Pensamentos no fim da vida

Uma promessa quebrada, um fazendeiro e um bar.


Naquele exato momento, enquanto as esposas preparavam o jantar para seus respectivos maridos e filhos, enquanto as senhoras tricotavam algum pedaço de roupa para seus futuros netinhos, Raymond comemorava seus quarenta anos naquela vila.

Apesar de tudo que conquistara, de todo o dinheiro que conseguira, do orgulho que fizera seus pais sentir, ele se perguntava se tudo aquilo tivera mesmo valido a pena.

Não havia casado, tampouco teve filhos. Sabia que não tinha mais idade para pensar nessas coisas.

Porém não se arrependia. Sabia que se tivesse se preocupado com uma esposa e família não teria conseguido metade das coisas que conquistou.

Mas mesmo assim, enquanto estava sentado naquela cadeira, naquele mesmo bar em que havia comemorado tantas vitórias de sua juventude com os amigos que tinha acabado de conhecer, ele podia sentir o cheiro do arroz sendo preparado em alguma panela ali perto.

Provavelmente era Ann, mas sua mente não pôde deixar de levá-lo para uma mesa de madeira redonda, em uma cozinha simples, uma criança com um babador sentado a sua frente, e uma mulher – ou melhor, uma esposa– colocando os pratos na mesa, sempre sorrindo. Parecia satisfeita, pois aquele era seu sonho que havia se realizado.

Então Raymond voltou à realidade com um supetão. Quem seria a esposa?

Popuri?

Raymond sorriu. Não podia negar que, quando se mudara para a fazenda, ela foi a primeira garota que lhe chamou a atenção. Até tiveram um certo romance, mas nada muito apaixonado. Talvez tenha sido a pouca vontade matrimonial de Raymond que tenha feito com que ela preferisse “fugir” com Kai, e sabe-se lá onde ela deveria estar agora.

Mary? Com certeza seria uma ótima esposa. Não teve uma vez em sua vida em que não pudesse contar com ela, mas no fim acabou a decepcionando como todas as outras. Mas estava feliz por ela, e não podia imaginar alguém mais perfeito para ela do que Gray.

E quanto à Karen? Com esse pensamento Raymond até engasgou com sua cerveja.

Ah, a inocência da infância. Ela foi a primeira garota que Raymond se apaixonou. Quando ele foi conhecer a fazenda de seu avô, ela tinha curiosidade em conhecer a cidade. Raymond prometeu que a levaria para conhecer, mas nunca a levou. Também prometeu que voltaria para que eles pudessem ficar juntos.

Bom, não foi uma promessa completamente quebrada. Ele havia voltado, sim, mas jamais ficaram juntos.

É claro que quando um se lembrou do outro tal pensamento ocorreu à mente deles, mas no fim serviu apenas para estreitar os laços de amizade. Karen estava com Rick, e Raymond não queria outra coisa se não a felicidade de sua antiga paixão de infância.

E quanto à Elli? Esta com certeza ele não tinha do que reclamar. Esteve com ele até seus últimos momentos naquela vila, apesar de toda a paixão frustrada e de todos os erros do passado.

Depois da morte de seu marido, Elli e Raymond se tornaram mais unidos, um compartilhando da solidão do outro.

Eles nunca chegaram a namorar, na verdade (até porque, quando um resolveu se declarar para o outro, eles "não tinham mais idade para isso"), mas durante a flor da juventude houve alguns casos de ciúmes e paixão reprimida pelo orgulho entre eles.

Agora Elli não estava mais ali. Depois que faleceu, a clínica ficou para Stu (que se formou em medicina na cidade) e May, vejam só, sua esposa enfermeira.

Um dia, ele, Mary, Popuri, e todas as esposas e maridos daquele vilarejo foram os jovens, e agora eles não passavam de idosos. Tudo voltava ao seu lugar de antes, como um ciclo.

Sim, Raymond tinha muitos motivos para comemorar, mas também poucos (que, por alguma razão, pareciam ser mais importantes) para lamentar. Nunca soube como era ser pai, e nunca saberia.

Terminou sua caneca com um longo gole, e então seus olhos flutuaram até chegar à silhueta de Ann na pia, enxugando os copos de forma tão automática que parecia que havia sido programada para aquilo.

Seu pai não havia falecido, mas por causa de uma doença estava sempre de cama, e por isso ela assumiu o bar.

Também não casara. Passava a vida toda lamentando – em segredo – a partida de seu amado Cliff.

Ann assoviava alguma música animada, mas foi diminuindo gradativamente ao perceber o olhar de Raymond.

– Ray? Algum problema? Quer que eu encha sua caneca?

– Ah, por favor.

Enquanto Ann enchia, Raymond continuou:

– Sabe o que eu estava pensando? Passamos nossa juventude sofrendo por amores, e no fim acabamos sozinhos, sem família. Até mesmo o Rex, meu único e leal amigo, me abandonara. Será que isto está certo?

Ann sorriu um pouco tímida, mas simpática.

– Está dizendo que a minha amizade não conta? Somos melhores amigos desde... bem... você sabe.

– Desde que Cliff foi embora, eu sei. Eu sempre admirei o fato de você não ficar se martirizando por isso. Você é muito forte.

Ann sorriu com um pouco mais de vontade, mas abaixando o rosto para que Raymond não percebesse seu rosto vermelho.

– Nossa, você está bêbado.

Raymond concordou com uma risada, mas então continuou num tom mais sério:

– Mas estou mentindo? Olhe para trás. Era assim que você imaginava o fim de sua vida?

Ann ergueu seu rosto com os olhos abertos, claramente ofendida. Mas então seu rosto relaxou quando Raymond deu uma risada e erguendo as mãos, como que se desculpasse.

– Não é isso que eu quis dizer! – e então em um tom mais sério. – Mas... é que nós ainda podemos mudar nosso futuro.

– Como assim Ray? – ela riu.

– Já parou para pensar que, se nós não tivéssemos perdido nosso tempo com amores ingratos, nós poderíamos ter sido felizes?

– Eu não sei o que quer dizer... – seu rosto estava incrivelmente mais vermelho que antes, mas Raymond pareceu (ou fingiu) não perceber.

– Não é tarde demais, eu acho...

Raymond se calou. Ann ergueu seu rosto novamente, com aquele mesmo olhar ofendida. Mas havia algo diferente. Algo tão intenso que Raymond não foi capaz de continuar. Mesmo estando alterado por causa da bebida, sentia que havia ido longe demais.

Mas por que havia algo dentro dele que suplicava para que ele continuasse?

– Não! – disse ela. – Olhe para nós! Somos velhos! Mas... além disso... você não percebe? Esta amizade é a única coisa verdadeira que eu tive em toda a minha vida. Nos unimos quando estávamos feridos, um ajudou o outro, e é por isso que temos esse carinho tão grande um pelo outro. E agora você vem falando essas coisas? – nesse momento Ann não pôde mais ignorar as lágrimas em seus olhos. Apesar de sentir a vergonha esquentando seu rosto, dos olhares curiosos e discretos em sua direção, a expressão assustada de Raymond quando suas lágrimas começaram a cair, ela não conseguia parar. A única coisa que ainda tinha certo controle era sobre o tom de sua voz, que também foi se perdendo conforme se expunha. – Você não tem consideração por mim?

– Não é isso que eu quis dizer...

– Você não teria o mínimo receio de estragar essa amizade que levamos anos para construir!

Raymond sorriu, o que fez com que Ann o olhasse mais envergonhada e ainda mais furiosa.

– Não é isso que eu disse. Eu não quero perder nossa amizade, porque ela é a única coisa verdadeira para mim também. É que não quero ter que atravessar a vila para vir te ver todas as noites, não poder te abraçar quando está chovendo e estamos sozinhos em nossas respectivas camas, não poder te esquentar, pois estamos tão distantes, e...

– Você está bêbado... – concluiu ela, sussurrando para si mesma.

Ann estava prestes a dar meia volta e guardar a garrafa de cerveja, mas Raymond segura sua mão.

– Eu sei. E é por isso que não quero perder essa chance. Eu não teria coragem de dizer essas palavras sóbrio, pois sei que não conseguiria continuar te vendo com essas lágrimas. Então deixe eu concluir, por favor...

Ann não disse nada, mas ele também não. Sentia que o efeito da bebida estava começando a passar, e a vergonha e o medo subiram por sua espinha com tal velocidade que Raymond soltou sua mão no mesmo instante.

Ele não viu, mas Ann estava segurando um sorriso. Ela voltou para a pia e terminou de enxugar os copos, enquanto os poucos clientes do bar andavam trôpegos pela porta.

O salão estava praticamente vazio (havia apenas um pescador com a cara deitada no balcão e alguns marinheiros jogando cartas no outro canto do bar) quando Ann se serviu de um copo de cerveja e sentou-se ao seu lado.

Naquele momento Raymond confirmou mais uma vez o que concluía todas as noites: o tempo havia sido muito gentil com ela.

É claro que não era tão bela quanto jovem. Seus cabelos ruivos já apresentavam vários fios brancos na raiz, e o cabelo que costumava serpentear em uma longa trança, agora estava curto e vivia preso em um pequeno rabo de cavalo.

Ainda usava praticamente o mesmo macacão, e havia algumas linhas mais fundas entorno de seus olhos e lábios. Mas no fundo daqueles grandes olhos azuis, não havia mudado nada. Era a mesma bagunceira e comilona Ann de sempre.

– Sabe, - disse ela, tomando um gole. – nós podemos esquecer tudo isso, ou então começar do zero. Os dois bêbados, falando tudo o que tiverem para falar, sem medo. – nesse momento ela colocou sob o balcão uma das garrafas de seu whisky mais caro – O que acha?

Raymond sorriu. Por um momento temeu perder a amizade daquela que havia sido sua única amiga de verdade e, talvez, seu único e verdadeiro amor. E isso fez com que duas ou três lágrimas de alívio se acumulassem no canto de seus olhos, de seus pequenos e orgulhosos olhos, mas que não foram fortes o bastante para escorrer.

Mas mesmo que não houvesse o alívio, não poderia ir embora, pois seria como desistir de tudo. Mesmo que ela não quisesse mais o olhar na cara, ele se contentaria em vê-la de costas, enxugando os copos, ou de longe, pela pequena janela do bar, caso ela não o quisesse mais em seu estabelecimento. Talvez não ouvisse mais seu assoviar despreocupado, mas ficaria satisfeito apenas em poder vê-la, e ter certeza de que ela estava bem.

Ann ergueu o copo e sorriu timidamente. Raymond brindou, e sorriu com mais vontade. Logo os dois velhos amigos voltaram a conversar sobre coisas do passado, dos amigos, das aventuras, e de um amor que nunca viveram.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.