentos e a ter amor próprio.
Então, finalmente, chegou o dia, quando Felix disse:

– Carneirinho... aquele convite para ser gerente, ainda está de pé?

– Claro que sim, seu bobo.

– Então eu aceito.- Ele acabou gritando: - Eu aceito, Niko. Aceito!

Os garis todos pensaram que ele havia aceitado outra coisa e começaram a dar os parabens.

– Ehhh vai ter casamento! Aeeeee. U-huuu viva os noivos!

Niko olhou com aquela cara de "agora vamos ter que casar".

Félix sorriu e disse:

– Eu devo ter salgado a Santa Ceia viu... para encontrar o amor verdadeiro em uma caçamba de lixo. - Félix riu dele mesmo.

E foram felizes para sempre.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.