Pele

Musos e musas



O telefone celular começou a tocar. A flauta de "My heart will go on" inundou o ambiente. Sam esperou a toque se prolongar até o fim. Sabia quem estava chamando. Uma jovem bonita e talentosa, chamada Ruby, estilista e melhor amiga. Desde o dia em que se encontraram no consultório de dermatologia, e Ruby cismou de conversar com o jovem arredio e desconfiado que se recusava a fazer contato visual com os outros seres humanos, eles praticamente conversavam pelo telefone todos os dias. Ruby assumiu a função de assistente social, cuidadora de inválido e grilo falante de um recluso e introspecto Sam. Infelizmente hoje ele não queria falar nem com os melhores amigos. Ruby era insistente. Chamou mais umas três vezes.

"Desista, Ruby, eu não vou atender." Pensou. Com o tempo ela desistiu.
Sam sentou-se à escrivaninha e abriu seu último trabalho no PC. Estava desenhando a capa de um CD. Em tempos de arquivos digitais ainda havia gente comprando CDs. Não fazia mal. Sua arte seria usada na loja virtual. Ele concluiu um desenho rebuscado com filigranas e nuances que se perderiam ao se confundirem com o fundo negro. Mas isso era proposital. Pegou o arquivo com imagens em preto e branco do cantor. Um pouco de photoshop e pronto. Mandaria o trabalho para apreciação. Quase sempre era rejeitado na primeira tentativa, mas talvez tivesse tirado a sorte grande e seu trabalho fosse do agrado do seu chefe. E-mail enviado, saiu da página e abriu outra: Deviant art. Tinha desenhos para postar.

O primeiro desenho mostrava uma jovem magra com músculos bem torneados, lábios grandes e chapados, uma lisa e longa cabeleira negra cobrindo-lhe metade do rosto, e a parte não coberta era dominada por um imenso olho azul, esfumaçado e com exuberantes cílios postiços. A moça não tinha uma postura amigável, e apesar de estar completamente nua, em uma pose frontal de seios empinados, sua atitude e figura eram desafiadoras, como uma dominatrix.

Sam ainda se lembrava vivamente dela. Ele tinha 15 anos quando seu pai o levou a um prostíbulo. Escolheram aquela moça para diverti-lo. Seu nome era Madison. Ele tentou se controlar e não tremer, mas ali, naquele ambiente desagradável, cheio de gente estranha, com uma moça nua, que mais parecia uma entidade de outro mundo, onde se esperava que ele tivesse sua primeira relação sexual, só conseguia tremer e balbuciar palavras sem sentido. Ela o ajudou a despir-se. Notou as cicatrizes em sua pele e Sam quis que se abrisse um buraco no chão pra esconder sua vergonha. Ela aparentemente não se importou. Guiou-o para a cama e fez todo o trabalho por ele no que tange ao ato sexual. Em 5 minutos tudo tinha acabado e Sam tratou de vestir-se rapidamente e escapulir dali. Graças aos céus seu pai já havia pago a cafetina do lugar. Ele jamais esqueceria daquela moça e do quanto o sexo lhe pareceu algo frio, rápido e impessoal.

O segundo desenho era mais solar. Era o retrato de um modelo masculino. Igualmente nu, estava recostado e emoldurado por um arco de madeira formando um portal. Tinha longa cabeleira negra, olhos azuis estreitos e músculos pouco desenvolvidos, apesar dos ombros largos e do sexo avantajado. Pelos cobriam seu tórax, e suas mãos, num misto de delicadeza e força física, pareciam sustentar o peso do portal. Ele era calmo e auto-confiante, como um Adão sozinho no paraíso. Uma figura muito diferente da primeira, em que a jovem parecia se preparar para um combate. Este homem já havia ganhado a batalha, sem nem mesmo tentar.

Sam havia descoberto aquele modelo no instagram. Chamava-se Matteo. Tudo nele lhe parecia ótimo. Seu físico, aparência, olhar, ingenuidade e aspirações. Sam até o invejava. Tinha certeza que se apaixonaria por ele se o visse pessoalmente. Algo que nunca aconteceria, contudo. Sam tinha ojeriza a contato humano. O bullying na escola tratou de criar esse traço na sua personalidade. Isso e a psoríase. O belo Matteo jamais se apaixonaria por uma ferida humana como Sam.

O telefone tocou novamente. A flauta do titanic estava irritante e era difícil entrar em sintonia com a suavidade de Matteo, com aquele toque insistente.

— Sim, Ruby, o que é?

— É assim que atende aos amigos? Me lembre de nunca mais ligar pra você, seu ingrato.

— Ok! Ruby, estou te lembrando pra nunca mais ligar ...

— Pare com isso. Liguei pra perguntar como você está. Se está em crise e saber se precisa de algo. Eu me preocupo com você.

— ...

— Diga algo, Sam.

— Obrigado! Eu estou bem. Verdade. Não estou em crise e ... Estou realmente tocado por você pensar em mim.

— Arrependido por me tratar mal?

— ...

— Sam!

— Sim, sim. Estou arrependido. Você é minha melhor amiga, Ruby. Preocupa-se comigo mais do que meus próprios pais.

— É pra isso que servem os amigos.

— Obrigado! Tchau, Ruby!

— Ei ...

Sam desligou o celular e botou no modo avião. Ruby era excelente, mas às vezes exagerava e se comportava como uma mãezona ou irmãzona. Sam não se sentia confortável com isso.

Voltando ao deviant art, postou o terceiro desenho. Uma bela adolescente de rosto redondo, longos cabelos negros e curvas. Seu nariz arrebitado e seus lábios rosados davam um toque inocente a única modelo completamente vestida de sua coleção. Suas roupas eram antigas mas deixavam transparecer que era uma estudante. Entretanto estava mais pra Lolita do que para Anne Shirley.

Seu nome era Sarah. Sua colega de escola. Seu primeiro amor platônico. Pensava nela nas longas e tristes noites enfurnado no seu quarto de adolescente, durante as primeiras crises de psoríase. Sonhava com o toque de suas mãos. Desejava sentir seus dentes brancos na própria carne. Era gordinha, mas era encantadora. Infelizmente, o que poderia ser seu primeiro amor se transformou na sua maior decepção. Sarah não conseguiu esconder o nojo e repugnância ao ver as marcas da doença nos braços e mãos de Sam. Ele não a culpava. Ele também tinha asco de si mesmo.

Sam fechou o computador e rodou a cadeira em que estava sentado. Ao seu redor, nas paredes de seu apartamento, diversos desenhos lhe sorriam e o convidavam para compartilhar sua alegria de viver. Madisons, Matteos e Saras estavam perenemente jovens e sorridentes a lhe fazer companhia.