Pelo escuro

Vodca resolve todos os problemas


Acordei com um balde d’água. Não, não estava abraçada ao balde d'água. Quero dizer que só acordei porque levei um caldo. Levantando rapidamente, esmurrei tudo a minha volta, a cólera movendo meus braços, desferindo golpes no ar. Quando me acalmei olhei em volta ainda furiosa, mas mais controlada. Kyra estava a minha frente, o balde em suas mãos e um sorriso maroto no rosto. Ethan se encontrava mais atrás, como se usasse o corpo da irmã como escudo. E talvez devesse mesmo. Porque eu avancei sobre Kyra, deixando minha ira de ter sido acordada de modo tão desleixado me controlar.

Ela caiu comigo por cima e eu puxava seus cabelos, irritada. Arranhei sua pele, sem deixa-la se defender. Fazia tempo que não brigávamos assim. Ethan avançou sobre minha cintura pegando-me. Levantei o braço para lhe dar uma cotovelada, mas fui interrompi por conta de sua voz em meu ouvido.

—Evangeline, se acalme. — pediu ele com certo desespero. Deixei-me levar para o quarto dele, ainda meio nervosa. Ele me pôs em cima de sua cama sorrindo para mim. — está melhor?

—Sim. Sim estou. — falei meio séria. Então sorri quando comentei: — você me chamou de Evangeline?

—É bem... — ele sorriu sem graça. Isso me fez gargalhar. — sim, chamei. Não estou mais tão bravo.

—Isso é bom.

—Eu também acho. — ficamos em silêncio. Observei seu rosto. Os olhos por trás dos óculos quadrados pareciam sérios, mas se você observasse bem podia ver uma faísca. Uma faísca de uma diversão que ele sufocou por conta de se tornar adulto. Kyra apareceu na porta quando eu estava pronta para me render ao meu desejo de me jogar aos braços de Ethan. Não estava mais brava com ele. Tinha sufocado essa raiva na noite de ontem.

Que por sinal, havia sido bem calma. Sem turbulências, apenas algo comum de amigas, uma noite em uma boate qualquer trocando fofocas. Foi uma noite boa, e sem confusão o que eu descobri que era possível e bom. Kyra me contou que Caio tinha a pedido em namoro antes de ontem e que ela não havia achado um momento melhor para me falar. E, embora ela estivesse abrindo seu coração, não tive coragem de dizer com todas as letras minha paixão por Ethan. Não sei por que, mas parecia secreta de mais, especial de mais para ser contada. Ou talvez eu só estivesse com medo de me apaixonar novamente, afinal não deu certo da última vez. Como se falar “eu não estou apaixonada por Ethan” evitasse meu sentimento, ou até mesmo sufocasse-o.

Mas enfim, voltamos cedo para casa e Ethan já estava lá. Sem discussões ele apenas desejou boa noite e subiu para seu quarto. Eu fiz o mesmo, deixando apenas Kyra assistindo televisão. Cheguei tão cansada da farra que apenas me joguei na cama, admirando o consolo que um bom travesseiro me dá. E tinha dormido bem, até Kyra me acordar.

—Credo Eva, você me arranho toda. — reclamou ela, com um coque frouxo e analisando os braços. Dei de ombros, mal humorada. Ainda não a tinha perdoado por causa do balde de água.

—Podia ter arranhado essa sua cara. — resmunguei. — assim o Caio não iria te querer mais. Porque me acordaram daquele jeito?

—Ah é mesmo, tínhamos um propósito. — lembrou Ethan.

—Me matar do coração?

—não gracinha, meus pais estão vindo. — Kyra se jogou na cama, tapando o rosto com tamanho nervosismo, devido à resposta que Ethan deu a minha pergunta.

—Sério? O tio e a tia vão nos visitar? — perguntei sorrindo. Ethan afirmou com um aceno. — Oba! — comemorei.

—Oba nada, já viu o estado dessa casa? Temos que arrumar tudo o mais depressa possível. E agora até cama molhada temos. — Kyra falou abafada, devido ao travesseiro em seu rosto.

—Bem, acho que nisso eu posso dar um jeito. — falei sorrindo. — Ethan, você fica com a sala e a cozinha, ou seja, toda a parte de baixo. Kyra, você fica com as áreas e eu com o andar de cima, banheiros e quartos. Não quero saber de moleza e corpo mole, todos ao trabalho agora. — ordenei como uma capitã e rapidamente nem Ethan nem Kyra se encontravam a minha frente mais. Eles desciam as escadas correndo cada ocupado com sua devida tarefa. — e mãos a obra. — falei para mim mesma.

***

Não preparamos o almoço porque não tivemos tempo. Quando tínhamos tomado banho e vestido nossas roupas a mãe de Kyra assim como seu pai bateram na porta. Com toda essa correria não tive tempo de perguntar se aquilo era comum, ou se só havia ocorrido devido à novidade amorosa de ambos os filhos. Mas não seria agora meu momento. Eles tocaram incessantemente a campainha, até Ethan abri-la com seu melhor sorriso Colgate. Ele cumprimentou os pais com abraços e risadas e os mandou entrar. Kyra e eu que estávamos sentadas no sofá nos levantamos. A mãe de Kyra, Lucy, a cumprimentou primeiro, chamando-a de “filhinha” como sempre fez. Depois, o pai de Kyra surpreendentemente a puxou para um abraço que foi correspondido. Então, tia Lucy como eu a chamava, me deu um abraço apertado.

—Oi tia. — falei sufocada.

—Olá querida. — ela deu espaço para o Tio Aaron que me abraçou carinhosamente.

—Oi pequena.

—Mas tio, eu não sou tão pequena mais.

—Não ligo você sempre vai ser pequena para mim. — ele bagunçou meu cabelo, como fazia quando éramos mais novos.

—Todos são pequeno para você Aaron, afinal você tem dois metros de altura. — brincou a esposa. Nós rimos e nos sentamos no sofá.

—Então, vejo que foi um dinheiro bem gasto aquele que te dei hein Eva? — comentou a mãe de Ethan, olhando para as roupas dele.

—Sim foi. Ele agora está um modelo perfeito. — falei rindo das bochechas coradas de meu amigo.

—Ah então foi para isso que sumiu nosso cartão de crédito? — reclamou tio.

—uma bobeira. — Ethan tentou disfarçar sua vergonha com um tom de desdém.

—Um investimento. — argumentei. Kyra e a mãe riram.

—Então Eva, faz um tempo que não te vejo. Por onde andou? — Tio Aaron perguntou. Contei-lhe com facilidade sobre meus anos de modelo, tentando não dramatizar na parte do meu namoro com Patrick e o modo como ele me fez sofrer. Tia Lucy acariciava meu braço nessas horas e eu pegava sua mão como se precisasse de consolo. Mas incrivelmente eu não precisava.

A conversa continuou tranquila e mais em família. Tia Lucy perguntava várias coisas aos filhos e Tio Aaron que sempre quis parecer meio rígido, deixou-se levar pela emoção de ter todos ali reunidos e em paz. Fiquei calada observando. Mesmo que o clima entre mim e meu pai sempre fora ótimo, internamente eu sentia falta disso: de uma família com mãe, pai e irmãos. Éramos muito solitários, só eu e meu pai. Quando brigávamos as coisas ficavam ainda piores. Mas logo a saudade nos reunia e já estávamos brincando de novo. Mas nunca seria como era com Ethan e Kyra. Dentro de mim eu sabia que momentos como esse me causavam inveja e saudade de algo que nunca tive.

Nem estava prestando atenção na conversa. Na verdade, meus pensamentos se voltavam para minha infância, lembranças sufocadas da minha mãe. Meu coração doía de lembrar-se delas, mas eu insistia em me lembrar, porque se eu não recordar dela, quem vai? Lembrava de como seu sorriso me deixava mais tranquila e como suas lágrimas me sufocavam. Do modo como ela movia as mãos quando me dava sermão e de como seus conselhos sempre eram bem acolhidos aos meus ouvidos. Por tantas vezes a desejei de volta, poder voltar ao tempo e aproveitar cada minuto com ela. Mas infelizmente não podia fazer isso. Não podia. E, quando já estava prestes a pedir licença para subir ao meu quarto, ouvi meu nome ser chamado.

—Então Eva o que acha da namorada do Ethan? — indagou tia Lucy. Meus olhos lacrimejados piscaram insistentes não acreditando na interrogação dela.

—O que? — perguntei, embora tivesse ouvido a questão. Notei o olhar de Ethan sobre mim, suplicante e de Kyra, tensa. Eu estava tensa e nervosa. Poderia apenas falar a verdade de modo crítico e reprovador, ou poderia ajudar Ethan. Olhei bem em seus olhos. Talvez Jaqueline fosse mesmo a melhor opção a ele. Talvez ele mereça alguém que seja maduro, que não fuja do inevitável. Eu não poderia fazê-lo feliz. Então, porque atrapalhar sua vida?

—Eu perguntei o que acha da namorada de Ethan.

—Ela... — suspirei. — é uma garota muito peculiar. Não um peculiar ruim, mas um peculiar bom entende? Ela parece ser uma boa moça, moça de família. Estudiosa, ouvi dizer que é a melhor da turma. O único defeito visível é o péssimo gosto na moda. — eles riram. — Mas acho que ela o fará feliz. — deixei escapar essa última parte com tristeza.

—Então para você ela está aprovada? — questionou Aaron.

—Ninguém nunca estará à altura de Ethan, Tio Aaron. — falei com intensidade de mais. — mas ela pode tentar. — as bochechas do meu amigo ficaram vermelhas, e ele parecia surpreso e emocionado. Lancei lhe um sorriso triste. Novamente não tive tempo de pedir licença e já fui encurralada por outra pergunta.

—E quanto ao de Kyra? O que acha dele? — tio Aaron perguntou novamente.

—Ele é um homem maravilhoso. Kyra será louca se o deixar escapar. Eu a bateria por isso.

—Nesse caso é melhor conquista-lo pela barriga, não? — tia Lucy falou seu bordão de sempre. Nós rimos com essa lembrança antiga.

—E quando eles chegam? — Aaron já perguntou. Espantei. Achei que fosse um almoço entre a família, não sabia que eles seriam apresentados hoje.

—Eles virão? — deixei bem claro minha angústia na dúvida.

—Sim. — Ethan respondeu simplesmente meio sem graça.

—Claro. — concordei. Não correspondi ao olhar de Ethan.

—Chegarão logo. Mãe pode ajudar a mim e a Eva a fazer o almoço? — Kyra se pronunciou. Nós três nos dirigimos à cozinha.

Tia Lucy era excelente na cozinha. Quando eu era menor sempre pedia a ela para comer lá porque amava sua comida. Ela me ensinou muitos truques, já que Kyra se recusava a aprender. Nós trocamos receitas e com o tempo eu fiquei quase tão boa quanto ela. Naquele dia cozinhamos lasanha. A lasanha dela era in-crí-vel. Eu a ajudei, rindo de suas histórias antigas e do modo como ela modificava a voz para conta-las.

Antes de terminarmos de cozinhar eles chegaram. Caio me cumprimentou com um beijo no rosto e Jaqueline apenas acenou para mim. Tentei me segurar. Eu havia feito minha escolha. Deixaria Ethan ir, não importa o quanto isso me doesse.

Quando terminamos de cozinhar, fui até a pia lavar as mãos. Kyra havia saído para chamar os outros para comer. Lucy se aproximou de mim lavando as mãos e sorrindo para mim. Não olhei em seus olhos, sentia como se estivesse mentindo para o ser mais adorável da Terra. Quando me virei para sair, senti meu braço ser puxado. Encarei os olhos castanhos de minha tia de coração.

—Ethan pode ter sido um burro de não ver o quanto você gosta dele. Mas quero que saiba que nada me faria mais feliz que a ter como nora. — sorri em contraste dos olhos tristes. Eu queria chorar, ia chorar. Mas não ali. Não na frente de todos, não na frente de Ethan. Não podia negar o que Lucy tinha me dito, eu gostava de Ethan, mas ele não me escolheu. E, portanto eu tinha que me conformar com isso. Então acenei e subi as escadas. Depois desci, com uma roupa de sair. Ethan olhou para mim, franzindo a sobrancelha.

—Aonde vai? — ele perguntou intrigado.

—Ah, pra qualquer lugar. Sabe, não estou com fome e é uma coisa de família, então...

—Mas Eva, você é mais da família que eu quase. — Kyra retrucou sorrindo. Forcei um sorriso também.

—Não gente, está tudo bem. Eu vou sair. Beijos e bom almoço.

—Obrigado. — eles agradeceram, com expressões de suspense. Saí pela porta dando graças a Deus pelo ar ameno de lá.

***

Parques em dias de domingo são agitados, mas incrivelmente achei um local sossegado. Embaixo de uma árvore, em frente ao lago, mais afastado das pessoas. Estava esperando Tobias chegar, que havia prometido adiar seu compromisso apenas para me ajudar. Ele notou minha voz triste e disse que viria com uma surpresa incrível. Olhei para o lado, saindo um pouco de meus pensamentos e o avistei, com um pacote de papel na mão. Ele se sentou, dando um beijo seco em minha bochecha. Depois tirou o conteúdo da embalagem de papel. E não é que ele acertou?

—Vodca? — perguntei rindo.

—Ouvi dizer que resolve qualquer problema. — ele falou sorrindo.

—Tem certeza que o compromisso não era importante?

—Não é que não era importante, afinal era a minha garota. — disse de sorriso bobo no rosto. — mas ela entendeu que eu tinha que ajudar uma amiga e eu prometi não demorar. Portanto, fique bêbada logo. — eu ri.

—Sim senhor.

—Então, qual o seu problema? — essa pergunta me amedrontava, porque eu sabia a resposta. Suspirei e engoli um bom gole antes de responder.

—Estou apaixonada por Ethan. — e simplesmente saiu.

—E qual o problema?

—Ele está namorando a tal da Jaqueline.

—E porque você não tentou nada com ele? Sei lá, chama-lo para sair, fazer sinais de fumaça, jogar ele na parede e beijá-lo, qualquer coisa? — ele perguntou sorrindo. Continuei engolindo a vodca com grande rapidez. Ele se limitava a pequenos goles da bebida alcoólica misturada com suco de uva. Eu bebia pura.

—A gente se beijou. Mas ele esqueceu, por conta da bebida. Além do mais eu nunca poderia fazê-lo feliz. Ele não me ama.

—Mas Eva, como sabe disso? Quer dizer, você nem sequer tentou! Como eu vi em um filme um dia: “como você sabe que não é pintor se não pinta?”. Como sabe que ele não gosta de você se nem deu uma chance a ele de dizer o contrário? — ele bebericou a bebida, enquanto eu abastecia meu copo com mais. — Além do mais eu vejo como ele te olha. É com um carinho...

—De irmãzinha. — completei com desdém. Tobias sorriu e balançou negativamente a cabeça.

—Eu tenho uma irmã e não olho para ela daquele jeito. Ele te quer. E o jeito que ele fica com ciúme quando você está perto de algum dos meninos do restaurante? Ele também gosta de você. Mas só vai ter certeza se você perguntar a ele. — fiquei calada, fazendo bico como uma criança mimada. Não tinha certeza das palavras dele, mas sabia que ele tinha razão. Se eu não tivesse uma conversa franca com ele talvez ficasse infeliz para sempre, presa no que poderia ter acontecido se não tivesse me faltado coragem. Uma angústia insuportável cresceu em meu peito.

—Ah Tobias, é tão difícil. — reclamei, terminando a vodca do meu copo. Já estava acostumada com o calor que ela me provocava. Tobias me serviu de mais e me puxou para seu colo.

—Talvez seja você mesma que a está complicando Evangeline. — ele falou carinhosamente enquanto acariciava meus cabelos. Deixei meus pensamentos voarem em uma possibilidade de algum dia haver um Ethan e eu.