Pesadelo do Real

Capítulo 09 - Cheshire


"- Mas eu não quero me encontrar com gente louca - falou Alice.

- Não pode evitar - disse o gato - Somos todos loucos aqui, eu sou louco, você é louca.

- Como sabe que sou louca? - perguntou a garota.

- Deve ser - respondeu o gato - Caso contrário não estaria aqui."


~ Alice no País das Maravilhas (livro de Lewis Carroll)

Capítulo 09 - Cheshire

O gato preto na sua frente era exatamente igual ao do sonho. Monalisa observa seu largo e perturbador sorriso sem emitir nenhuma palavra. O evento foi ativado, mas o que ela precisaria fazer agora? O gato teria alguma resposta? O problema é que a mocinha ainda permanecia pasma com a situação e não sabia se ficava assustada, saía correndo ou respondia ao gato. Mas antes que pudesse pronunciar alguma coisa, o próprio bichano toma a palavra.

- O que foi? - ele continuava a sorrir - O gato comeu a sua língua?

A menina olha para os lados. Seria estranho se alguém a visse conversar com o gato? Bem, na verdade, todos já deviam saber que ela ativou o evento, mas teria algum problema se deixar ser vista nessa situação? Só que, mais uma vez, o animal parece ter adivinhado seus pensamentos.

- Não tem com o que se preocupar. Pode falar o que quiser. Aproveite enquanto pode - diz ele, enquanto balançava sua cauda de forma elegante.

- É estranho... - balbucia Monalisa.

- Já disse para relaxar. Esse evento está ocorrendo em um espaço restrito. Não seremos interrompidos - esclarece o gato.

- Espaço restrito?

- Ninguém pode entrar ou sair dessa rua até o final do evento. Bem conveniente, não acha?

Monalisa ainda não sabia bem o que dizer. Nunca se imaginou conversando com um gato, embora sempre tenha gostado da companhia de animais. Talvez porque eles, assim como ela, também não falem muito, mas aquele gato em especial parecia bem tagarela.

- Então...ativei mesmo o evento - diz a garota, ainda olhando em volta e tentando achar algo de diferente, mas parecia tudo do mesmo jeito de antes.

- Imagino que sim - diz o gato, ainda com o mesmo sorriso sarcástico - Afinal, o Labirinto não permite que os animais fiquem falando por aí.

- Os animais..também fazem parte do Labirinto? - pergunta a mocinha.

- É claro que sim. Ou você acha mesmo que somos um bando de criaturas irracionais?

Monalisa já suspeitava disso, mas ainda era estranho pensar que qualquer animal sabia mais sobre ela do que ela mesma.

- Bom, acho que ja devia suspeitar disso - fala a garota - De qualquer forma, você é um tutor, não é?

- Digamos que sim - responde o gato - Faz um tempo que venho te observando.

- É verdade. Você sempre está nessa vizinhança e também apareceu na papelaria.

- O Sr. Tenório..bom homem. Sempre me oferece uma tigela de leite - comenta o gato.

- Err..como é o seu nome?

- Cheshire - ele responde - Ou simplesmente o Gato Sorridente

- Um gato sorridente. - repete Monalisa - Como no meu sonho...

- Sim. Foi um sonho divertido, não foi?

- Divertido? Não foi nada divertido! - retruca Monalisa.

- Mesmo? - ele continuava sorrir - Você não gostou?

- Como poderia gostar? Uma floresta escura e fria, onde eu não tinha a menor ideia de onde estava...queria sair de lá o quanto antes.

- E você saiu, afinal, está acordada, não está?

- Sim, estou...

- Mas o pior pesadelo é aqui fora, não é? Imagino como deve estar se sentindo..perdida, sem saber por onde ir, não é muito diferente do sonho...

- Olhando por esse lado...

- Talvez ja tenha escutado uma história parecida com essa antes, não é, Alice?

- Alice? Eu não sou Alice! Aliás, não é a primeira vez que você me chama assim!

- Hihihi - ri o gato - Você só acha que não é Alice. Conhece a história dela, não conhece?

- Está falando...do país das maravilhas? O que tem essa história?

- Você fala num tom meio rude, não acha? Afinal, está falando de uma história feita para você

- Como? - agora já era demais. Quer dizer que...

- Sim. É isso mesmo que você está pensando. Aquela história nada mais é do que uma metáfora do Labirinto.

- Metáfora? - pergunta a garota.

- Uma garota totalmente perdida em um mundo desconhecido, não parece familiar? O autor só usou desse artifício para que você nunca suspeitasse de nada, acreditando que um mundo daqueles só poderia ser um conto, um sonho ou um devaneio. Isso diminuiria em muito as suas chances de aceitar o caminho do Labirinto.

- Está brincando? É uma história muito antiga...como pode...

- De fato. Você pode acreditar que é antiga. Ou, pelo menos é o que te contaram.

- Hã?

- Sabe...o tempo também não é algo em que você devia confiar.

- Até mesmo o tempo...espere, isso quer dizer que..

- Na verdade, isso não é meu departamento - interrompe o gato - O mais importante é...

O bichano pula numa mureta próxima e continua a sorrir e balançar a cauda.

- ...saber que nada à sua volta é inocente. Nem mesmo as histórias que te contam ou os filmes que você vê.

- Até mesmo a fantasia é preparada pensando em mim?

- Exatamente para que você acredite ser apenas fantasia - continua o bichano, enquanto se lambia - Para começar...por que você achou tão estranho entrar nesse mundo? Não é porque sua razão não conseguia aceitar um universo conspirando contra você? Mas aqui estou eu...mostrando que gatos falantes são reais.

- Na verdade, ainda duvido que tudo isso seja real...talvez eu esteja ficando louca...

- Somos todos loucos aqui - completa o gato - Se você entender loucura como não aceitar a mesma razão que você acredita.

Monalisa esperava uma resposta parecida. Ainda era muito difícil engolir tudo aquilo.

- Então devo admitir que as leis da física e da ciência são todas mentirosas e que as fantasias sejam reais?

- Não exatamente - responde o gato - Na verdade, você precisa começar a perceber que as fantasias podem ser reais. Elas podem ser, mas não quer dizer que serão sempre. Depende muito do que é permitido.

- As regras do Labirinto, não é?

- Sim. O Labirinto pode mudar as regras a toda hora. E isso só depende de você. Afinal, Alice, você é a única que pode ativar os eventos.

- Dá pra parar de me chamar de Alice? - bronqueia Monalisa.

- Desculpe. Mas o que posso fazer se você é a Alice? - responde o bichano.

A garota conclui rapidamente que conversar com qualquer tutor ativado do Labirinto pode ser angustiante, mas precisava passar por isso se quisesse sair do Labirinto, ou País das Maravilhas, ou seja lá o que fosse.

- Você falou de metáforas agora pouco, não falou? Que outras metáforas o Labirinto pode usar?

- Bem, como você já deve saber, os sonhos são a maneira mais direta do Labirinto se comunicar com você - explica o gato - No entanto, a sua presença no Labirinto sempre esteve estampada na sua cara, há muito tempo...você apenas não conseguia enxergar.

- Do que está falando?

- É o que eu disse...o Labirinto sempre se mostrou para você mas de tal forma que nunca fosse descoberto. Como? Através de todas as histórias que sempre te contaram.

- Difícil de acreditar. Como cada filme, cada livro e cada episódio que vi podem refletir alguma coisa dessa loucura toda?

- Bem, você já ouviu falar de Joseph Campbell?

Monalisa faz que não com a cabeça.

- Foi um estudioso do século passado que desenvolveu uma teoria chamada "A Jornada do Heroi". Ela diz que todo mito ou boa narrativa, no fundo, segue um arquétipo, um tipo de roteiro universal. O protagonista, ou heroi, é iniciado em alguma aventura, passa pelas mais diversas situações durante essa jornada e, por fim, termina a história com um objetivo cumprido ou, senão, pelo menos diferente de quando iniciou. São as três etapas: Partida, Iniciação e Retorno. Não parece familiar?

-Espere, se eu me colocar no lugar do heroi...

- Hihi. Você é mesmo inteligente - elogia o gato - Exatamente. Não importa se eu te chame de Alice, Chapeuzinho Vermelho ou Hércules. Você é esse heroi em uma jornada, mas nunca ninguém disse que você poderia ser a protagonista de uma história, não é?

- Isso soaria meio egocêntrico - comenta Monalisa.

- Hehe. Claro. Você sempre foi educada para acreditar que era igual a todos. Nunca passou pela sua cabeça ser o centro do mundo assim, não é? Exatamente o que queríamos...mantê-la num cotidiano, sem nunca pensar em algo do tipo. Todas os contos e narrativas foram criados para que você sempre acreditar que nada aquilo poderia ser real. Fadas, bruxas, gênios da lâmpada, animais falantes...tudo isso foi colocado como falso e fantasioso para você preferir permanecer cada vez mais mergulhada no Labirinto.

- Mas eu acabei descobrindo a verdade do mesmo jeito - rebate a garota.

- É. Você acabou ativando o evento inicial. Foi uma entre várias opções...você mudou o caminho da escola, mas poderia ter seguido um Coelho Branco. Os eventos podem ser ativados das mais diversas formas. Você poderia ter passado a vida inteira sem ativar o evento inicial ou ter ativado um bem antes. Infelizmente, você acabou ativando e escolhendo viver do jeito mais difícil. Mas que poderia continuar com uma vida tranquila, poderia.

- Vida tranquila e falsa, não é? Isso é o que vocês queriam...nunca me contar a verdade? - indagou Monalisa - Mas por quê?! Por que vocês querem tanto me enganar? Por que vocês querem tanto esconder a verdade de mim?

- Hihi...bem, eu não tenho permissão para dizer isso - responde o gato - Você terá que descobrir por si mesma e continuar perambulando pelo Labirinto.

- Então...sou mesmo a Alice perdida no País das Maravilhas - balbucia a garota, lembrando de seu vestido azul e avental branco do sonho - Mas...é só isso que você tem para me dizer? Na história, o gato de Cheshire dava alguma pista.

- Claro - responde o gato - No entanto, o grau de dificuldade começa a aumentar a partir de agora.

- Como assim?

- Agora você terá que escolher entre dois caminhos - prossegue Cheshire.

- Quais? - pergunta a garota.

- A opção da direita - o gato levanta a pata direita - Levará você ao Mestre dos Relógios. Já a opção da esquerda...levará você ao Mestre das Chaves.

- Mestre dos Relógios...e....Mestre das Chaves? - repete Monalisa - Qual deles devo escolher?

- Isso é algo que você mesma terá que descobrir. Mas, posso apenas dizer que eles serão seus próximos tutores - responde o gato.

- Como saber quem é o certo? - Monalisa pensa alto, com a mão no queixo - Não posso me encontrar com os dois?

- Inevitavelmente, você encontrará um deles primeiro...afinal, eles não costumam tomar chá juntos - responde o gato - E dependendo de quem encontrar, pode atrasar ou adiantar sua jornada.

- Como sempre - fala Monalisa - E imagino que você não irá me contar como seria esse atraso da minha jornada, não é?

- Adoraria, mas só tenho permissão de dizer o que está dentro das regras desse evento. Como diria um amigo meu... o que não é proibido, é permitido

- E como assim opção da esquerda e da direita? - ela faz um último questionamento - Onde vou tomar essas decisões?

- Infelizmente, eu já disse tudo que tinha para dizer - termina Cheshire - Agora, você terá que descobrir por si mesma. Mas pode ser bastante divertido.

- Divertido? Estamos falando da minha vida!

- Hihi. Não seja tão dramática. Como eu disse, você deveria sorrir mais...fica muito mais bonita desse jeito.

Nisso, ela percebe que Cheshire estava começando a desaparecer. Começando pela cauda, depois a parte de trás do corpo, ficando apenas a cabeça.

- Bem, o evento está acabando e o espaço restrito sumindo - ele continuava a falar, mesmo com sua cabeça sumindo - Foi um prazer conversar com você, Alice.

Tudo que sobre dele é o sorriso, a última coisa a desaparecer. Exatamente como na história de Alice. Monalisa se vê ali, parada diante de um muro, com ainda mais dúvidas do que todas aquelas que já possuía.

"Todas as histórias fantasiosas...foram feitas fantasiosas de propósito para me prender no mundo físico e ignorar a fantasia. Tudo só para me impedir de tentar sair do Labirinto...afinal, por que querem tanto me esconder a verdade?", pensa a garota, até que, alguns instantes depois, ouve um miado atrás dela.

- Cheshire? - ela se vira para trás, mas vê apenas o gato preto comum, sem nenhum sorriso escancarado. O evento tinha mesmo acabado.

- Miau? - mia o gato, parecendo ignorar tudo que ocorrera até então.

- Bem ou mal, acho que devo te agradecer - diz Monalisa, tirando da mochila um biscoito que guardara do lanche e jogando para o gato que corre para comê-lo - Mas agora sou só eu de novo, não é?

Ela acaricia o gato, enquanto ele comia o biscoito rapidamente. O mesmo gato que sabia tudo sobre ela. Nem mesmo os animais eram inocentes. Precisava sair logo daquele lugar.

"Até onde vai a toca do Coelho Branco?", ela pensa, ao se levantar e começar a caminhar de volta para casa. Quais serão os próximos eventos?