Perdida no Escuro

Caminhando entre a brisa


O sol da manhã se transformara numa luz ardente ao meio-dia, o sossego tomou conta da rua e tudo que eu podia ouvir era o canto dos pássaros pelas árvores ali perto.

Derry estava sentado perto de mim no degrau da fachada dum prédio, mas sua mente ainda aparentava estar distante. Ele soava demais, vi suas mãos trêmulas, estava ofegante e certamente muito cansado.

- Você está bem? – Perguntei ao me aproximar para acariciar a lateral de seu rosto, notei que a face dele fervia, entretanto, o calor do sol não era para tanto a ponto de avermelhar-lhe o rosto.

- Estou, é que eu fiquei as últimas horas jogando futebol com uns amigos na aula de educação física da escola...Acho que fiquei tempo demais debaixo do sol. – Bocejou alto colocando a mão na frente da boca – Nossa, que cansaço!

- Tudo bem, deite-se aqui, você está mesmo precisando de um descanso. – Ele deitou sua cabeça em meu colo sem debater, eu acariciei-o enquanto ele “caía” no sono, depois disso o tempo passou tão depressa...No momento em que Derry abriu s olhos, o sol já tinha sido encoberto por algumas nuvens, mesmo assim, eu via pequenos raios de luz do outro lado da rua, as brisas passavam por nós frequentemente, estava frio.

Derry sorriu e levou sua mão direita até a minha mão que estava sobre seus cabelos a lhe acariciar e entrelaçou-as, a mão dele estava gélida, quando ele tocou na minha eu senti até um arrepio.

- Há quanto tempo estamos aqui? Acho que já é hora de você voltar para casa. – Resmungou ele enquanto bocejava. Minha vontade contra-dizia tudo o que ele falou, então, eu ignorei-o e me mantive com cara de sonsa.

- Espero que tenha dormido bem, mas acho que você precisa vestir um casaco, está muito frio agora, não quero que pegue um resfriado. – Foi a maneira mais fácil que eu encontrei para mudar de assunto, todavia, eu também estava preocupada com o bem estar dele, o Derry podia ser cercado de várias qualidades, porém, ele era muito “largado” com si próprio. Ainda sim, ele não se importou, deu um sorriso e utilizou a tática da bajulação para fugir desse assunto.

- Não, não estou com frio. Perto de você eu me sinto sempre aquecido. – A arte de ser cínico – Logo o sol vai se pôr e vai anoitecer, acho que devemos ir para casa... – Ele se levantou rapidamente e estendeu sua mão para me ajudar a levantar. Ele parecia melhor, e creio que isso bastava.

- Eu queria ficar aqui com você eternamente. O silêncio dessa rua me acalma e a sua presença me causa uma alegria natural e espontânea que ninguém mais consegue provocar, por que temos que abandonar tudo isso e voltar para a realidade? – Tentei argumentar com ele, insistir e continuar tentando fazê-lo ficar, como uma criança teimosa e um tanto burra, contudo, eu sabia que não ia adiantar.

Derry se aproximou de mim e sussurrou em meu ouvido:

- Não precisamos ir embora agora, podemos continuar conversando, só preciso que seja breve. – Ele deu alguns passos para trás e ficou encostado num carro estacionado junto a calçada.

- Sei lá. Não sei bem o que tenho pra dizer, só queria ficar mais alguns minutos com você, não é questão de tempo, é de companhia. – Burra! A primeira vez que meu esforço dá certo e eu esqueço completamente as palavras que cairiam bem naquele momento...Talvez eu nem tivesse um motivo definido, era apenas por capricho que eu queria nos manter ali.

- Bem... – Ele ergueu seu braço e deslumbrou seus olhos ao olhar as horas no seu relógio de pulso – Escute, tenho algo realmente importante para fazer, podemos ir agora? – Dessa vez, ele estava impaciente, seus movimentos expressavam sua inquietação, se ele tinha um compromisso, não seria eu que o atrapalharia...Assenti com a cabeça e ele me acompanhou rapidamente pelos caminhos estreitos daquela rua até virarmos no canal, aonde seguimos reto faltando pouco para ele desviar para o outro lado.

- Posso fazer uma pergunta? – Ele parou e disse isso antes de atravessar para o outro lado.

- Claro – O quê esperar da caixinha de surpresas que é a mente desse menino? Vamos ver...Esperei ansiosa.

- Por que você quase sempre escolhe aquela rua para nos encontrarmos? – Ele ficou atento à resposta, me olhou fixadamente e esperou imóvel.

- Sabe, na primeira vez que passei ali me senti num lugar completamente desconhecido, afastado de qualquer lembrança atormentadora e embaraçosa. Desde então, costumo passar frequentemente por lá para esquecer dos desastres da minha vida e me sentir mesmo fora da realidade. – Ele não desviou a atenção nenhum momento sequer, parecia que se encontrava na parte mais eloquente e havia se perdido nas dezenas de palavras, colocando a imaginação a postos e obviamente, interessado. Ele continuou imóvel e esperou que eu continuasse, como será que ele sabia que eu não havia terminado... – A falta de iluminação, a escuridão dos cantos, o pouco movimento, o conjunto de casas e edifícios espalhados pelas quadras...Embora eu também goste das ruas vizinhas, aquela é a que me marca mais, o centro, o que gira em torno da minha amnésia momentânea e o pico do devaneio, me desperta todos esses estranhos momentos de prazer repentinos e por incrível que pareça, a sensação não muda, estou sempre confortável por lá.

Derry ficou meio distraído enquanto ouvia e demorou alguns segundos para revirar seus olhos e lembrar do que iria ter que fazer, quando reagiu e percebeu que estávamos como duas estátuasparou de refletir consigo mesmo, deu um meio sorriso, disse tchau e finalmente atravessou a rua com um andar esquisito e lento. Eu continuei o caminho sozinha, devaneios também acabam depois de um certo tempo.

Eu cheguei a rua escura e deserta de sempre e olhava para a lua para que ela me guiasse a Derry e parece que funcionou.

Avistei Derry e seus amigos, eles estavam guardando os instrumentos no estúdio, fiquei encostada na parede, escondida numa sombra perto de uma árvore observando Derry. Quando todos fecharam o estúdio e tomaram seu rumo, ele veio falar comigo. Provavelmente, ninguém sabia da minha existência e o nosso relacionamento era mais um dos segredos de Derry, como muitos outros que ele mantinha para esconder sua antiga vida.

Derry se aproximou como uma suave brisa quase imperceptível e me segurou pela cintura, cobrindo-me do frio intenso daquela noite ao me envolver confortavelmente aquecida em seus braços. Segurei as mãos dele enquanto meu sangue pulsava enlouquecidamente dentre as veias, o meu coração batia de forma descontrolada assemelhando-se a uma bomba ou o tic-tac do relógio.

Olhei novamente para a lua e depois para o conjunto de estrelas no céu, parecia um desenho coberto com porpurina cintilante. A brisa bateu e carregou com ela algumas folhas da árvore, Derry me segurou mais forte e colcou sua cabeça acima de meu ombro.

- Senti sua falta, agradeço por me dar o prazer de recebê-la aqui de noite...À luz da lua. O céu está maravilhoso, creio que amanhã será um belo dia! – Derry estava impregnado de uma felicidade curiosa...Certamente convencido a me fazer sorrir, e eu estava encantada com suas palavras e o seu jeito carinhoso e romântico.

- Se eu tivesse direito a um desejo...Gostaria que a noite nunca terminasse, assim poderíamos ser iluminados pelo majestoso brilho da lua eternamente e juntamente desfrutar do brilho desses milhares de estrelas que se encontram absurdamente radiantes hoje. Só o que pretendo ouvir agora é o intenso silêncio dessa rua para apreciar o som da sua voz murmurando ao redor de meus ouvidos. – O rosto de Derry corou abrindo um imenso sorriso em sua face, quando o fitei quase me perdi no seu olhar penetrante nauseada com tamanha efervescência com que este se encontrava, mas logo ele desviou o olhar e voltou ao seu jeito tímido e ligeiramente lisonjeado com o que eu falei anteriormente.

- Os dias por aqui costumam ser iguais e rontineiros, talvez um dia eu possa lhe apresentar as mais incríveis e surpreendentes regiões do planeta, mas só se você quiser... – Pelo tom de Derry, ele planejava algo grande, uma verdadeira viagem inesquecível com cenas que eu jamais vira, do modo como ele disse, a minha vontade se manifestou rapidamente e naquele instante, eu senti vontade de largar tudo e fazer exatamente isso, porém, eu estava certa que ainda demoraria muito para organizados algo dessa grandeza.

- É claro que eu adoraria fazer isso!Pode ao menos me contar quando iremos? – Minha voz saiu com mais euforia do que eu planejava, num som quase rouco e desesperado.

- Não sei ainda...Mas vai acontecer um dia, eu garanto. – Derry e eu começamos a caminhar lentamente, todas as lojas e estabelecimentos estavam fechados, já era tarde, mas para mim não fazia diferença desde que eu estivesse com Derry.

Nós passamos por algumas ruas muito escuras, onde encontravam-se postes apagados e uma escuridão assustadora, meu corpo todo formigava de medo.

O que antes era uma leve brisa se transformou numa forte ventania que levava consigo a poeira e movimentava com força os galhos de várias árvores, estava muito difícil seguir caminho contra o vento, então, viramos na primeira rua e assim, pegamos um atalho para chegar a casa de Derry.

Logo quando chegamos lá, ele se entou na varanda em sua cadeira de balanço e me apresentou o cachorro dele: Spike, um cão de raça Beagle com pelagem marrom caramelada e branca, com manchas escuras, pêlo curto. O cachorro dele corria para todos os lados agitado, parecia feliz por um dos donos ter chegado em casa.

Me aproximei com cautela para junto de Derry, eu temia queSpike me estranhasse, mas tudo que ele fez foi ficar farejando meus tênis e a minha calça, provavelmente, estava sentindo o cheiro do Ted (meu poodle), enquanto eu olhavaDerry, senti a sensação de algo quente e asqueroso tocando meus dedos, era Spike de novo, me lambendo. Depois, só vi o cachorro trotando para o canto do quintal, indo se deitar.

- Não se preocupe. Spike é um cachorro muito compreensivo, sabe lidar com pessoas estranhas, mas...Me fale de você, com qual objetivo você foi me visitar perto do estúdio?Tem algo importante a me dizer? – Havia começado o pânico de perguntas diretas de novo, as dúvidas mais frequentes dele sempre atacavam a parte que eu não planejava comentar, as piores lembranças...

- Não, eu precisava ver você pra me sentir melhor. Sabe aquele filme que eu combinei de ver com algumas amigas? Não deu certo, elas até me avisaram com antecedência que não iam...Então eu fui sozinha, é péssimo ficar numa sala escura cercada de estranhos congelando com o frio do ar-condicionado e entrar numa dor de cabeça infernal com os efeitos sonoros ensurdecerdores dos alto falantes. – Falar sobre aquilo me puxou uma tristeza e uma melancolia irritante, relembrar disso era só perda de tempo, dar mais algumas pontadas no meu peito dolorido cansado de receber tantas decepções em tão pouco tempo.

- Hum, eu queria dizer: “podia ser pior” mas do que ia adiantar? Eu sei que é terrível criar ilusões de que o dia será divertido e acabar entediado num canto jogado sofrendo pelo abandono dos outros, olhe pelo lado bom: amanhã você vai poder reinventar o seu dia, fazer algo de útil talvez, sempre existem mais chances. – Otimismo era algo que me faltava na maioria das situações, graças ao apoio de Derry eu podia conquistar alguma esperança, mesmo desacreditando que o otimismo fosse a única saída para se resolver tudo.

- Nem tudo foi chato, eu comprei um jogo novo após ficar andando por umas ruas estranhas por aí, teve um momento que eu achei que estava meio perdida, para você ver como eu não conheço a minha própria cidade... – Ele riu mesmo me vendo séria, depois parou e voltou ao assunto com uma certa ironia.

- Comprou outro jogo do GTA(Grand theft auto)? – Por mais que eu já tivesse sido viciada nesse jogo, os tempos mudaram, agora eu tinha um estilo diferente, completamente diferente para ser sincera mas não menos intrigante, mudanças são inevitáveis, mas algumas coisas são estranhas, até para mim.

- Hã?Tá louco?!A minha nova modinha agora é Guitar Hero, cansei de ficar correndo pelas ruas de Miami matando pessoas e atropelando velhinhas lerdas sem ter ao menos um motivo, prefiro fingir que sei tocar guitarra com aquele barulho estonteante e pregar meus olhos nos botões coloridos que aparecem na tela, sem esquecer de cansar meus dedos apertando enfurecidamente o joystick exausta de tanto jogar. – Enquanto eu falava minhas asneiras, Derry colocou seus dedos na lateral de seu rosto suportando minha tagarelice com seus ataques de risada silenciosos, mesmo com dificuldade ele mantinha a classe, coisa que eu raramente fazia.

- Concordo que é muito melhor tocar uma música do Jimi Hendrix do que metralhar um cara duma gangue inimiga, aliás, em que nível você joga? – Momento pagação de mico, abafem que eu ainda jogava na incrível lerdeza do médio, me acostumei em querer abalar nos níveis de amadores.

- É...bem, eu jogo no médium. – Como eu previa, ele fez uma careta debochada se gloriando por algo, que provavelmente seria sua habilidade com esse jogo num nível mais avançado.

- Ainda? Esse nível é muito chato, eu jogo no hard, é bem mais dificil mas também é muito mais delirante, você deveria tentar um dia. No começo é um saco pra se acostumar com o maldito botão laranja mas depois...Passa a ficar interessante. Exceto pelas sequências, é impossível acertar todas elas vindo com tamanha velocidade.

Continuamos trocando conversa sobre o jogo durante um bom tempo, muitos minutos se passaram, quem sabe horas, não sei ao certo, como dizem: “a noite é uma criança”, eu podia ouir um grilo, a cor do céu parecia mais sombria, o movimento da rua desaparecera assim como as pessoas que estavam por lá até agora pouco.

- Dear, it’s eleven p.m. You have to go sleep, I don’t wanna look you tired in the school tomorrow, are you listening me? (querida, são onze da noite, você tem que ir dormir, eu não quero ver você cansada na escola amanha, você está me escutando?) – Quando ele falava em inglês era dificil discutir, minhas únicas opções eram sim e não, e eu não ousaria optar pela minha péssima pronúncia e um sotaque mais que ininteligível que eu mantinha.

- Sure, you are right, I’ll go to home, you come with me? (claro, você está certo, eu vou para casa, você vem comigo?) – O balanço da cadeira cessou e Derry se levantou cheio de disposição, seus olhos pesavam sonolentos, entretanto, seus passos eram curto e apressados, precipitou-se em abrir o portão para garantir que não houvesse possibilidade de eu tentar alongar nosso papo, a sagacidade dele me impressionava.

- Yes, honey, I couldn’t leave you alone at this time, the street is so dangerous, you know. (sim, eu não poderia lhe deixar sozinha a essa hora, a rua é muito perigosa, você sabe) – Passamos pelo portão e eu aguardei enquanto ele o fechava ouvindo o ranger do portão enferrujado, sem razão alguma eu dei tchau ao Spike, que nos fitava com um olhar tristonho da sua casinha, prestes a adormecer subitamente, por fim, o cansaço o venceria, como a todos nós.

Derry optou por caminhos mais iluminados do que os que pegamos ao ir para sua casa, de certa forma, estavam todos igualmente desertos, não menos assustadores sem o vento, a lua continuava ilumnando o céu e a tudo que a cercava, em cada rua por qual passávamos, ela era a única coisa que não mudava de lugar, nos seguia como se brincassemos de esconde-esconde, em questão de quinze minutos, chegamos à frente de meu prédio, notando as poucas luzes acesas por dentro das janelas vizinhas.

- Eu me diverti muito com você hoje à noite. – Comentei antes de entrar.

- Eu também. Durma bem, amanhã será um longo dia...Espero que tenha gostado do passeio, apenas me prometa que não irá seguir por aqueles caminhos escuros de noite sozinha. – Ele ficava tão fofo quando mostrava preocupação, chegou um passo a minha frente para acariciar meu rosto elevando sua mão do meu queixo as minhas bochechas e se inclinou para beijar minha testa afastando-se rápido depois.

- Certo, vou tentar evitar aqueles caminhos. Mas pretendo te convidar a outros passeios como este quando estiver disposto a acompanhar meu ritmo, você é meio devagar. – Eu gostava de provoca-lo vez ou outra, era meu passatempo predileto. Só admito que não é fácil se submeter ao meu ritmo em passeios, eu era bastante veloz, para não afirmar que parecia que eu corria ao andar.

- Não, o problema é que você anda muito mais rápido do que a maioria das pessoas, não é de se estranhar que você seja magra, mas se você quiser...Vou ser mais rápido da próxima vez. – Um brilho estranho tomara conta dos olhos de Derry, eu via a malícia de perto, como se ele fosse me devorar, mas eu não temia, ao contrário, eu adorava vê-lo sedento por mim, ou por qualquer outra coisa que ele procurava em meus olhos, me imolizava inteira com aquele olhar penetrante e me hipnotizava até que caíssemos em si meio envergonhados com essa estranha reação provocada pela atração que se rebelara em alguns momentos. O chato é que ele nunca passava dos limites, e eu já esperava por isso há algum tempo, decidida que um dia ele não se recusaria a seguir seus instintos, sei explorar suas fraquezas, e em mim existia alguma.

- Pode ser. Então tchau.

- Tchau – Ele se virou e deu as costas a andar vagarosamente olhando para o chão, parecia tão gracioso, meio desnorteado também, quando o cansaço vinha, não havia como se lutar contra ele.

Eu estava de novo em casa e confesso que nunca me senti tão apaixonada por Derry como agora. O vício tomou conta de meu corpo e estava completamente fora de controle, tanto que eu dedicava boa parte de minha vida a ele.

“Quando o frio tomar conta de meu corpo, terei sua voz para me aquecer e o sangue que corre em minhas veias ferverá junto com meu coração que estará sempre pulsando fortemente por você”