Pequeno grande amor

Capítulo Único.


O corpo de Marina repousava sob a água já fria da banheira, onde a camada fina de espuma era a única a cobrir seu corpo nu. Vanessa continuava sentada em sua cadeira habitual, observando atrás dos cílios a nuca da fotógrafa que parecia prestes a adormecer por ali.

— Marina. — Chamou num fio de voz, a fim de não assustá-la.

— Shh... — Ela levantou a mão, reafirmando o que queria. — Agora não, Vanessa.

A ruiva inspirou irritadiça, mas permaneceu em silêncio.

Há dias Marina repetia os passos, num ritual tão sôfrego quanto seus sentimentos pela atual ex-assistente. Suas próprias palavras ainda esgueiravam pelas lacunas que ela mesma não fez questão de fechar. Talvez porque não podia, ou não queria.

Um suspiro carregado de significados e mesmo assim tão vazio deixou os lábios da fotógrafa. Sem ao menos insistir, lágrimas escorreram pelos olhos fechados de Marina.

— Você pode pegar meu celular? — Marina permaneceu imóvel, dando liberdade para que suas lágrimas escorressem mudas por seu rosto.

Vanessa não precisou de maiores instruções para fazer o que lhe fora pedido.

Não satisfeita, Marina continuou:

— Me deixe sozinha.

— Mas, Marina...

— Por favor, Vanessa — Insistiu. — Preciso de um tempo sozinha.

A sócia continuou onde estava, refazendo a frase várias e várias vezes em sua cabeça.

— Aproveita o fim de semana — Balançou a mão em direção a porta do banheiro, como quem indica a saída. — Estou te dando folga. Avisa a Flavinha também.

— Não to gostando nada disso, Marina! — Exclamou, com seu tom sempre tão áspero e carregado.

Pela primeira vez desde que estavam ali — e tendo como referência a temperatura baixa da água, podia afirmar que há muito tempo — a fotógrafa abriu os olhos. Um de cada vez, como quem busca paciência em movimentos tardios.

Os olhos amendoados caíram sobre a figura esguia de Vanessa, que havia levantado pela primeira vez da cadeira que se fazia desconfortável, parada de frente a ela, como se fosse atacá-la a qualquer momento.

Marina desviou os olhos para a porta e os descansou ali.

— Não vou fazer nenhuma besteira... — Os ombros de Vanessa cessaram. Ela quase pôde ouvir um suspiro aliviado, então acrescentou:

— Ainda. — Os lábios levantaram em deboche, igualmente aos olhos cínicos.

A ruiva rolou os olhos, farta de todo aquele joguinho que Marina insinuava para ela.

— Quer saber? Eu tô precisando de uma folga mesmo. Sair desse ambiente tão pesado que você e a Clarinha fizeram questão de criar — Ela reclamava, frisando ironicamente o apelido da ex-assistente do estúdio. Já estava na porta do banheiro quando voltou para um último recado. — E você não esquece que segunda temos ensaio marcado.

Marina voltou à posição que estava, e antes de mergulhar a cabeça na água cantarolou:

— Eu sei, Vanessinha...

Mas Vanessa já não estava mais ali, para o alívio de Marina.

[...]

A ruiva desceu as escadas como um furacão, resmungando e proferindo palavrões ao vento. Flavinha, que até então separava o material para segunda-feira suspirou, imaginando o que havia acontecido.

— Deixa eu adivinhar...

Começou, mas Vanessa nem sequer parou para ouvi-lá. Pensou em ir atrás da amiga, mas seus pensamentos foram interrompidos pelo celular que apitava já esquecido em uma cadeira. Era uma ligação de Marina. Estranhou, mesmo assim resolveu atender.

Flavinha, a Vanessa já foi?

— Já. — Suspirou. — Como um furacão, diga-se de passagem.

Hum... — Murmurou despreocupada — Até segunda passa. — Flavia não viu, mas teve certeza que a chefe estava dando os ombros. — Preciso de um favor, que fique só entre nós.

A linha ficou muda por alguns segundos. Do outro lado, Marina pôde sentir a respiração de Flavinha pesar.

Hesitou, então a voz rouca chegou aos ouvidos da fotógrafa:

— Claro, pode falar.

Vai pra cozinha. — A morena franziu o cenho, mas fez o que lhe foi pedido. Ao avisar que já estava no ambiente, Marina continuou — Em cima da mesa tem um catálogo de hotéis — Flavinha olhou ao redor, pegou o catálogo e confirmou. — Na última folha tem um número marcado à caneta, é do François.

— François...?! - Balbuciou, como se o nome pudesse levá-la até aquele homem. Passou os dedos pela caligrafia desleixada, então uma luz acendeu atrás de sua cabeça. — Espera! Isso é o que eu to pensando?

Humhum. — E lá estava o tom despreocupado, no entanto que preocupava Flávia. — Diga a ele que Marina Mierelles quer uma garota– Fez uma pausa. — E que o nome dela essa noite é... Clara.

— Marina, você tem certeza que é uma boa ideia?

Eu mesma ligaria, mas… — Deixou a questão no ar, fazendo a outra refletir quando não obteve a resposta que pediu.

Flavinha ainda esperou, na esperança de que a fotógrafa desistisse. Quando não recebeu qualquer indício de que ela o faria, Flavia confirmou que ligaria e desligou.

Teve ímpetos de subir até o quarto da fotógrafa e lhe fazer voltar ao juízo, mas voltou para o estúdio com o catalogo ainda aberto na última página. Passou os olhos pelo número uma segunda vez, e resolveu discar… para a única Clara que Marina realmente desejava.

Clara atendeu no terceiro toque:

Flavinha, que surpresa! — Clara exclamou. Estava feliz em ouvir a voz de alguém daquele estúdio. — Quanto tempo.

— Pois é… — Por um instante Flavinha esqueceu o motivo da ligação. — Você sumiu.

As coisas estão meio complicadas aqui em casa — Suspirou, trazendo a fotógrafa pra realidade.

— Falando nisso, talvez as coisas estejam complicadas por aqui também. — Torceu o nariz em uma careta.

O que aconteceu? — Perguntou com o tom de voz já preocupado.

— Nada, é só que…

É a Marina? O que aconteceu? Tá tudo bem?

Foi bombardeada pelas perguntas da dona de casa. A fotógrafa franziu a testa enquanto procurava as palavras certas. No outro lado da linha, era possível ouvir a agitação nos passos de Clara.

— Não é nada grave, Clara, pode ficar tranquila.

Nada grave? Ai meu Deus, pra você ter me ligado deve ter acontecido alguma coisa. Diz Flavinha, o que é que ta acontecendo?

— Marina precisa de você aqui, Clara! — Exclamou eufórica, abandonando o tom sereno habitual. — Há dias ela se enfia naquela banheira e fica lá, por horas a fio, proferindo sobre a vida enquanto toma garrafas e mais garrafas de vinho e uísque.

O coração de Clara apertou. Não queria deixar a fotógrafa à mercê. No entanto, havia ainda muitas pendências do lado dela. Não podia correr para os braços de Marina enquanto suas questões não se resolvessem.

Foi com esse pensamento que ela respondeu:

Flávia, eu não acho que seja uma boa hora…

— Por que, Clara? Você mesma me contou que seu casamento com o Cadu acabou.

Mais uma vez houve silêncio da parte de Clara.

Semanas atrás ela encontrou Flávia no Galpão Cultural, e acabou deixando escapar que ela e Cadu estavam se separando. Pediu segredo, já que nem todos seus problemas resumiam ao casamento frustrado. Estava se habituando a nova vida, aproveitando ao máximo o tempo que tinha com o filho e contando aos poucos para a família — principalmente à dona Chica — que pretendia procurar Marina para que enfim se acertassem.

Eu já chego aí. — Informou.

Mesmo que a outra não pudesse ver, Flavinha sorriu. Com sua voz já estabilizada, a fotógrafa agradeceu e pediu que Clara não comentasse a chefe sobre a ligação.

Satisfeita com o que tinha conseguido, ela jogou o catalogo no lixo mais próximo e caminhou para fora da mansão.

Já a caminho de Santa Teresa, Clara repassava na cabeça o que diria a Marina quando chegasse lá. Uma música calma ressoava através do rádio, que em nada condizia com a ansiedade que Clara estava sentindo.

[…]

Ainda na banheira, Marina alcançou a garrafa de vinho há muito esquecida por ela. Colocou o restante do líquido na taça e o degustou antes de virar de uma só vez. A água gelada já a incomodava o suficiente, por isso a fotógrafa levantou e alcançou o roupão.

Jogou-se no meio da cama, as pálpebras começando a pesar. O relógio marcava pouco mais de meia-noite. Pensou por um instante em descer e cancelar o pedido que fez a Flavinha, mas quando a garota chegasse efetuaria o pagamento e a dispensaria.

Piscou mais forte dessa vez. Sem que percebesse já estava sendo embalada pelos braços de Morfeu.

Clara passou pelos portões da mansão sem maiores problemas. Ainda na entrada o segurança informou que Marina não tinha saído, e se gostaria que a mesma fosse informada de sua chegada. Clara negou. Seu íntimo preferia que fosse uma surpresa.

Estacionou o Jipe ao lado do carro de Marina e desligou. Por segundos contemplou o silêncio do lugar, que só não era total devido ao farfalhar de algumas árvores e o canto dos pássaros. Notou que todas as luzes internas da mansão estavam apagadas, estranhou Marina estar dormindo tão cedo. Por um momento pensou em retornar para o Leblon e esperar o dia amanhecer, mas as palavras eufóricas de Flávia martelando em sua cabeça não lhe deixaram levar à chave a ignição.

Num ímpeto, Clara desceu seguindo para a área da piscina, onde sabia que a porta nunca ficava fechada. Ainda teve tempo de apanhar algumas flores do jardim antes de adentrar totalmente na mansão. Tateou a parede a fim de ligar o interruptor. Seus olhos logo alcançaram os primeiros degraus da escada que dava acesso ao segundo andar, consequentemente até o quarto da fotógrafa. Não precisou que sua mente vagasse até o apelo de Flavinha para que enfim fizesse o caminho para o segundo andar.

Sentia-se uma adolescente, da mesma forma quando esteve ali pela primeira vez.

— Ai Marina… — Deixa as palavras saírem num suspiro.

Levantou a mão livre na direção de seu queixo, a fim de bater na porta antes de abri-la. Deteve-se antes do primeiro toque. Aos poucos foi abrindo a porta. O corpo esguio da fotógrafa repousava no meio da cama, coberta apenas com um roupão. À medida que Clara aproximava-se, era preenchida com o típico frio na barriga.

Marina se mexeu na cama, fazendo Clara parar de súbito. A fotógrafa apenas trocou de posição, deitou de barriga para cima e elevou o braço direito acima da cabeça. Seu peito subia e descia numa respiração pesada. A ex-assistente que até então observava tudo de longe, mordeu o lábio ao ver um pedaço do vale dos seios da mulher tão exposto.

Ok, ela já havia visto Marina seminua na segunda vez que se encontraram e também na praia, quando a fotógrafa tirou a parte de cima do biquíni para fazer um topless. Encontrá-la deitada tão vulnerável fez Clara repensar.

Ela sentou na ponta lateral direita da cama. Teve ímpetos de acariciar a face da amada, mas não queria acordá-la. Desviou sua atenção para as flores amarelas ainda suspensas em sua mão, quase no mesmo instante o colchão pesou do seu lado. Ergueu os olhos surpresa, o par de olhos amêndoas de Marina lhe encaravam.

— Clarinha… — Sussurrou com a voz rouca, provavelmente pelos minutos de sono em que há pouco se encontrava.

Houve silêncio por parte da outra, tinha sido pega no flagra e já não sabia o que falar. Nesse meio tempo Marina apoiou o corpo nos cotovelos e sentou, ficando a poucos centímetros de Clara.

— Eu não queria te acordar. — Sussurrou de volta, como se tivesse mais alguém dormindo.

— Que surpresa boa! — Marina exclamou feliz. Inclinou o corpo para frente e num ímpeto abraçou Clara. A morena demorou um tempo para assimilar o corpo quente próximo ao seu, mas retribuiu o abraço na mesma intensidade.

— Senti tanto sua falta, Clara — Confessou a apertando entre seus braços. —, tanta.

— Me perdoa. Eu nunca quis ficar longe de você.

Estava sendo sincera. Ficar longe de Marina foi uma das piores — se não a pior —, decisão que pôde tomar durante toda sua vida. Por diversas vezes sentiu vontade de correr para Santa Teresa e se declarar para a fotógrafa, sendo interrompida ora por Cadu, ora por seus próprios medos e receios.

Os toques gentis dos dedos longos e esguios de Marina afagavam os cabelos de Clara. A primeira não respondeu nada, pois não era preciso. Jamais perdoaria Clara, porque não havia nada a ser perdoado. Ter a dona de casa no acalento de seus braços era o que precisava para ter o coração aquecido outra vez. Afinal, ela não esperava tanto por aquele momento para desistir agora.

Clara desfez o contato apenas para olhar a amada nos olhos. Marina mantinha a expressão feliz, seus lábios reprimiam e subiam num esboço de sorriso a todo momento. Clara buscou contato com as mãos de Marina, entrelaçando seus dedos sem desfazer o contato visual.

— Eu amo você, Marina Meirelles. — Disse baixinho, o suficiente para a mulher ouvir.

A fotógrafa sorriu. Aquele sorriso lindo que mostrava todas as vezes que via Clara.

Não precisou questionar ou pedir que ela repetisse. Sabia a partir dali, que Clara a escolheu para passar o resto da sua vida.

— Eu também amo você, Clarinha. — Declarou mais uma vez.

Marina segurou o queixo de Clara entre seus dedos. Os olhos amendoados carregados de desejo — aqueles mesmos olhos que flertaram com Clara desde o início — mantinham contato com os lábios rosados da amada. Sentiu Clara segurar seu pulso, mas dessa vez na intenção de puxá-la para perto e não afastar.

A respiração quente de ambas cessou quando Marina tocou os lábios de Clara com os seus. Ficaram assim por alguns segundos, antes da fotógrafa sugar o lábio superior da outra pela primeira vez. Clara gemeu com a sensação, então Marina entendeu como permissão para continuar. E foi o que ela fez.

As mãos de Marina esgueiravam nos lados de Clara, ora subindo, ora descendo, passando vez ou outra pela extensão de sua espinha. Clara por sua vez mantinha as mãos seguras na nuca de Marina, arranhando e puxando os fios de cabelo daquela região. Para a fotógrafa, os lábios da dona de casa eram como labirintos, onde ela precisava explorar todos os cantos que sua língua permitia chegar.

Clara ofegou, tendo que se afastar momentaneamente para respirar. Marina aproveitou a deixa para beijar o pescoço da amada, intercalando os beijos entre mordidas e chupões.

— Mocinha! — Clara advertiu, tendo como resposta uma risada. Marina deixou um último beijo no queixo da amada e se afastou.

— Desculpa. Eu não pude resistir — Viu Clara manear a cabeça timidamente, não pôde deixar de sorrir. — Dorme aqui comigo hoje?

— Não posso — As feições de Marina passaram de alegres para triste. Clara segurou seu rosto, na intenção de fazê-la olhar. — Deixei a Luiza tomando conta do meu bichinho, mas prometi voltar em menos de duas horas.

Marina pôs a mão sobre a de Clara, deixando um breve carinho ali.

— Eu entendo. — Disse já conformada. Seu rosto se iluminou outra vez. — Promete voltar amanhã?

— Todos os dias, meu amor. — Sussurrou.

A fotógrafa sorriu com a frase, selaram os lábios e Clara levantou, deixando a flor há muito tempo esquecida cair. Marina acariciou as pétalas delicadas e falou divertida:

— Acho que as conheço de algum lugar.

— Nem queira saber. — Riram.

Trocaram mais algumas carícias e palavras de carinho, então finalmente Marina deixou que Clara voltasse para o Leblon, com a promessa que voltaria no domingo à tarde.

Marina se jogou na cama da mesma forma que havia feito horas antes, mas dessa vez com corpo e alma mais leves. Estranhou nenhuma garota ter aparecido, tampouco fez questão.

Queria Clara e esta já havia estado ali, confortando seu coração com gestos tão simples quanto dizer: sou sua.

Marina sabia que a partir daquela noite sua história tomaria outro rumo. Feliz e sem fim.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.