Pelo escuro

Discussões


Os holofotes me espantaram. Não sei por que, pois eu já estava acostumada a eles. Ou achava que estava. Talvez um ano fora das passarelas tenham mesmo surtido efeito. A roupa ficou um pouco apertada e o cabelo parecia prestes a desmanchar. A única coisa que estava no lugar eram os saltos altos; estes não iriam me abandonar. Respirei fundo e ao ouvir a batida da música chegar ao refrão, soube que era minha deixa.

Era como um sonho. Viver novamente minhas lembranças me emocionou de tal modo que eu quase chorei. Mas eu não me envergonharia desse jeito, não na minha estreia de volta. Então, seguindo as instruções, mantive um semblante sério, andando com confiança pelo palco. Olhei para frente enquanto meu coração martelava contra as paredes, tão agitado que parecia querer sair. Então meu momento de exposição acabou e eu voltei para os bastidores.

Sam me avisara que eu seria uma anciã entre as modelos, pois todas eram novatas. Então durante todo o desfile, alternei entre desfilar e ajudar as outras a desfilarem. Arrumei roupas, cabelos, maquiagens e postura. Até dei algumas aulas. Poucas eram despreparadas totalmente, mas as outras estavam nervosas de mais para se lembrar de como agir. Acalmando a muitas eu me sentia como uma orientadora sorrindo e dando conselhos a sua despreparada clientela.

Quando o desfile terminou todas comemoramos. Abraçamo-nos como se fossemos velhas amigas se encontrando pela primeira vez em anos. A nostalgia era total e a sensação de dever cumprido era o que todas respiravam. Eu me sentia assim. Leve, solta como se tivesse restaurado a paz na Terra. Sam subiu em cima de uma cadeira soltando lágrimas de emoção. Ao seu lado e embaixo estava Tobias, que ajudou durante todo o desfile, mesmo não sabendo de nada sobre moda. Ele ficava sempre ao meu encalço ou perto de Sam auxiliando onde podia. Meu amigo segurou firme a mão de sua namorada e eu sorri feliz pelo casal.

—Primeiramente eu queria agradecer a todas e todos, — ela olhou para Tobias, apertando ainda mais sua mão. — por terem dado o possível e o impossível para isso acontecer. Aos nossos patrocinadores, aos que ajudou na maquiagem, figurino, cabelo e com as modelos. Obrigada por realizarem meu sonho. Tenha a certeza que estarão em meu coração.

Todos aplaudiram minha amiga, ajudando-a a descer e depois a abraçando. Eu fui a última, pois queria que fosse especial o meu agradecimento por ela.

—Muito obrigada. — sussurrei em seu ouvido quando nos abraçamos. — por ter me trazido de volta uma parte que eu achava estar morta.

—Eu que agradeço por ter permanecido comigo, mesmo quando eu não estive lá quando você mais precisou. — eu sabia que ela se referia ao Patrick. Mas aquela declaração não provocou nada além de afeto em mim. Ela estava perdoada. Patrick não era importante mais. Embora agora o problema fosse outro.

—Está tudo bem. Eu não ligo. Não o amo mais, e não sinto falta de amar. — trocamos sorrisos antes dos cumprimentos da plateia.

Encontrei meus amigos do lado de fora. Eu ainda estava maquiada e com uma roupa que Sam havia me dado, porque ela achava que era a minha cara. Apesar disso a roupa era curta e ventava frio lá fora. Assim que saí abracei meu corpo até os encontrar. Depois recebi seus cumprimentos.

—Você estava linda Eva. Igual a todos os desfiles que você atuou. — Kyra, que havia ido à maioria dos meus trabalhos nas passarelas me abraçou emocionada.

—Obrigada irmã.

—Parabéns Eva. Estava linda mesmo. — confirmou o namorado da minha amiga.

—Obrigada Caio. — Ethan veio depois de Caio, com um sorriso que seria capaz de iluminar Paris.

—Evangeline você está brilhando. — ele quase gritou de tanta empolgação. Mas primeiro tirou seu próprio casaco e o colocou em cima de mim. Apreciei o seu cheiro, maravilhada.

—É a maquiagem. — eu falei rindo. Ele me envolveu em seus braços, trazendo consigo a sensação de lar. Fiquei saboreando esse sentimento proibido até ouvir meu nome ser chamado.

—Eva, você pode vir aqui um minuto? — chamou Sam. Corri até ela e já ia pulando sobre minha amiga, mas vi que ela estava acompanhada. O senhor em questão aparentava ter meia idade; seus cabelos eram grisalhos, seu olhar analisador e superior. Cheguei mais receosa que empolgada.

—Chamou? — perguntei.

—Sim. — Sam confirmou. — Eva este é Pierre Drummond, e ele é francês. Um amigo do meu pai. Eu o convidei para vir ao meu desfile e estou deslumbrada que ele realmente tenha vindo. Mas isso não importa. Ele estava me contando que vai fazer seu primeiro desfile em Paris, para dar abertura a sua nova coleção. E ele precisa de modelos. Ficou encantado contigo e queria perguntar se você não aceita o trabalho.

—É, se você não atrapalhar sua faculdade. — quando ele falou seu sotaque se aguçou. Ele tinha traços de francês realmente. Mas eu estava espantada com a oferta. Ir para Paris, para a capital da moda era uma oportunidade incrível. Eu não poderia desperdiçar quem sabe minha carreira começa lá?

—Por quanto tempo?

—Seis meses. Vamos fazer uma turnê se tudo der certo. — ele respondeu com um sorriso de esperança. Assenti. Muito tempo. Tempo de mais. Será que valia a pena?

—Bem... Paris é incrível, mas... Eu tenho uma vida aqui...

—Pense bem Eva. Uma oportunidade assim não aparece todos os dias. — Sam falou com carinho. Mordi o interior da minha bochecha.

—Eu posso pensar?

—Claro. Aqui está meu telefone. — ele entregou seu cartão. Depois me deu outro cartão e uma caneta. — gostaria de ter o seu também. — anotei e o entreguei.

—Obrigada.

—Sou eu quem agradece. — ele se aproximou, colocando uma mão em meus ombros e me puxando para ele. Então me beijou no rosto e se virou, conversando animado com Sam.

Voltei para meus amigos, ainda em choque. Segurando firme o cartão o analisei. Era prata fosca, com apenas um número de telefone e o nome gravado em dourado. Guardei o número no bolso, pensativa. Quando cheguei, todos me olhavam com expectativa enquanto eu disfarçava. Não contaria a ninguém porque era uma decisão que cabia a mim.

—Ela só queria me mostrar um amigo da família. — sorri. Kyra se aproximou, meio abraçando meio apoiando o corpo e nós partimos dali soltando piadas que acabavam em risadas.

***

Hoje era meu dia de arrumar o restaurante; meu e de Ian. Dividimos as tarefas entre salão/banheiro e cozinha/despensa. Depois lavaríamos a frente do restaurante. Os funcionários da boate só chegariam dali alguns minutos.

Eu estava lavando as cadeiras, distraída; cantarolando baixas as músicas do Ed Sheeran que gritavam altas no meu fone de ouvido. Abaixei para torcer o pano no balde quando vi seus surrados tênis all star. Não precisava nem olhar seu rosto para reconhecer quem era. Quando levantei, Jaqueline me encarava com cara de poucos amigos.

—Precisamos conversar! — ela exclamou séria.

—Seja breve, antes que minha mão ganhe vida própria e acaricie seu rosto. — não pude conter minha fala.

—Quero que se afaste de Ethan. — franzi a testa, completamente furiosa. Expressei toda essa raiva rindo. Uma risada fria e sem humor, exatamente como eu estava.

—Nós somos amigos, — balancei a cabeça. — melhores amigos têm seis meses. Não seis dias ou seis semanas, mas seis meses. Não vou me afastar dele porque sua namoradinha pediu.

—Melhores amigos? Ah, por favor! Eu sei como você olha pra ele. Está apaixonada por ele, Eva. E eu não vou permitir que você atrapalhe o meu namoro.

—Que namoro? Relacionamentos baseados em ameaças para mim não devem ser levados a sério. — soltei. Meus olhos estavam ardendo de raiva e os dela começaram a se encher de lágrimas. Afastei-me. Não queria fazê-la chorar, mesmo ela sendo... Bem, ela. Virei às costas e ela falou:

—Mas eu o amo. Eu mereço ficar com ele. — meu sangue ferveu. Virei de volta e despejei.

—Qual a combinação de sorvete que ele mais ama? Chiclete, Morango e leite condensado, abacaxi e uva. O sabor de sorvete que ele mais compra? Abacaxi com vinho. O livro que ele mais gosta? A Hospedeira. Por quê? Porque a criatividade da autora o cativa. O seriado favorito? O que ele gosta de fazer quando não tem nada pra fazer? Quando ele está feliz? Hein? Diga-me a resposta! — exigi quase gritando. Despejei todas as perguntas dando-lhe tempo para respondê-las. Mas em todas elas Jaqueline permaneceu perplexa e não soube responder. Fui cuspindo minhas questões e me aproximando à medida que a ira se espalhava. Concluí trancando os dentes. — você não sabe nada sobre ele, Jaqueline. É só uma louca carente e desesperada, que culpa os homens e o amor por não ficarem, mas não vê que o problema é você. Ethan merece alguém que o ame.

“Que saiba preparar bem sua comida e aprecie sua risada. Que escute seus assuntos chatos e que tenha assuntos chatos também. Ethan merece amor. Todo o amor do mundo. Mas você não pode lhe dar isso. Por que ninguém dá o que não tem.”

—Você também não o merece! — ela gritou tentando me ofender. Parecia desesperada. Eu estava aliviada.

—Tem razão, eu não o mereço. Mas não cabe a você decidir isso. — retruquei calmamente.

—Ele também me ama.

—Ele está preso no medo de ser o pivô de sua loucura, do seu suicídio. Deixe-o livre. E veremos para quem ele volta.

Assim que Jaqueline saiu eu caí sentada na cadeira: nervosa, exausta e triunfante. Meu sorriso não cabia em meu rosto. Eu me sentia leve como uma pena. Minha alma estava lavada. Comecei a gargalhar, mas me interrompi quando ouvi Ian batendo palmas.

—Você estava aí o tempo todo? — perguntei.

—Sim. Fiquei só esperando uma avançar sobre a outra.

—Já fizemos isso. — ele riu e eu sorri apenas. Estava um pouco envergonhada.

—Porque não se declara a ele? — pensei um pouco em sua pergunta.

—Não tenho certeza se ele gosta de mim! — respondi meio triste.

—Mas você só vai saber se disser o que você sente a ele.

—Porém não deveria ser o homem a se declarar primeiro? — Ian pareceu incrédulo.

—Você deve estar com a criatividade lá em baixo para usar uma desculpa horrível dessa. — Ian não usou seu velho tom de brincadeira. — justo você, a garota que aceita rachar a conta no primeiro encontro e que se tornou uma irmã para todos nós? Usando essa desculpa? Não; eu não aceito. — ele argumentou e eu vi que ele tinha razão. Onde está a Eva corajosa e moderna que veio para cá? Ela não podia ter morrido, não agora. Eu preciso saber se Ethan me ama. Se tenho chance. Porque se eu tiver, vou esperar calmamente a minha vez.

***

Ian me deixou em casa naquela noite. Tobias estava de folga e Ethan simplesmente não aparecera para me buscar. Eu não estava furiosa, apenas chateada. Mas se bem que Jaqueline e ele poderiam estar terminando agora. Este pensamento me animou um pouco.

Ian tinha carro, portanto chegamos rápido. Não houve conversa; apenas alguns sorrisos trocados. Despedi-me quando chegamos e entrei a casa sentindo conforto e cansaço. Deixei minha bolsa no sofá e subi, amaldiçoando cada degrau.

Ao chegar ao andar de cima ouvi ruídos estranhos. Pareciam... Vozes. E vinham do quarto de Ethan. Com quem e por que Ethan estaria sussurrando à meia noite? Meu estômago revirou à medida que meus pensamentos imaginavam as possibilidades. Aproximei da porta para tentar ouvir a conversa.

—Você tem certeza? — perguntou Ethan.

—Claro. Eu sei que estou pronta.

—Mas Jaqueline...

—Mas nada. Quero provar que te amo!

—Só o fato de querer cortar os pulsos porque eu quis te deixar é uma prova e tanto de amor. Ruim, mas ainda assim é uma. — ui, essa doeu em mim. Aproximei ainda mais, tomando cuidado para não fazer barulho. Sim, meu estômago estava se contraindo, meu coração martelava forte e eu suava frio. Não queria que fosse aquilo que eu imaginava, mas eu sabia que era. E aquilo me fazia querer chorar.

—Eu quero mais. — ouvi mais ruídos e de repente o barulho de lantejoulas batendo no chão chegou até mim. Minha memória mostrou-me em desespero que a blusa dessa vagabunda tinha lantejoula.

Meu sangue ferveu. Se ela pensa que vai pegar o meu amigo na minha casa ela está muito enganada. Saí correndo o mais rápida e silenciosa que consegui. Cheguei à cozinha, acendi uma vela, esperei alguns segundos (impacientemente, devo acrescentar) e a apaguei, apreciando a fumaça que subia. Subi em cima da cadeira e observei a fumaça subindo para o detector de incêndio. Sorri triunfante quando pequenas chuvas começaram pela casa toda. Inclusive no quarto do casalzinho.

Desci da cadeira e coloquei a vela dentro da panela. Peguei mais velas, acendendo-as e as apagando para que soltasse fumaça o suficiente para parecer que eu estava cozinhando. Ouvi passos apressados e gritinhos até que Jaqueline apareceu na minha frente.

—Oi casal. Estava tentando cozinhar. Pelo visto deu errado. — sorri. Ethan apareceu atrás da namorada. Ele olhou para mim, triste. Mas tinha outra coisa em seu olhar. Oculta e oprimida, porém estava lá. Antes que eu pudesse identificar, ele desviou o olhar.

—Jaque, acho que já está na hora de você ir.

—Mas Ethan...

—Eu vou chamar o táxi. — ele não esperou seu argumento. Quando meu amigo saiu do meu campo de visão sorri para Jaqueline que parecia prestes a me esganar. Mas ela não teve chance, porque Ethan estava de olho. Mesmo procurando o número do táxi no celular ele estava observando nossos movimentos. E ela sabia que ele não a perdoaria se procurasse briga comigo. Então, sem opção ela apenas bufou e saiu de perto de mim.

O táxi chegou a menos de dez minutos e eu quase abracei o motorista. Queria que ele levasse a assassina da moda para bem longe, mas Ethan deu o endereço da casa dela, então não foi possível. Meu amigo entrou de volta em casa e foi direto para cozinha. Estranhei-o não ter me dado nenhum sermão, mas comemorei rápido de mais, pois logo ele voltou com a panela aberta, observando atento e meio bravo as velas lá dentro.

—Olha me desculpe não tem te buscado, mas precisava disso? — seu tom era rude.

—Porque está tão bravo? Porque eu te impedi de comer uma garota na minha casa?

—Pra começo de conversa eu não ia comer uma garota. — ele pareceu ofendido. — e isso foi infantilidade. E outra coisa, essa casa não é só sua.

—É, mas eu moro nela também, mereço no mínimo respeito. Se quiserem transar, vão para um motel. — o rosto dele estava vermelho, mas ele não recuou.

—Olha só Eva, eu comprei essa casa. E se eu não tivesse deixado, nem aqui você estaria.

—Olha se eu to incomodando tanto eu vou embora está bem? Não vou mais te perturbar e aí você pode fazer sexo com ela onde você quiser. — ele parou um pouco, recuando.

—Como assim Evangeline? — minha garganta secou. Nem sequer tinha pensado quando falei. Mas já que falei que eu despeje tudo de uma vez.

—É isso mesmo. Eu vou para Paris. Acabei de terminar de pensar na proposta que recebi no dia do desfile. Vou para Paris e você nunca mais vai precisar me ver. — falei amargurada. — porque é só isso que eu sou: um problema. Saí da casa de Patrick porque ele não me suportava mais. Saí da casa do meu pai porque ele não sabia o que fazer. E vou sair daqui porque estou atrapalhando e sendo infantil.

—Não foi isso que eu quis dizer. — seu tom era bem mais suave. — E que história é essa de Paris? — antes que eu pudesse responder, meu celular tocou. Até pensei em deixar tocando, mas o saquei e vi o contato. O letreiro mostrava “Tia Magda” e eu soube assim que atendi que não vinham boas notícias.

—Alô?

—Alô Eva? Aqui é a Tia Magda. Liguei para dizer que seu pai enfartou. Você pode vir o mais rápido possível?