Pele

Sam solitário


"Pessoas gostam da estória do patinho feio. Isto é, da metáfora do menino feio que se torna atraente, à medida que amadurece, pois os patinhos feios, e seres rejeitados de modo geral, têm uma chance de melhorar e se tornar um ser desejável,e dentro dos padrões pré-estabelecidos do que seja normal e aceitável.

As pessoas que ao contrário da fábula, nascem perfeitos e socialmente ajustados para depois se transformarem em seres deformados e repugnantes, enfrentam uma reação diferenciada e cruel. É como se nascessem borboletas para se transformarem em larvas, sempre se esgueirando nas sombras e procurando lugares escondidos para sobreviver." Diário de Sam Mills

Sam aperta o "play" do vídeo do YouTube. O indivíduo gorducho de face corada discorre sobre a doença psoríase. Slides de torsos vermelhos, descascados, ulcerados, são mostrados em poucos minutos. Por fim, o apresentador fala em tratamento. Nada de novo. Ele já fizera todos esses esquemas sem resultados satisfatórios. Há vários outros vídeos tratando do mesmo assunto, mas ele não tem paciência de vê-los todos.

Suas mãos ainda exibem a mancha vermelha da ferida de seu último surto. O dorso arde e coça, onde feridas recentes teimam em permanecer. Seu abdômen e coxas ainda estão úmidos devido o remédio com que ensopou as feridas pela manhã. Se este problema de pele estivesse somente em áreas escondidas, ele não se incomodaria tanto com isso. Infelizmente não era o caso.

"Qualquer dia eu faço um desses vídeos falando do que realmente interessa." Após pensar isso ele sentiu-se incomodado. A idéia de se expor em um vídeo para o resto do mundo ver o angustiava. Ele detestava os olhares de nojo e condescendência das outras pessoas quando estava em crise e tinha que sair de casa por algum motivo. As consultas mensais com o médico sempre foram uma tortura. A custo convenceu seu médico a atendê-lo via vídeo-conferência, mas o doutor ainda insistia em vê-lo pessoalmente algumas vezes por ano.

No verão especialmente, sair em público era uma tortura. As pessoas normais simplesmente estranhavam ver um cara de chapéu ou capuz, usando mangas compridas e luvas, fora que era desconfortavelmente quente, o que sempre provocava um novo surto da doença. Por isso e outros motivos que ele não saía mais de casa. As compras semanais eram feitas via aplicativo, as contas eram debitadas automaticamente em sua conta bancária. E seu trabalho como designer gráfico era feito em casa.

Ele não era inteiramente solitário, embora pareça que sim. Seus pais o visitavam em feriados nacionais. E ele tinha amigos. Poucos mas fiéis. Na verdade apenas três. E quem precisa de um milhão de amigos? Sem falar que isso era uma grande balela. Mesmo pessoas com um milhão de seguidores no Twitter não conhecem a todos. Os seres humanos de modo geral só reconhecem 100 pessoas como verdadeiros amigos. Uma constatação científica, segundo leu online. O resto era apenas um monte de conhecidos.

Sam baixou a cabeça e apertou os olhos. Talvez ele não fizesse parte da raça humana, afinal de contas, pois só conseguira três. É claro, poderia ser pior. Ele podia não ter nenhum.

"Talvez nenhum fosse o melhor pra mim. Talvez um dia seja arrebatado por alienígenas e levado para o planeta psorya na cidade da psorizolandia, onde todos são feridentos e descascados. Ou onde a atmosfera, gravidade e elementos naturais deixe a todos sãos e perfeitos."

Sam teve um instante de calma e alegria interior. Se isso realmente existisse seria a solução para seus problemas. O pequeno estado de bem-aventurança o deixou momentaneamente feliz, o que lhe deu ânimo para iniciar uma faxina em seu apartamento, antes que a depressão voltasse.