Pequeno Príncipe, Grande Pássaro

Pequeno Príncipe, Grande pássaro


Aquele dia em especial não tinha amanhecido. Nem pudera; não era um dia comum. Na verdade, nem dia era, o sol já tinha deixado sua despedida com seu vestido amarelado brilhante de longa cauda rosada fazia horas. A lua, contudo, não compareceu. O Reino Wyndia, reino dos que nasciam filhos do vento, terra dos alados abençoados com a maravilhosa capacidade de voar, era alto, tão alto que muitos achavam que a ponta das maiores torres do castelo tocavam a palma dos céus. Muitos achavam que o vento saía de todos os quatro cantos do mundo apenas para divertir-se com as hélices de tamanho colossal dos moinhos de Wyndia, facilmente reconhecíveis mesmo à longas distâncias. O reino de Wyndia parecia belo, imponente e privilegiado, mas naquele dia, o reino estava sozinho.

Passos céleres e metálicos tomavam o corredor. A obstinação que a pressa trazia junto ao barulho estridente de ferro pesado podia ser notada do começo ao fim daquela ala que acabava com um par de portas imensas e criteriosamente trabalhadas em madeira rosada: era o quarto do príncipe. O autor das passadas se pronunciou, empurrando-as com ímpeto bélico do cavaleiro que era:

- VOSSA ALTEZA! - vociferou, percorrendo os olhos pelo suntuoso quarto, o mais modesto dentre os do membro da realeza, mas ainda exuberante e digno de um príncipe.

Aquele que, sentado placidamente, debruçava-se sobre o balcão da varanda era, sem dúvida, quem Vincent procurava, e nem o volume do sapato-polaina do cavaleiro tirou-lhe os olhos do cenário caótico que se curvava mais abaixo. Era fácil reconhecê-lo, mesmo que estivesse de costas, o curto sobretudo azulado reservado somente àqueles da realeza não enganaria Wyndian nenhum. Além disso, não havia ninguém em todo o reino com cabelos tão claros e dourados como ele, de uma boniteza singular. Irino era desses garotos que parecia terem sido roubados pela mãe de uma pintura surrealista e celestial, desses que não faziam esforço para terem admiração. Desses que pareciam perfeitos demais para viverem em um mundo fora de seus padrões, e por isso sempre tinha aquele mesmo olhar de quem era capaz de te ver, mas de não se importar. As asas que brotavam em suas costas esguias encontravam espaço pela fenda traseira da veste para ter a liberdade de voar quando e como bem quisesse.

- Vincent.... - sussurrou, quase sem emoção alguma. Explosões. Casas em brasa que dançava ao ritmo dos gritos histéricos de seus moradores. Mais explosões. O tilintar, não do cristal de copos brindando, mas de metal pesado em duelo. Urros de guerreiros. E explosões.

- Vossa Alteza, Sua Majestade ordenou-me que viesse protegê-lo. - a voz grossa e aveludada de Vincent resoou por baixo da viseira com a mesma força que sua lança já trespassara inúmeros corações em campo de batalha. Irino voltou a cabeça em direção a seu guarda-costas sem vontade, os olhos de um azul celeste digno de sonhos não conseguiram encontrar os dele. Vislumbraram somente, e tão somente, dois pontos igualmente azulados que a fresta do capacete pouco permitiu ver, reluzentes como os seus próprios. Fitou o chão, apático.

- O que está havendo...?

A resposta era óbvia, mas a inocência lhe dava esperanças. O medo pousou sobre as costas do loiro, exatamente sobre as asinhas róseas que furavam-lhe o sobretudo de tons claros; elas se recolheram. Vincent hesitou por baixo da armadura dourada e o silêncio adentrou pela varanda, nos poucos segundos em que as catapultas que cercavam o reino cessaram suas investidas. E então o cavaleiro deu continuidade ao diálogo - dirigia-se o príncipe, afinal, e mesmo não sendo o herdeiro direto e predileto do trono, devia-lhe satisfação e, principalmente, reverência - e tirou o elmo, revelando como poucas vezes na vida o rosto de contornos fortes de um homem que, ainda que já não fosse mais tão novo, conservava certa juventude e uma seriedade ímpar digna de um capitão de um exército. Poucos pêlos grisalhos tomavam conta da face e do queixo, bem como alguns fios sem cor já despontavam no alto da cabeleira farta e loira - claríssima como os primeiros raios de sol, claríssima como os cabelos de Irino. O nariz fino e geométrico se assemelhava ao de uma escultura renascentista, e os olhos...eram familiares. A viseira cedeu passagem à curiosidade desprevinida do pequeno príncipe: a face de senhor e vassalo nunca estiveram tão perto.

- Vossa Alteza, nós... - ele se agachou, a fala se perdeu junto ao olhar e encontrou-se com a raiva grave da voz. - ...fomos pegos de surpresa. Os reinos do Oeste montaram uma aliança contra nós na surdina.

As orbes de Irino ameaçavam inundar-se. O cavaleiro não permitiu. Seus polegares enxugaram dele as lágrimas antes, e as mãos, grandes e quentes, habituadas a portarem espadas e lanças, acomodaram desajeitadas o rosto pequeno do garoto. Acima de tudo, antes mesmo de ser um príncipe, era só um menino.

- Mas nós vamos vencer! Tenha fé em nós, Vossa Alteza, e não deixarei que nada te aconteça! - era mentira, Vincent sabia. Mas às vezes só a verdade não é suficiente. E o sorriso do cavaleiro deu a Irino a convicção de que precisava; o príncipe retribuiu. Fraco, mas sorriu de volta.

- É por causa dela...?

Vincent franziu as sobrancelhas, não compreendendo a dúvida.

- De Hereena. - prosseguiu, engolindo o choro e o sorriso murcho. Vincent nada disse. A cabeça confirmou as suspeitas de Irino. - Foi o casamento que...

- Vossa Alteza, receio não poder ficar mais. - o lamento interrompeu. Uma das mãos do cavaleiro andou até a testa, tirando a franja que vez ou outra caía sobre os olhos azuis de Irino. Quase como seu pai faria se não estivesse em campo de batalha. - Sua Majestade precisa de mim.

- Sim, eu sei.

Vincent o olhou uma última vez. Não havia uma lágrima sequer molhando o rosto. Ele havia crescido, já tinha quinze anos. Vincent não pôde evitar de sorrir paternal, cheio de orgulho. Não demorou, os gritos dos Wyndians lhe lembraram de seu real posto. Levantou-se, curvando o tronco o máximo que conseguia – o bom físico ainda não deixava que as costas sofressem o efeito dos anos – e pegou a mão fina do príncipe. Os lábios ásperos e ressecados amaciaram-lhe o dorso em uma mesura respeitosa. Em seguida, os olhos que traziam consigo as marcas da idade voltaram a refletir o céu rosado de fim de tarde. Vincent recobrou a postura; suas asas cobertas por um revestimento de ouro, bem como sua armadura, esticaram-se ressoando pelo quarto com a potência de um sino de igreja. O cavaleiro subiu na bancada da varanda, desembainhou a espada, escancarou os braços e despencou do alto. Em poucos instantes, sumiu entre os becos de Wyndia, minúsculos àquela altura.

- Vossa Alteza ... - uma voz feminina grave fora anunciada logo pelo fechar da porta. Irino reconheceu-a como sendo a Oráculo do Vento, uma idosa que as décadas trataram de deixar curvada e cujo rosto mostrava os beijos do tempo. Para qualquer desconhecido incauto, se trataria apenas de uma mulher muito velha, com um sorriso congelado na face que a dava ares carinhosos de vovó e um bom humor que a idade não destruiu. Para os Wyndians, ela era uma incógnita, um mistério que talvez nem a Realeza, com quem mantinha contato frequente direto e indireto, conseguisse decifrar. Sabe-se - ou ao menos conta-se - que vive em uma cabana de um cômodo apenas, feita de madeira, no coração da floresta vizinha, ao pé das montanhas do reinado, uma reclusão de baixa altitude contrária à paixão dos alados por altura. Ainda assim, Oráculo era hábil em ir e vir quando lhe fosse mais conveniente e onde bem quisesse, deixando para muitos a dúvida de como uma senhora de idade avançada conseguia ressurgir de tão longe e do nada mais rápido do que uma menina levada de 5 anos. Suas aparições, mesmo esporádicas, eram sempre repletas de significado, e seus motivos para largar temporariamente o isolamento só seriam revelados quando seu objetivo fosse alcançado - ou seja, tarde demais. Corre o boato de que Oráculo nada mais é que a alma do próprio vento...

- Desde quando está aí? - Irino indagou, espantado. A mão da velha, de dedos curtos e gordos mas ainda delicados, pousou sobre a bancada.

- Desde quando ele precisa que eu esteja. - ela respondeu, encarando impassível o vermelho vivo das labaredas que devoravam Wyndia. O vento soprou por entre os cabelos do menino, uivado mais alto do que os gritos em coro dos guerreiros no campo de batalha. Irino entendeu a mensagem. A sibila prosseguiu, despindo-se de cerimônias:

- São tempos difíceis...seu pai precisa de você.

- Precisa? Eu não posso sair do quarto, Vincent disse que...

- Vincent? - Oráculo soltou uma risada farta e animada, beirando a zombaria. - Menino, Vincent entende a língua das espadas, mas não a voz da brisa.

O vento uma vez mais concordou, agitando as barras do robe comprido dela. Ela saiu do quarto, acompanhada do farfalhar de seu traje e dos olhos curiosos do príncipe.

- Vai ficar aí parado? Esperava mais educação de você, minhas asas murchas não aguentam esperar tanto. - proclamou ilustrando o típico bom-humor. O garoto pegou o manto de cetim dobrado sobre a cabeceira da cama e se avizinhou da anciã.

Os corredores do castelo, inteiramente feito de mármore e esmeralda, pareciam bem maiores agora. O teto, como os de todos os andares, se situava bem acima do chão: não havia nada que os Wyndians amassem mais do que altitude, imponência, e isso era um fato que se refletia desde à escolha de erigir o glorioso reino-capital de Wyndia além das nuvens até detalhes mínimos como a arquitetura das casas, que priorizava tetos altos. O castelo, morada da família real, não seria exceção, construído para representar um refinado senso de estética colonial com um toque emotivo que parecia único aos wyndians. Havia uma macabra simetria sem igual das velas penduradas em suas paredes, que, embora acesas, não iluminavam mais do que o pequeno raio que se extendia cerca de 1 metro além do suporte. Tudo isso dava a Irino a sensação de ser tragado pelo grande negrume residente no fim da ala e o silêncio, que nem as passadas tanto do príncipe como da sacerdotiza conseguiram amenizar, era ainda mais mórbido. O príncipe resolveu se manifestar:

- Aonde vamos?

Nenhuma resposta. A essa altura, as velas já haviam tomado distância e a escuridão já se avizinhava, mesmo não sendo suficiente para tornar a trajetória impossível. A velha tomou a providência de retirar uma das tochas do suporte e levá-la junto, para que não ficassem no breu completo, e Irino pôde reconhecer o lance de escadas à frente: estavam rumando para as masmorras do castelo. Só havia estado lá uma vez para tomar gosto pelo que seria sua primeira "aventura", uma vez que os filhos da Família Real não tinham autorização para sair de sua casa. Mal sabia ele que os filhos também não tinham permissão para se dirigirem às celas e, como consequência, ouviu berros e broncas pelo desacato. E agora estava ele de novo a burlar o zelo do Rei.

- Aonde vamos? - ele parou a caminhada e repetiu a pergunta, dessa vez mais incisivo.

A Oráculo, já ao fim da escadaria, manteve o silêncio, retrucando-o com um singelo gesto de "siga-me". E Irino, sempre muito obediente, a seguiu. O novo corredor, normalmente vigiado por dois guardas em cada extremo, dessa vez encontrava-se vazio. Seus funcionários estavam se digladiando com os bárbaros ocidentais, o que deixava o príncipe bem mais confortável de que não seria "pego em flagrante" daquela vez. Tanto à direita como à esquerda dos dois visitantes havia várias celas dispostas lado e lado e separadas apenas por "paredes" compostas por grades. Prisioneiros? Curiosamente, ao contrário do que a imaginação pueril de Irino supunha, somente um jazia sobre um colchão de lençóis brancos desarrumados em uma cama de madeira mal conservada. Em sua mão, uma garrafa derrubada de uma bebida com cheiro forte o bastante pra impregnar mesmo as celas vizinhas. A sacerdotiza se pronunciou, risonha:

- Não se preocupe em acordar o moço, do jeito que ele bebeu nem mesmo a gritaria lá fora o acordaria. - Irino olhou-a espantado e claramente constrangido. Se fosse o Rei, com certeza escutaria uma reprimenda pela "fraqueza". - Não sinta vergonha de ter compaixão até por quem provavelmente não teria por você. Isso é o que o fará um bom rei no futuro. - ela finalizou, percebendo a insegurança quase palpável do garoto.

O corredor acabava ali, com uma porta grande e intimidadora de madeira de tons fúnebres, com um cadeado igualmente corpulento e dourado em sua fechadura, cintilante mesmo à parca luz da tocha. Uma parte do castelo que Irino nunca conheceu e sequer imaginaria existir até aquele instante. Oráculo sacou uma grossa chave de dentro do robe e em um encaixe perfeito destravou a porta ao som de um rangido alto. Irino olhou logo para o presidiário de momentos antes; ele continuava imerso no sono - ou alcoolismo - profundo.

- Primeiro você. - A senhora fez um gesto cortês indicando o caminho. A porta em questão parecia uma passagem para um abismo. Nenhuma iluminação, nenhum vislumbre do que aguardava ambos ali dentro, apenas um cheiro forte de poeira, antiguidade e história. Hesitante, o pequeno príncipe deu um passo adiante. As tochas apagadas reagiram à presença da realeza, acendendo de súbito e revelando um hall imenso - de longe, o mais espaçoso que havia no Castelo, a ponto de fazer parecerem mínimos a sala de jantar e o quarto dos regentes. Logo de frente, uma pequena escada de meros 5 degraus, apresentando um altar quadrangular construído com mármore esverdeado igualmente ao resto do edifício, com um piso de vidro oval em seu centro. Em cada uma das quatro extremidades, havia uma pilastra quebrada ao meio que não chegava nem à altura da cintura de uma pessoa de porte médio. Irino estava completamente boquiaberto e absorto na estrutura do recinto. Oráculo rumava seus passos etéreos para um pequeno aparato no canto direito da escada: um painel de aspecto que destoava da construção geral de Wyndia. Era geométrico, cheio de botões e simples demais, ao mesmo tempo que transmitia a idéia de ser criado por uma tecnologia muito avançada para aquele tempo.

- O que é isso?

- A resposta da sua pergunta virá mais breve do que imagina, seja paciente. - ela sibilou, com uma medonha certeza. Irino já conhecia bem o caráter da idosa, devia ter imaginado alguma resposta vazia do tipo e, embora demonstrasse sinais de impaciência, não deixou-se abater. Achava que a velha estava brincando com ele esse tempo todo e odiava ser subestimado e tomado por um tolo. Deixou os pensamentos revoltosos morrerem para sua atenção o levar ao altar, o qual encarava sem nem ao menos piscar. Estava atraído, o bastante para não notar os pés se moverem por conta própria na direção do piso espelhado. Irino ajoelhou-se, deslizando os dedos de leve por cima do próprio reflexo. Pouco a pouco fechou os olhos, sentiu-se sonolento. Sua mente estava longe, bem longe. Podia ouvir um hipnótico canto de ondas se quebrando no fim da praia...que ondas? Que praia? Nunca nem havia pisado na areia fina que tanto ouvia falar de pajens, cavaleiros e babás do castelo. Tornou a abrir os olhos-safira, o misterioso coro de engrenagens o acordou e, como se o espanto anterior não tivesse bastado, as quatro pilastras quebradas estavam cobertas por um clarão branco que parecia atravessar o teto e faziam as luzes das tochas se tornarem pontos vermelhos distantes. Irino escancarou a boca para proferir um grito, a velha se adiantou em calá-lo com sua calma, quase como se lesse seus pensamentos.

- Não é o que parece, não são bombas destruindo o castelo. Vou mandá-lo para outro mundo, para uma pessoa que está à sua espera.

O príncipe desmoronou, assustado:

- O QUÊ? V-VOCÊ ME ENGANOU!

- Sua irmã está desaparecida. - A anciã cessou a histeria sem iniciar outra. - Hereena não está mais nesse mundo. A pessoa que te espera pode te ajudar a encontrá-la. - Oráculo começou a dedilhar o ar como se tocasse uma harpa com ambas as mãos, um brilho colorido cercou seus dedos sob a forma de um símbolo estranho. Irino reconheceu logo, era uma runa mágica. A velha prosseguiu: - Temo que o pior tenha acontecido, e não quero nem posso arriscar.

- Q-quem é a pessoa? O que devo fazer lá?

- Seu destino é "A Feiticeira das Dimensões". Assim como eu, ela detém o poder de P'Ung Ryong...o poder do vento...ela irá tratar de lhe ensinar o jeito de resgatar a princesa.

Irino não teve tempo de digerir a resposta, que só lhe trouxe mais dúvidas do que as que já perguntara. Os gestos de Oráculo tornaram-se ainda mais rápidos, e sob a forma de um triângulo, as mãos expulsaram o brilho, vento misturou-se à luz e o príncipe não viu mais nada; sentiu-se voar, mas suas asas não se mexiam. Sentiu-se cair. Que P'Ung Ryong o ajudasse.

"...Chegaram."

Aos poucos a visão voltou, nem tanto por vontade própria, mais por obrigação pura e simples. Viu-se em um quintal imenso do que parecia ser uma casa bem espaçosa. Prédios grandiosos a cercavam e impediam de ver muito mais coisa além dos muros da casa. Estava de joelhos, e chovia. Muito. As gotas pareciam navalhas na sua pele alva e pesavam no cabelo que escorria atrapalhando a vista. Irino não estava sozinho.

À sua frente, uma figura alta o encarava com olhos que nunca vira mais intimidadores, e a criteriosa escolha negra das cores de suas roupas em nada contribuía pra amenizar a assustadora primeira impressão. Era um homem de porte inversamente generoso à sua simpatia.

À sua frente, outra figura erguia-se ao lado da primeira, coberto por um manto branco que só não o deixava etéreo porque não cobria-lhe as botas. Uma franja aloirada brotava por baixo do capuz bem adornado com pêlos, e ao contrário do homem de preto, sorria despreocupado.

À sua frente, uma mulher de trajes cerimoniais similares aos que vira em livros do castelo sobre o Império do Leste, a Capital Chedo. Era alta, esguia e sinuosa como uma serpente, de um olhar indiferente que traduzia os gestos mínimos e contidos e um cabelo majestosamente comprido.

À sua frente, uma figura encapuzada. E foi só o que conseguiu ver.

O de preto resolveu se manifestar:

- Heim? Quem diabos é você?

O de branco esbanjou um sorriso caloroso:

- Então, a senhora que é a Feiticeira das Dimensões?

O de capuz nada disse.

- Primeiro, me digam quem são. - a mulher respondeu.

"...Kurogane", o espadachim de preto apressou-se. O simples olhar da Feiticeira ao de branco traduzia a mensagem. "E você é...?". Ele, por sua vez, não contrariou o que sua aparência dizia sobre si, e impôs o sorriso e o tronco numa mesura digna da realeza:

- Eu sou um mago do reino de Ceres, Fai D. Flowright.

Foi a vez de Irino. Todos os olhos inquisidoramente pesaram sobre suas costas. Ouvia comentários sussurrados de modo indiscreto de uma quinta pessoa que só então notara, mais ao fundo, um garoto de óculos e roupas tão escuras como a de quem se intitulava "Kurogane". "É um anjo? Será que ele caiu do céu?".

- Vamos, apresente-se. - A feiticeira pronunciou diante da demora.

- ...Irino. Irino Winlan.

- Você sabe onde veio parar? - A mulher somente arqueou as sobrancelhas, Irino somente meneou a cabeça negando. Fai adiantou-se por ele:

- Eu esperava vir a um lugar onde pudesse ter os meus desejos atendidos depois de pagar um preço à altura.

- Exatamente. Se vocês vieram aqui, significa que têm um desejo.

- Eu quero voltar já para onde eu estava. - disse Kurogane.

- Eu quero ficar para sempre longe do lugar onde eu estava. - Fai respondeu.

Novamente, a mulher entregou sua atenção ao pequeno príncipe. "E você?". Irino titubeou antes de responder qualquer coisa.

- Eu não sei...eu quero voltar para onde eu estava, mas não posso...preciso ficar longe do lugar onde eu estava, e também... - As palavras da velha, a anciã de Wyndia, voltaram como um turbilhão em sua mente. Irino limpou o rosto encharcado pela tempestade com as costas das mãos, uma deselegância plebéia de quem não se importava. - ...preciso salvar uma pessoa. Uma garota...

Nessa hora, a figura de capuz encarava-o. Era um menino, pôde notar, como ele. Ajoelhado, como ele. Mas ao contrário dele, segurava outra pessoa nos braços. Uma menina de cabelos castanhos. Irino não segurava nada. Só sua vontade de chorar.

A Feiticeira postrou-se pensativa.

- Vocês três - ou melhor, vocês quatro - têm desejos difíceis de serem atendidos. Os seus desejos não podem ser atendidos nem com as coisas mais preciosas que vocês possuem. - Irino notou o desespero na face e no abraço apertado do menino nesse momento. - Mas, se os quatro pagarem juntos, então acho que o pagamento será possível.

A dúvida se instalou na fala e na cara de cada um dos que estavam naquele jardim. A Feiticeira continuou:

- Os desejos dos quatro são fundamentalmente a mesma coisa. "Eu quero viajar para vários mundos para recuperar a memória perdida dessa menina". "Eu quero sair deste mundo e voltar para o meu mundo". "Eu quero ir para outros mundos porque não quero voltar para o meu mundo". "Eu quero viajar para vários mundos para salvar a vida de uma menina." Os objetivos são diferentes, mas na prática significam uma coisa só: os quatro querem ir para mundos em dimensões diferentes. É impossível cada um de vocês pagar individualmente o preço desse desejo, mas se os quatro forem juntos, posso dividir o preço e aí os desejos de vocês podem ser atendidos ao mesmo tempo. - Irino teve a sensação de ser lecionado, ou ouvir o merchandising de uma vendedora proficiente em lábia.

Kurogane já vociferava: - Qual é o preço que eu tenho que pagar? - Obteve a resposta: "sua espada". Entre berros e palavras que o pequeno príncipe só ouvira da boca de prisioneiros sem decoro no exato momento das condenações que seu pai, o Rei de Wyndia, o obrigava a assistir, Kurogane entregou-lhe a espada, curvada e de uma bainha prateada com uma arte similar a dos reinos ocidentais de seu mundo. A Feiticeira olhou de soslaio, por cima do ombro, para Fai: - Seu preço é a sua tatuagem.

Fai, embora relutante, mantinha modos mais diplomáticos e baixou o manto, deixando que de suas costas a tal "tatuagem", preta e cheia de desenhos intricados, tomasse vida e desgrudasse de sua pele, pairando no ar como um animal voador ao lado da mulher.

- E vocês? - ela disse, agora totalmente atenta ao menino encapuzado de cabelos cor-de-bronze e ao príncipe. - Estão dispostos a me oferecer aquilo que lhes é mais precioso para poder ir a outros mundos?

- Sim. - O garoto respondeu sem piscar. Irino manteve-se mudo. A Feiticeira pareceu inabalável, mas um olhar de veterano perceberia surpresa.

- Você está disposto mesmo sem saber o que vou pedir?

- Sim.

- A única coisa que posso fazer é ajudar vocês a irem para outros mundos. Se você quiser recuperar os fragmentos da memória dela, terá que lutar para tanto. - ela advertiu-o, ainda incrédula.

- ...Está bem. - e não disse mais nada. Havia fogo em seus olhos. A Feiticeira esperou Irino dizer qualquer coisa.

- ...Eu também. - o coração lhe saltava da boca, cheio de tristeza, medo e ansiedade. E pela primeira vez naquela tarde a Feiticeira sorriu. "Gostei."

"No tear que tece a nossa vida não há pontas soltas. Todos os fios estão entremeados entre si e revestidos de significado, e mesmo esse encontro aparentemente fortuito entre vocês também está revestido de significado."

Ela caminhou poucos passos mais próxima de onde o garoto e Irino estavam.

- Os seus preços, Shoran - finalmente o príncipe descobrira o nome dele - e Irino, são as suas relações. A coisa mais importante para vocês são suas relações com as pessoas com quem vocês estão ligados.

"Como assim?", Shoran murmurou.

- Mesmo que essa menina recupere toda a sua memória, vocês dois nunca mais voltarão a ter a mesma relação. O que essa menina é para você, Shoran?

O fogo nos olhos de Shoran tornou-se brasa mansa, a fala cortava-se a cada vez que ele reavivava o fôlego: - Ela é minha amiga de infância, princesa do reino onde eu estava e uma pessoa muito especial para mim.

- E você, Irino? O que sua menina é para você?

- Minha irmã.

- Só isso?

- ...Princesa do reino onde eu estava. Minha irmã gêmea. Uma parte de mim.

A Feiticeira deu-se por satisfeita.

- Nesse caso, o mesmo vale para você, Irino. Sua vinda aqui já é parte do preço que você vai pagar. Para recuperar uma parte sua, terá que abrir mão da "outra". Não somente sacrificará sua relação com sua irmã, mas com seus pais, o reino de onde você veio e, principalmente, consigo mesmo.

Irino não entendeu, mas sentiu o peso das palavras bem entoadas e cristalinas da Feiticeira. Uma fisgada forte no peito rasgava sua alma por dentro.

O menino de óculos, a quem a Feiticeira chamara "Watanuki", depositou nos braços dela um coelho branco que parecia de pelúcia e com uma jóia rubra cujo brilho as nuvens negras não conseguiram apagar. A mulher apresentou o curioso bichinho como "Mokona".

- Mokona pode levá-los aos outros mundos, mas não tem controle sobre pra quais mundos vocês poderão ir. Depende da sorte que seus desejos sejam atendidos. Se aceitarem ir com Mokona, vocês nunca mais terão a mesma relação com as meninas a quem se referem. Mesmo que você, Shoran, consiga recuperar as memórias dela, ou você, Irino, consiga reaver a existência de sua irmã, as relações delas com vocês nunca poderão ser recuperadas. Mesmo assim, vocês dois irão aceitar?

Os olhos bem castanhos de Shoran diziam, imóveis, o que a boca exprimiu de imediato. "Sim". A voz da mulher estava cada vez mais mecânica e firme. Irino manteve as reticências. Era sincero no desejo, mas não tinha decisão para fazê-lo tornar realidade. Muito mal saíra do castelo, e agora já pisava em terras incertas, onde a única convicção era de que nunca mais veria os moinhos de Wyndia. Viajar para outros mundos se mostrou muito mais perigoso do que imaginava.

"Universos onde palavras e paradigmas não se aplicam."

"Universos com diferentes tecnologias, tradições e leis."

"Universos repletos de criminosos ou assassinos."

"Universos inteiros em guerra."

"Universos com pessoas que vocês conheceram em mundos anteriores, provavelmente levando vidas completamente diferentes."

"Pessoas com a mesma aparência em universos diferentes."

Cada frase soava como uma chacoalhada na cabeça do príncipe. Um gosto de vertigem grosso e de ferro subiu à garganta conforme a Feiticeira narrava tais perigos.

- Você, Irino, está firme em sua decisão?

"Sim". Murmurou, fraco, o suficiente para ser ouvido por baixo do coro das gotas, agora mais espessas, da chuva. O sorriso da Feiticeira se alargou.

"Muito bem."

O pelúcia esbranquiçado que atendia pelo nome de "Mokona" levitou das mãos de dedos longos e arcados da mulher poucos metros à frente e de suas costas redondas brotaram asas, maiores que as de Irino, Vincent ou de qualquer wyndian. Ele começou a reluzir e o que seria sua boca tomou dimensões anormais, crescendo com a forma de um buraco negro que era capaz de engolir tudo e todos ao redor. Mas não; engoliu apenas Kurogane, Fai, Irino, Shoran e a garota que ele protegia, para logo após, enrolar-se em si mesmo e subir tão alto quanto a vista alcançasse. E sumiu. A Feiticeira deu sua bênção final, o céu finalmente cessou seu choro e os raios de sol já escorregavam tímidos por entre as nuvens acima.

"Faço votos...para que a misericórdia e a felicidade sejam as luzes a guiarem os viajantes durante o caminhar desta jornada..."

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.