Pasha

Bônus - Parte II


Bônus

Parte II

Foi terminando de correr em volta do centro de treinamentos que Margosha encontrou Oleg, ativo em suas atividades mais cedo que muitos atletas. Ao reconhecê-la, Nikiforov reduziu as passadas em um trotar mais leve, até parar totalmente. Sem acesso a uma academia e poupando sempre que possível, ele improvisava os exercícios como podia.

“Bom dia, krochka! O que é que você traz aí e é de comer?” brincou, olhos atentos na embalagem embrulhada por um pano estampado.

Era de comer, porque agora eu vou embora.” E ameaçando de fato fazer isso, Margosha deu as costas para Oleg, se afastando alguns passos até que ele rapidamente a alcançasse.

“E vai me deixar aqui passando fome? Que tipo de pessoa seria tão má desse jeito?”

“Ah é? E se eu tiver envenenado?”

Nah, isso tem cara de algum feito da Lilia, não seu.” A menina riu, puxando a alça da mochila sobre o ombro.

“Meu pai pediu para avisar que vai se atrasar, hoje. Ele e Lilia conseguiram um encaixe de última hora para irem ao médico, mas o local é um pouco distante, então provavelmente ele só vai conseguir chegar aqui depois das dez horas.”

“Tudo bem, obrigado pelo aviso, Margosha” enfatizou, mostrando não estar mais usando o apelido para provocá-la. “E isso aí, é mesmo pra mim?”

Margosha revirou os olhos, tal como Yakov também fazia quando incomodado, mas não disfarçou o sorrisinho, coisa que Yakov definitivamente não fazia.

“Não vai estar muito quente, mas é kasha.” Dramático, Nikiforov tomou o pote embalado e o apertou junto ao peito.

“O seu kasha é o melhor kasha do mundo.”

“Tá, tá, depois devolve o pote,” pediu ela, se afastando sem muito ânimo. “E com tampa dessa vez!”

Contrariado por ganhar as costas da menina, novamente Oleg a alcançou, passando um dos braços pelos ombros dela, puxando-a para baixo.

“Oleg, que nojo, você tá todo suado!” Reclamou Margosha, tentando afastá-lo.

“E eu não te largo até me contar porque tá fazendo essa cara esquisita.”

Ela já deveria saber que Oleg perceberia. Ele era meio burro para a maioria das coisas, mas tinha lá suas exceções. Margosha também sabia que nessas ocasiões, não conseguiria esconder nada dele.

“Não é nada, é só que… Eu não sei, eles estão bem animados, não é? Com o bebê e toda essa novidade.”

“Sim…?”

“E eu estou muito feliz por eles, é verdade, é meu irmão ou irmã que vem aí afinal de contas, só que…” Margosha ergueu os olhos castanhos para cima, aquela sua tentativa tão comum para evitar que as lágrimas caíssem. “É exatamente isso. É a criança do meu pai quem vem aí. Uma dele, sabe?”

“Hey, Gosha, não é bem assim…” Trocando o abraço insistente e irritante por um forte e acolhedor, Oleg tentou consolá-la o melhor que sabia. “Tenho certeza que Yakov não pensa desse jeito.”

“Eu sei que eles não vão deixar de cuidar de mim, mas tem uma diferença, não é? A Lilia eu entendo, eu nunca fui filha dela, nem tenho idade pra isso, mas com meu pai… Nem ele é velho o bastante para ser pai de alguém com minha idade, a não ser que ele tivesse sido precoce”, Oleg não pôde evitar rir baixinho, mesmo que Margosha estivesse sendo sincera. “Mas com isso vai ser diferente. Ele vai deixar o hospital com a Lilia já com um bebezinho, não achar a criança em uma caixa, como foi comigo.”

“Margosha…”

“Eu os vejo tão felizes, claro, em toda aquela discrição, conversando baixo sobre as expectativas… E eu nunca fui essa expectativa, Oleg.”

Finalmente, Oleg a soltava, mas agora ela não sabia se queria deixar ir. De qualquer forma, Margosha não reclamou, preferindo se calar. Já havia falado demais para seu perfil tão reservado.

“Faz alguma diferença se as duas crianças cabem no mesmo abraço?”

Ela queria ter discordado ou mudado de assunto — coisa que fazia muito bem — contudo, só conseguiu negar com um movimento breve.

“Criar você deu a Yakov quinze anos de experiência para saber o que fazer com o novo membro da família. Sem você, ele estaria mais perdido do que já está.” Margosha sorriu de lado, agradecida pela tentativa de Oleg em confortá-la. Quando uma das mãos do patinador alcançou seu rosto para afastar as lágrimas, ela notou ter se entregue ao choro lamentos atrás. “Não existe nada que ele não faria por você, Margosha, independente de quem esteja chegando. Ele aceitou não receber pagamento pelos seus serviços em troca de ter alguém para cuidar de você, lembra disso?” Ela concordou. Era verdade, seu pai nunca cobrou aulas e treinamentos de Oleg antes dele entrar na categoria sênior, aceitando em troca disso, um acompanhante para Margosha. “Lembra nada! Tá na sua cara que não lembra!"

Ele sempre fazia aquilo, jogando uma piadinha para não soar totalmente sério.

"Lembro sim, Nikiforov, eu era pequena, mas me lembro muito bem!"

"Era pequena?"

“Idiota.” Ela estalou a língua, conseguindo rir um pouco mais.

“Ele sempre foi de falar sobre a filhinha dele por aí. As poucas vezes que eu o vi sorrindo, ou foi porque algum concorrente babaca passou vergonha, ou porque ele tinha algo a elogiar sobre você. Viu? Até os mais nobres momentos de Yakov tem a ver com a filha!”

“É uma grande honra estar a frente de todo esse veneno do mundo da patinação artística, obrigada.” Tentou entrar na piada, coisa que não era muito fácil. Seu humor era muito parecido com o do pai.

Seu humor era muito parecido com o do pai.

“Já que vocês dois não são muito de falar sobre sentimentos”, e aquela era uma crítica a como ambos tinham a péssima mania de esconder palavras e sentimentos. “por que não vai para casa descansar? Qualquer coisa eu te acoberto, depois.”

Margosha, que normalmente não era acostumada a perder nenhum dia de aula, considerou a proposta.

“Voltar e passar o dia todo ouvindo Stammi Vicino, chorando no meu quarto, parece ótimo, vou fazer isso.”

“Eu vou quebrar aquele disco.”

“Não ouse!” Alertou enquanto se afastava. Se qualquer trincado aparecesse naquela edição limitada, Nikiforov nunca mais seria visto, porque ela mesma desovaria o corpo. “Conto com você como álibi!”

“Pode deixar, krochka!” Vendo-a se virar para ele novamente, fez Oleg voltar a correr, dessa vez para dentro do rinque. Não arriscaria perder uma refeição daquelas, não sabendo que se quisesse, Margosha conseguiria facilmente alcançá-lo.

De volta ao apartamento, a garota deixou de lado uniforme e pertences escolares, colocando para tocar o disco de sua ópera preferida, o censurado Trinus, cujo a faixa Stammi Vicino fazia valer a peça inteira. Era uma música linda demais para tão poucos fãs, ou quem sabe os fãs fossem poucos justamente pelo romance de Nika — ou Niko, como na versão em que vira — e Pavel não terem tido a chance de florescer dentro do regime soviético.

Com a música de fundo, Margosha decidiu se distrair com o que sabia de melhor; costurar. Ou quase. Ela ainda fazia uma barra de calça maior do que a outra, mas sempre se esforçava para que o resultado fosse o mais caprichado possível. Na pior das hipóteses, ela sempre podia disfarçar algum erro com bordados extras. Funcionava no caso dos figurinos de Nikiforov.

Hey! Quem sabe um dia ele não poderia patinar ao som de Stammi Vicino?!

Mais calma do que há algumas horas, Margosha se deixou levar por ideias de programas artísticos futuros e dedicou sua atenção ao recorte de moldes e a tentativa da costura de um macacão que ela esperava ser quente o bastante para o bebê que chegaria em janeiro. E se tentasse também costurar um parzinho de luvas sem dedo?! Ela devia ter o recorte de jornal com a ideia, perdido em algum lugar…

Entretida com todos os pontos corridos e passados para melhor acabamento, Margosha só percebeu o retorno de Lilia e Yakov quando ambos já tinham entrado no apartamento, Feltsman próximo ao seu cômodo, batendo na porta semi aberta.

“Podemos entrar?”

“Nikiforov nos contou que você não estava muito bem.”

“Disse até que estava verde.”

Margosha não impediu a risada de sair por entre os lábios, frustrando sua tentativa de manter a seriedade. Era aquilo que Oleg chamava de álibi?

“Não foi nada, só um mal estar.” Lembrando o motivo, ela voltou a se concentrar no pequeno recorte de tecido. Yakov bufou baixo.

“Sabia que ele estava exagerando.”

Aham.” Sabendo que o marido por todo o caminho até o apartamento dirigiu preocupado, Lilia o ironizou. Voltando para a enteada, ela sorriu. Pequeno, mas ainda assim, um sorriso. “De qualquer forma, Margosha, te compramos um pedaço de poliot. Não há nada no mundo que não se cure com um pedaço bem calórico de bolo, não é?”

“Que tal antibióticos?” Já Yakov era um tipo bem mais dramático de pai.

“Remédio não tem gosto de creme açucarado, Yakov.”

“Obrigada, vocês não precisavam ter se preocupado tanto…” Principalmente sabendo que com um filho a caminho, eles tinham gastado com ela, por uma doença que sequer era real.

“Nos preocupamos até quando você está esbanjando saúde.” Sem saber ter dito algo tão importante para as inseguranças da filha, Yakov apontou para o toca-discos perto da máquina de costuras. “Os vizinhos já começaram a bater na parede?” Sob risos, ela discordou.

“Ainda não.”

Ocupando um lugar na cama de solteiro, tomando o cuidado de não sentar em nenhum alfinete ou agulha, o casal pedia muda permissão para ter a atenção da adolescente. Desconcertada com os olhares sobre si, ela apenas falou a primeira coisa que podia pensar;

“E como foi no médico?”

“Deu tudo certo! Ele era mesmo um bom profissional, no fim das contas.” Yakov definitivamente precisava reconhecer as boas indicações de Porkhomova. Pelo jeito as experiências maternas dela a tornaram uma exímia especialista.

“Eu falei para você, não falei?”

Com aqueles dois era sempre assim, eles sempre pareciam prestes a começar uma discussão irônica, mas aquilo nunca se estendia muito.

“É…” Por um momento, Yakov engasgou. “Estávamos ansiosos para te ver.”

“Muito, mesmo.”

“Oh…” A insegurança de Margosha não a deixou pensar em nada de bom, embora nenhum deles jamais a tenha tratado menos do que o melhor. “E sobre o que é?”

“Tem algo que Lilia e eu discutimos há um tempo…” Yakov tentava explicar. Palavras não eram seu forte. “Sobre o nome do bebê.”

“E sempre pensamos que seria uma honra para nós se você escolhesse.”

Os grandes olhos castanhos de Margosha abriram-se ainda mais, surpresa com anúncio tão importante. Aquilo tinha um significado enorme, ela sabia. Ninguém escolhia um nome por acaso, não um nome que seria levado pela vida, sua primeira carta de apresentação ao mundo, a palavra que mais lhe seria associada. E eles queriam confiar aquilo a Margosha?

“Nada mais justo, na verdade,” Lilia aproveitou o silêncio da enteada para emendar mais aquela informação. “que o seu irmão tenha um nome escolhido pela irmã dele.”

Os olhos surpresos agora marejavam, emocionados com a principal espera do dia, a novidade que em nada mudaria o amor pela criança, mas que os guiaria na escolha de um precioso nome — não, não, que a guiaria. Essa escolha era toda de Margosha, inclusa em sua totalidade no seio daquela inusual família.

“Como sempre foi, krochka”, ela até podia ouvir Nikiforov falando.

“Claro que não precisa ter pressa, ainda temos três meses pela frente!” brincou Yakov, sem querer forçar nada.

“E também não precisa escolher se achar que é responsabilidade demais, só não queremos que se sinta forçada”, Lilia também dividia daquela preocupação.

Sorrindo, emocionada pela felicidade mesclada a tolice de antes, ela olhou para seu toca-discos, sua escolha indubitável;

“Pavel.”

.:.

Adiantado, ele seguia seu caminho para o Kirov. Noite de apresentação, felizmente mais uma para a lista daquela temporada, as oportunidades em uma feliz crescente. Dimitri amava dançar, amava seu emprego e amava sua parceira de cena. Para ficar melhor, ele adoraria ser promovido a primeiro bailarino. Aos trinta e dois anos de idade, adoraria também que aquilo não demorasse muito. Às vezes sentia-se tolo em almejar tanto sobre a própria carreira, mas Vilena — a sua, não a mocinha insossa do corpo de baile e amiga daquele grupinho insuportável — não o deixava desanimar. “Um dia seremos os primeiros bailarinos dessa merda, aqui”, ela costumava dizer, entre uma tragada e outra. “E quando isso acontecer, terei tudo o que quiser. E você também.”

As ambições de Romanova eram diferentes, grandiosas, muito mais a ver com as posses negadas durante uma difícil infância do que qualquer outra coisa, mas Dimitri? Dimitri só podia se realizar no trabalho, uma vez que o romântico sonho que vinha logo depois desse, não se faria realidade para ele; casamento e filhos.

Ele podia, se quisesse, morar com um futuro interesse romântico e fingir estar apenas “dividindo o aluguel”, como faziam muitos bailarinos e bailarinas para ocultar seus relacionamentos. Eles fingiam serem bons amigos, os outros fingiam acreditar e assim ninguém machucaria o tradicionalismo soviético. Tudo estaria bem.

Não era a mesma coisa. Soloviev, crescido em uma grande família, caçula de cinco irmãs e assistindo todas se casarem, alimentou sua fantasia com cerimônias e uma festa barulhenta, cheia de álcool e salada de batatas para os convidados se empanturrarem madrugada adentro. Quem sabe um dia filhos? Adoção nunca foi uma ideia descartada. Mas Dimitri sabia que aquilo não era para ele. Nunca dar seu sobrenome a alguém, ou tomar o do outro como seu. Cedo aprendeu que seria para sempre Dimitri Ivanovich Soloviev e aquilo teria que bastar.

O mais difícil, nisso tudo, eram os dias em que a conformidade não bastava e ele se via obrigado a encarar aquele que em sua adolescência apaixonada, o fez sonhar com um primeiro beijo e buquê de flores.

Yakov Feltsman estava ali, em pé em frente ao Lada, mas sem se apoiar nele, a postura muito ereta não o deixando vacilar o que anos de ensaio e treino árduo o ensinaram. Dimitri sabia bem, moldado pelo mesmo tipo de treino, na mesma sala de aula dividida ao longo de dez anos.

Seu primeiro instinto foi dar a volta, alguns passos para longe enquanto puxava o cabelo curto para trás e batia no rosto, mentalizando suas olheiras para longe. Sentindo-se minimamente apresentável, ele voltou a caminhar de volta à entrada.

“Feltsman.” Decidiu cumprimentá-lo primeiro, temendo existir uma grande possibilidade de Yakov não tomar essa iniciativa, depois de tanto tempo.

Para terminar de resgatar aquele sentimento mal curado, o ex-patinador sorriu, largo, mas sem exibir os dentes, seu jeito reservado de expressar felicidade que ainda se mantinha.

“Soloviev! Bom te ver!” Amistoso, Yakov ofereceu a mão para cumprimento, prontamente retribuído pelo bailarino. Dimitri se conhecia bem o bastante para saber se render fácil à ilusão de ser relevante para alguém. Por isso mesmo tentou manter os pés muito bem plantados no chão. “Parabéns pelo trabalho, você merece.” Muito concentrado em manter o coração o mais controlado possível, Dimitri levou algum tempo para entender o elogio, o suficiente para Yakov perceber a confusão nos curiosos olhos mel o fitando. “Sempre que posso vir assistir Lilia, você está no palco. É merecido. Sempre foi um excelente bailarino.”

Soloviev sentiu que poderia começar a gargalhar ali mesmo por causa daquele elogio, precisando se esforçar para só exibir um sorriso grato. Ele sabia que Yakov vê-lo era apenas uma consequência de estar lá para assistir a antipática da esposa, mas ser notado mesmo assim ainda fazia palpitar algo dentro de si.

“Fico lisonjeado pelo elogio, principalmente considerando como era difícil atender às expectativas da professora Baikova.” A careta de Yakov fazia parecer arrepiar as lembranças da adolescência. “Você também se saía muito bem nas aulas. Teria sido um excelente bailarino.”

Elogiá-lo daquela forma era um risco e tanto, Dimitri sabia, mas não conseguia evitar. A ideia de que se Yakov tivesse optado pelo balé ao invés da patinação o teria poupado do trauma de uma fratura tão grave, o assombrava desde as Olimpíadas de 64. A queda de Feltsman era uma cena que doía sempre que se lembrava.

“Duvido muito, mas é uma honra ouvir isso de um bailarino como você, Soloviev. Muito obrigado.”

Entre responder “de nada” e começar a chorar de emoção, Dimitri decidiu mudar de assunto, certamente o mais doloroso deles.

“Parabéns, a propósito.” Curioso pela razão do cumprimento, Yakov manteve os olhos sobre a figura alta de Soloviev. “Pelo seu trabalho como técnico, é claro,” estaria sendo muito óbvio seu nervosismo? Que vergonha um homem de sua idade agitado daquele jeito. “mas também pela família crescendo.”

O sorriso de Yakov voltou a crescer, dessa vez grande o bastante para exibir os dentes, abrindo seu rosto naquela rara feição de felicidade. Inegavelmente, Feltsman e Baranovskaya combinavam muito. Não existia ninguém tão perfeito quanto Lilia para ele, mas isso ninguém ouviria Dimitri falar em voz alta.

“Muito obrigado!”

Eram poucas as palavras, mas elas significavam o mundo, Soloviev sabia. Sua criação e a época vivia obrigava as pessoas a reduzirem seus sentimentos em palavras mínimas. Esperava que a felicidade, contudo, não fosse tão curta assim na vida de Yakov.

Oh, Dimitri Soloviev, que grande tolo.

“Eu preciso ir, aquecimento e todas essas coisas.” Meia verdade. Ele poderia aquecer mais tarde, mas preferia evitar que a esposa de seu alvo amoroso o visse ali, principalmente sendo Dimitri parceiro de Romanova, a maior inimizade não assumida de Lilia dentro do Kirov. Ela também era sua maior inimizade, mas por outro motivo, um bem mais pessoal. “Acho que você tem experiência o bastante, já, mas boa sorte com o futuro bebê.”

“Eu não estou tão certo assim, mas obrigado, novamente, Soloviev.” Com tapinhas amigáveis, os mesmos que costumava distribuir há mais de quinze anos, Yakov se despediu. “Até uma próxima apresentação.”

“Vou ficar esperando!” Jogou como quem não quer nada, se afastando com um aceno.

Yakov riu discreto e acenou de volta. Não demorou muito para Soloviev entrar pela porta e perceber Lilia, que sem notá-lo, atravessava o lado oposto do corredor para fazer o mesmo caminho em direção à saída. Sua curiosidade, dolorosa arte de se auto punir, o obrigou a recuar, disfarçar o interesse pelo lado de fora e flagrar a alegria de Yakov Feltsman parecer inflá-lo como um balão conforme Lilia se aproximava. E aquele homem, sempre tão discreto, recebeu a esposa com um beijo, capaz de apunhalar o coração de Dimitri, abrindo a porta do carona logo em seguida para tirar do banco do carona uma única flor, responsável por terminar de atravessar o peito de Soloviev.

Vilena teria dito que eles eram ridículos e ele com certeza queria concordar, mas naquele momento parecia impossível — ele queria tanto metade daquela estupidez para si mesmo... Por ora, decidiu tomar seu caminho até o palco, aquecer junto ao corpo de baile e quem sabe deixar sua dor dançar ao ritmo de Tchaikovsky.

“Dima, ainda bem que você chegou!” Vilena Romanova o recebeu sorrindo, se aproximando com o tutu azul da Cinderela que interpretaria ao seu lado no terceiro ato de A Bela Adormecida. Quando o sorriso da ruiva sumiu, ele soube ter deixado transparecer demais seus sentimentos. “O que houve, meu amor?”

Soloviev suspirou, o suspiro de um coração partido. Sua amiga sabia de tudo e ele nem precisava entrar em detalhes para ela entender que ele havia esbarrado em Yakov antes de chegar ali.

Aceitando o abraço, Dimitri apertou a moça, escondendo o rosto na curva do pescoço esguio, assim como tentava esconder seus sentimentos complicados.

“Nada, não. Já vai passar.”

.:.

Definitivamente afastada do Kirov até segunda ordem, Lilia agora se preparava para a chegada não de Pavel, mas de seus amigos. Entusiasmados com a criança que certamente seria um pouquinho de todos, a sugestão de uma pequena celebração surgiu quando Lilia ainda cabia em um figurino sem ajustes. Ela não levou a ideia muito a sério dado o calor do momento, tampouco imaginava que as amigas continuariam animadas com a ideia, até ser surpreendida por uma Sinya e sua lista de compras, questionando o que mais Lilia gostaria que fosse acrescentado. E isso porque ela ainda não tinha conversado com Yakov, na época. Ao comentar sobre a sugestão do grupo, contudo, ele não se opôs, curiosamente animado com a confraternização a ser celebrada no início de dezembro.

E lá estava ela depois de meses, organizando a limpeza do apartamento para a recepção enquanto marido e enteada não voltavam para casa. Tomando as rédeas da pequena festa, Sinya Filatova surpreendeu Lilia batendo o pó do tapete no meio do corredor naquela fria manhã de sábado, deixando com ela um carregamento significativo de tubérculos, para desaparecer logo em seguida. Nas palavras da solista, ela iria buscar o resto.

Na segunda vez que ela voltou, Lilia já achava que a comida era o suficiente para a salada programada, até mesmo um ensopado; o mesmo pensamento já não era dividido com sua amiga. Sinya ainda fez uma terceira, quarta viagem, restando a Lilia apenas assistir sem muita reação para o estoque deixado ao lado do sofá e que sozinha ela não conseguiria levar para um lugar mais discreto. Não que tivesse muito espaço sobrando no apartamento limitado. Pelo menos eles ainda teriam enlatados o suficiente até o Ano Novo.

“Com licença, sua amiga mandou subir com isso.” Abrindo a porta com a ponta de um dos pés enquanto equilibrava um fardo alcoólico, Oleg Nikiforov entrou no apartamento com Yakov logo atrás. “Isso tudo foi comprado ou apenas furtado de algum galpão desavisado?”

“Ainda não tenho certeza,” respondeu Lilia, apenas apontando para onde as caixas podiam ser deixadas até que ela pensasse melhor onde escondê-las. Suspirando o cansaço cada vez mais frequente com o avanço da gravidez, ela esqueceu a limpeza do apartamento por um momento e se escorou no marido. Yakov deveria estar mais cansado do que ela, mas o pensamento não lhe acertou de imediato. “Como foi o treino?”

“Muito bem. Consigo ver Nikiforov no top dez dos Jogos de Inverno.”

O rapaz pareceu não gostar muito do comentário elogioso.

Top dez, treinador? Eu quero o ouro!”

“Com Robin Cousins na competição?” Yakov comentou, bem humorado. O humor de Oleg azedou mais. Além de não ter conseguido classificação para o novíssimo NHK Trophy (eles sabiam muito bem o porquê), ainda teve de assistir o britânico levar o ouro da estreia.

“Vou desertar quando for competir nas Olimpíadas.”

“Não fale mais comigo quando fizer isso.”

Lilia revirou os olhos para aquelas duas crianças grandes, bocejando a exaustão de ter lidado com a limpeza de um apartamento com apenas quatro cômodos.

“Desde que horas está de pé, Lilia?” Yakov perguntou com carinho, notando com graça cada piscada pesada dada pela esposa.

“Eu não parei desde que vocês saíram.”

Afinal, mesmo pequeno, Lilia não limpou aquele apartamento de uma só vez, precisando de algumas pausas ao longo das horas. Estar grávida tinha esse tipo de esgotamento em curtos períodos de tempo.

“Então tente ir dormir, você lembra o que o doutor Zychik disse sobre longos tempos em atividade, não é? Descanse, Lilushka, cuidamos do resto.”

“Lilushka,” sussurrando, Oleg tirou sarro do treinador, não conseguindo superar quão diferente era o Yakov esposo do Yakov técnico.

“Eu nem comecei a cortar as batatas.”

“Oleg faz isso.”

Um “ugh” pode ser ouvido antes de Nikiforov responder.

“Posso pelo menos fazer isso sentado?”

O rapaz foi ignorado.

“Eu ainda nem lavei o cabelo…”

“Pode fazer depois de acordar.”

O que em outra situação poderia ter rendido um bico e retaliação, fez Lilia enfim concordar.

“Tudo bem, eu vou.” E por muito pouco ela não se recusou a largar o marido. Andava muito apegada a ele ultimamente, o que era imperdoável. “Cubinhos simétricos, Nikiforov, ou eu te bato.”

Oleg não se deu o trabalho de responder.

“Ah, Lilia, não esqueça as meias de compressão!” E imitando a careta do patinador mais novo, a bailarina parecia prestes a mandar o marido para um lugar nada agradável.

“Não vou usar aquela coisa horrorosa, Yakov, você jogou dinheiro fora.” Antes de desaparecer pela porta, ela avisou; “Me acordem em uma hora, ainda preciso me arrumar.”

E ninguém ousaria contrariar aquela mulher, muito menos em tão delicada situação. Ou, como qualquer um de fora podia ler, Yakov faria seus gostos tanto quanto possível.

Lilia acordou antes que alguém pudesse chamá-la, seu subconsciente desconfiado demais para permitir que outra pessoa se responsabilizasse pelo seu horário. De dentro do quarto podia ouvir uma conversa baixa e animada, identificando a voz de Margosha, que finalmente voltara da escola.

Sem chamar atenção, Lilia abriu um pedaço da porta e ficou ali, olhando o trio muito empenhado em cozinhar e contar piadas ao mesmo tempo. O cheiro da carne refogada para o caldo preenchia o cômodo aberto, assim como as risadas discretas, volta e meia caladas por um chiado pedindo silêncio. E por aquilo, somente por aquilo, Lilia permitiu-se sorrir. Pavel gostaria de fazer parte de um cenário ridículo como aqueles?

Logicamente, longe de facas até pelo menos seus dezessete anos.

"Lilia, não esperou dar uma hora?" Yakov enfim a notara ali, mas as mãos não deixavam de ralar o repolho roxo. Um homem de muitos talentos, de fato.

"Meus instintos de bailarina nunca me deixam descansar," brincou, sorrindo para Margosha, que já se preparava para cumprimentá-la.

"Boa tarde, Lilia! Como foi seu dia? Está com fome? Eu trouxe pão preto na volta da escola, ainda tem um pouco de kasha dessa manhã, posso esquentar para você!"

"Pra mim você não ofereceu nem um copo d'água," e como não podia deixar de ser, Nikiforov mais uma vez perturbou a paz de Margosha, que somente aquela hora preferiu ignorar. Ela poderia roubar o último pedaço do bolo de cenoura como vingança mais tarde.

"Obrigada, querida, mas acho melhor ir me arrumar antes de todos chegarem. Depois eu prometo ajudar."

"Chega de afazeres por hoje, Lilia," pediu Yakov, mais aliviado por agora poder contar com o efeito anestésico que sua filha tinha sobre a esposa. "Estamos nos saindo bem, olha só, ainda não ralei meu dedo."

Lilia precisava culpar os hormônios por estar assim tão conivente e emocionada com argumentos ridículos e situações comuns; contudo, existia algo tão encantador na preparação que antecipava a pequena festa, que sentia algo começar a se remexer dentro de si, ansiedade em ter todos reunidos. Aquelas eram emoções suas ou de Pasha? Difícil dizer; porém, pelo discreto manifestar da criança, aquela bagunça era mais do que bem-vinda.

Ela estava no meio de seu banho quando ouvir uma agitação característica tomar a sala, os cumprimentos altos de Irisa chegando a atravessar a porta. É claro que ela chegaria mais cedo, ansiosa do jeito que era. Lilia não tinha dúvidas de que a encontraria tomando conta das panelas assim que deixasse o cômodo.

“... você tem que mexer raspando a lateral da panela e trazendo a colher para o meio, senão vai acumular uma crosta no centro e queimar tudo.” E lá estava ela, colher de um lado e o filho mais novo do outro. Não que existisse qualquer dúvida sobre isso. Ao lado, observando a panela borbulhante, Oleg Nikiforov não parecia muito feliz, principalmente por ser o único ser humano presente além da bailarina e seu filho.

“Acho que sei mexer uma panela.”

“Lilka, como você está linda!” Emocionada, ela largou patinador e colher a própria sorte, correndo abraçar a amiga. E correndo, naquele pequeno espaço, era dar dois ou três passos mais largos até a moça. “Você faz tanta falta no teatro!”

“Irisa, você me viu na quarta-feira.” Rindo como se tirasse sarro do exagero da mãe, o pequeno Grisha de um ano e meio tombou a cabecinha loira para trás. Lilia sempre se derretia por aquela criança.

“Não é a mesma coisa! E você pare de rir da sua mãe, mocinho!” Fingindo-se brava, Irisa chamou atenção do filho, o que só fez a risada se intensificar. Acostumado com a bagunça de pessoas presentes em sua vida, logo se ofereceu aos braços de Lilia, que sequer hesitou em pegá-lo. “Seu traidor! Trocando de mãe?!” Mudando para um tom mais afetado e triste, Irisa fez uma careta chorosa, simulando o que seriam lágrimas.

Era para ter sido uma brincadeira, mas a sensibilidade de Grisha não o deixou rir daquela cena, e logo era a criança quem estava chorando.

“Oh não, meu amor, me perdoe! A mamãe só estava brincando!” Pegando o filho novamente sem nem perguntar a Lilia, Irisa começou a niná-lo, enchendo seu rostinho de beijos. Tentando disfarçar a graça que via na situação, Lilia olhou para Nikiforov, que não ajudou muito ao expressar de forma clara seu julgamento. Era melhor se ocupar antes que acabasse rindo da cara de Irisa.

“E onde está o resto do pessoal? Pensei ter ouvido mais gente antes de sair do banheiro.”

“Yakov percebeu que ia faltar lugar pra todo mundo e saiu com Lukyan buscar algumas cadeiras lá em casa. As crianças quiseram ir junto, sabe como é, para eles andar de carro é festa.”

Certo, parte das ausências já estava justificada, mas ainda faltava alguém.

“E Margosha?”

“Saiu sem avisar onde ia, só disse que voltava logo.”

Aquilo era novidade.

“Ela não é disso…”

“Ela foi buscar mais pão,” Oleg tentou acobertá-la. Ainda tinha pão guardado, mas seu tom estava convincente o bastante para Lilia não ter exatamente certeza se aquilo se tratava de uma mentira ou uma verdade engasgada. Preferiu confiar em Margosha.

“Ah, eu trouxe as roupinhas, conforme prometido!” Apontando para o fardo de tecido sobre o sofá, Irisa já estava animada para começar a abrir e exibir as pecinhas para Lilia ali mesmo.

“Muito obrigada, Irisa, você não tem ideia de como está nos ajudando.” Oh merda, aquilo era ela falando embargado?

“Não precisa agradecer, eu vou levar essa criança comigo quando ninguém estiver olhando.” Lilia sorriu. Não diria, mas estava ansiosa para rever aquelas roupinhas. Uma coisa era tê-las visto vestir três gerações de Phorkomov’s, outra era saber que Pavel as vestiria. “E as meninas ligaram lá em casa antes da gente sair, mandaram dizer que vão demorar um pouco.”

“As meninas quem? Porque Sinya veio deixar o suprimento do inverno e depois sumiu.”

“Ah bom, e eu lá vou saber? Não vejo nenhuma delas desde ontem.” Trocando o filho de lado, Irisa começava a sentir os braços cansarem tanto esforço. “Grisha, você não quer dar um descanso pra mamãe?” E como forma de incentivo, a moça foi se abaixando; o bebê, porém, não se mostrou muito inclinado a descer, olhando para a mãe com estranheza em seus olhos miudinhos. “Tá bom, então.”

Não demorou muito para Margosha voltar ao apartamento e, de fato, a menina trazia três grandes pães para somar ao que já não parecia mais uma pequena confraternização, mas um banquete. Lilia reconheceu a embalagem de papel da panificadora próxima ao rinque onde trabalhava Yakov; tão longe! Sabia que a menina gostava da panificação daquela região, mas por que Margosha não tinha ido mais perto com o dia estando tão frio? Bom, ao menos a questão do pão não era uma mentira. Ela estava livre de culpa, por ora.

Quem chegou na sequência foi Yakov, armado de cadeiras dobráveis, enquanto Lukyan vinha rodeado pelos filhos. As crianças estavam somente tocando os pés das cadeiras de madeira, mas sentiam-se grandes contribuidores daquela pequena mudança.

“Você está linda.” Com o montante encaixado embaixo dos braços, Yakov ainda se deu o trabalho de fazer todo um malabarismo para se inclinar e beijar a esposa.

“Isso que eu ainda nem terminei de me arrumar.”

Com os braços finalmente livres de Grisha, agora muito mais interessado em interagir com os irmãos, Irisa começou a ajudar o marido a arrumar as cadeiras, não sem antes cutucá-lo diante a cena.

“Faz quanto tempo que você não me elogia desse jeito, Lukyan?” O moço parou de ajeitar os móveis, de repente temendo algum pecado matrimonial. “Estou brincando.”

Irisa falava aquilo muito séria para quem estava brincando. Era melhor ficar de olho.

A primeira garrafa de álcool já tinha sido aberta e consumida por Lukyan, Oleg e Yakov — mas principalmente Oleg —, quando pequenas batidas atravessaram a conversa que começava a animar. Ocupada tentando controlar seus pequenos anjinhos travessos com a ajuda de Margosha e retalhos de tecido, restou a uma Lilia devidamente arrumada atender.

Abrir a porta para um colchão não era bem o que ela esperava.

“Sinya?” Perguntou em voz alta, tentando se convencer de que a imagem de uma das mais populares solistas do Kirov estava parada em frente a sua porta com um colchão de solteiro quase a escondendo em sua totalidade era mesmo real. “Por quê?”

Aquela pergunta era a única que poderia exprimir em sua totalidade o que Lilia sentia.

“É para as crianças da Irisa e Lukyan poderem brincar mais confortáveis.”

“Ai, eu não acredito que você lembrou deles!” Para Phorkomova, qualquer um que levasse em consideração seus filhos, ganhava uma estrela por bom comportamento. Sinya deveria ter uma coleção que já passava de uma centena, pois os adorava.

“Não precisava ter gastado com um carro até aqui com isso, Yasha podia ter buscado,” disse Lilia, ajudando a puxar o colchão para dentro do apartamento.

“Não se preocupe que eu não gastei nada vindo para cá.” Finalmente se inclinando para as crianças, Sinya cumprimentou cada um deles com uma bagunçada de cabelo e um sorriso pequeno. Todos eles adoravam a tia Sinya.

“...você não gastou nada porque teve alguma carona generosa? Por favor, diga que foi isso,” pediu Irisa, não conseguindo processar a cena daquela miniatura de mulher andando por Leningrado com um colchão de enfeite.

“E eu tenho amizade com gente que tem carro para ganhar carona? Parem com tanto drama, é só um colchão!” As crianças ao lado mostravam sua aprovação rolando pelo estreito retângulo de espuma. “E aí, precisam de ajuda com alguma coisa?”

Conformada com as estranhezas da amiga, Lilia apenas apontou uma das cadeiras livres.

“Você já fez o bastante por hoje e até pelo ano que vem, apenas aproveite a bebida e as conservas, só estamos esperando Vilena e Melita chegarem para liberar a comida.”

“Estenderam um pouco os ensaios do corpo de baile hoje, nosso casal aqui deu sorte de terem escapado.”

“Vai chegar mais gente?” Começando a ficar alto pela quantidade de álcool que bebia sozinho, Oleg já tinha perdido o medo de falar asneira há cinco doses. “Cabe todo mundo aqui ou a gente vai precisar revezar?”

A conversa seguiu animada, assuntos atravessados sobre patinação, balé, bebês, a proteção injusta dada dentro de seus respectivos meios de trabalho e como todos ali eram de acordo que a padronização atual do borsch estava aguada e insossa. Isso que Oleg Nikiforov, o mais esfomeado do grupo, sequer havia começado a falar mal das compotas da cantina onde treinava. E os enlatados de salsicha? Ele passava mal só de pensar.

Uma garrafa de vodka (para aqueles que podiam beber) e duas conservas de pepinos depois, dois tipos diferentes de batidas na porta pareciam competir atenção, acompanhadas de risadinhas e uma discussão atropelada que Lilia conhecia bem. Ela sequer precisava abrir a porta para saber que Vilena Katzeva e Melita Bischova estavam ali, com seus sorrisos enormes e provavelmente…

“Surpresa!!”

“Trouxemos bolo de cenoura!”

…sim, o famoso bolo de cenoura.

Nenhum encontro, dentro ou fora do trabalho, estava completo sem aquele bolo. Era simples, uma receita que já tinha sido passada dentro de seu grupo de convívio e até mesmo para alguns funcionários do teatro, sortudos que tiveram a experiência de prová-lo; mesmo assim, nenhum ficava tão bom quanto aquele preparado a quatro mãos. Lilia e Sinya dividiam a teoria conspiratória de que o casal passava para frente uma receita falsa, porque nada explicava tamanha diferença em textura e sabor. Pelo menos elas tinham levado duas assadeiras daquela vez.

Os bolos quase tombaram para o lado quando, empolgadas pelo reencontro — diferente de Irisa, Vilena e Melita não faziam visitas tão constantes assim na casa de Lilia, tanto por tempo, quanto pelo bom senso —, as duas abraçaram Lilia, uma de cada lado.

“Que bom que vocês vieram.” Prensada entre as duas, a bailarina agradeceu o carinho.

“Quase achei que não fôssemos conseguir, parece que uma maldição caiu sobre o Kirov, hoje.” E Vilena era um tipo bem supersticioso de pessoa. “Logo depois que você saiu Sinya, duas cordas do piano da nossa sala de ensaio arrebentou, consegue acreditar? Depois Soloviev caiu no meio do grand jeté! O Soloviev! Quando aquele homem erra um salto?!”

“Isso sem falar da Maltseva, lembra dela? A que quase perde o tornozelo cada vez que amarra as sapatilhas? Pois na hora de fazer o developpé devant hoje, a fita não me arrebenta? Só vi o risco da sapatilha atravessar a sala, parecia um projétil!”

“Se acertasse um, matava.”

“Por que coisas boas só acontecem quando eu não estou por perto?” Sinya estava inconformada.

“Mas finalmente estamos aqui.” A emoção era quase a de um sobrevivente de uma grande nevasca. “E você está tão linda, Lilka…” Melita estava encantada em ver uma barriga grávida que não a de Irisa. “Mas nem parece estar de oito meses.”

“Olhando de frente, assim, meio de longe, ninguém diria que está grávida.”

“Não é, meninas?” Falando alto, Irisa abriu a rodinha, acenando alegremente para os lugares ainda vagos. “Eu fiquei com uma barriga enorme nas três vezes, vocês lembram? Era linda.”

“Devo tomar isso como ofensa, Phorkomova?” Não que Lilia esperasse alguma resposta de Irisa. Depois que ela começava a beber, sua baixa capacidade de manter atenção dispersava facilmente.

“Também foi a melhor época das minhas pernas, não foi, Lukya?” Ela não esperou nem mesmo ele tentar impedi-la de falar algo constrangedor.

Amor...

A moça ergueu os braços, totalmente confusa com o rubor do marido.

“Eu menti?”

Sorrindo, Yakov deixou seu lugar junto à mesa, se alongando um pouco antes de ir até Lilia oferecer silencioso suporte. Quem sabe distraída com as amigas ela aceitasse mais facilmente a recomendação do marido e tomasse um lugar no sofá?

“Por que não se junta a elas? Tenho certeza que é mais fácil levar uma conversa devidamente acomodada. Além disso, você precisa comer.”

“Ainda não chegou todo mundo, mas você está certo, é melhor começar a servir antes que todos se devorem.”

Como desconfiado, a comida era o suficiente para alimentar todos os presentes mais de uma vez. O estrogonofe de Lukyan foi um dos pratos mais repetidos, com borsch logo em seguida, o preferido das crianças. A sopa, na verdade, acabava ficando em segundo plano, já que os pequenos preferiam usá-lo como molho para o pão preto, mas apenas isso já deixava Irisa muito feliz e satisfeita em ver sua prole bem alimentada. Até o famoso kasha de Margosha veio à mesa, sempre muito elogiado. A bebida chegou até a ser esquecida certa altura da conversa, histórias resgatadas de um tempo que parecia tão antigo, uma vida em Moscou, uma fuga da Sibéria, a vez que a pequena Anna, filha mais velha do casal Phorkomov, encontrou uma tesoura e decidiu correr com ela por aí. Nostalgias do tipo.

A longa refeição sequer estava perto da metade quando novas batidas alcançaram a porta, fazendo Yakov se levantar antes que a esposa pudesse fazer isso antes — o que não adiantou muita coisa, já que Lilia levantou-se do mesmo jeito. Tímido e sem graça do lado de fora estava Rurik Zaytsev, uma pequena embalagem embrulhada em uma das mãos, acompanhado de uma mocinha de olhos ainda mais puxados que os de Sinya, que o fez lembrar sobre uma tal bailarina japonesa admitida recentemente no balé Kirov que Lilia elogiava muito o balancé.

“Boa tarde, eu acho,” Rurik corou. Já estava tão escuro do lado de fora que até parecia noite. “Desculpe o atraso, pegaram um pouco pesado no ensaio de hoje. Essa é Minako Okukawa.”

A jovem reconheceu apenas o próprio nome, curvando-se ligeiramente para cumprimentá-lo. Yakov sorriu, lembrando-se de ter visto alguns competidores e jurados do NHK Trophy se cumprimentando daquele mesmo jeito durante a transmissão das apresentações.

“Bom, fiquem à vontade vocês dois, estamos longe de acabar,” Engasgando um inglês cheio de acentuações erradas, Rurik explicou isso para Minako, ou pelo menos tentou. Dentro de tanta confusão entre seus idiomas, eles até que se entendiam bem.

Lilia tratou de receber os recém-chegados e enquanto se deixava levar pela cena — sua esposa ainda tinha esse efeito sobre ele —, Yakov foi fechando a porta, quase uma câmera lenta da vida real.

“Opa, ainda dá tempo de entrar, ou preciso de senha?”

Reconhecer a voz de sua antiga colega de rinque e amiga mais querida, sem o chiado incômodo de uma ligação a distância, quase convenceu Yakov de que ele havia bebido demais; contudo, contrariando a ideia inicial, era mesmo ela, parada do lado de fora, batendo a neve dos cabelos curtos.

Rindo da falta de reação do amigo, Irina Lagutina largou a mala no chão e abriu os dois braços, entusiasmado convite para um abraço.

“Não vai me cumprimentar, Feltsman?"

Talvez fossem as emoções agitadas que vinham o acometendo no último semestre, mas Yakov se rendeu fácil demais ao abraço cheio de saudade de um tempo em que sua maior preocupação era roubar caramelos do pote de seu tio-avô na calada da noite, tendo Irina para lhe fazer cobertura.

“Não é só você que sabe fazer uma surpresa,” Lilia disse atrás de si, triunfante. Então era sobre Irina que ela dizia quando dissera que nem todos os convidados haviam chegado?

“Ele não desconfiou mesmo de nada?” Riu Irina, cúmplice de toda aquela história. Ele devia ter desconfiado quando ela afirmou não poder comparecer ao evento; Lagutina era mesmo muito boa nisso.

“Nem por um segundo.”

“Não é como se uma viagem de Moscou a Leningrado fosse o deslocamento mais fácil nessa época do ano,” retrucou em defesa a si mesmo, tomando posse da mala.

“Nem em nenhuma outra, mas a gente faz um certo esforço. Uma pena o resto do pessoal não poder vir,” lamentou. Fazia tempo que todos não se reuniam como nos velhos tempos. “mas mandaram todo tipo de desejo de boa sorte e cumprimentos. Sinta-se abraçado por Tolya, ele fez questão de frisar que te daria um beijo estalado na bochecha se estivesse aqui.”

“Recuso, ele que venha pessoalmente me dar esse beijo.” Deixando um pouco a brincadeira de lado, Yakov parecia estar distribuindo sorrisos. “Desde quando estão planejando isso? ”

Semanas.” Irina queria rir da situação. Como era divertido ainda conseguir surpreender um homem adulto.

“Eu também sabia!” Margosha se aproximou quase saltitante, ganhando um abraço apertado de Irina.

“Quer dizer que eu tenho uma agente dupla embaixo do meu teto?” A adolescente riu, pouco arrependida por aquele pequeno segredo do bem. “Quem mais sabia disso? Nikiforov?”

Estando apenas seu corpo presente no apartamento, o patinador não respondeu. É, pelo jeito não.

A soma de mais integrantes à mesa fez crescer a empolgação e conversa, provocando batidas que vinham de vizinhos de parede e do andar abaixo, que em nada interferiu na celebração. Conforme as horas avançaram, as bebidas foram aos poucos substituídas por cafés e chás, levando embora a embriaguez com os bolos de Melita e Vilena. Era mesmo divertido. Eles deviam fazer isso mais vezes.

Sentindo a correria do dia pesar em cansaço, Yakov decidiu se levantar do assento estofado ao lado da esposa para se escorar na parede ao lado da porta. Bocejava largo seguidas vezes, chamando atenção de Irina, que logo se uniu a ele para assistir o grupo.

“Muito trabalho em Moscou?” tentou disfarçar, cobrindo a boca com uma das mãos.

“Dá pra viver,” respondeu ela, dando de ombros. “Mas sem chance dar confiança para a diretoria, eles estão sempre esperando um motivo para sumir conosco…” Yakov sabia como era, tinha uma fratura mal curada no tornozelo para provar isso. “O pessoal queria mesmo ter vindo… O Lev até chorou!” E mesmo fazendo piada, Irina parecia chateada. Yakov com certeza sentia falta dos amigos, mas entendia a necessidade. Ele mesmo não tinha como visitá-los com a frequência desejada e qualquer ausência poria o trabalho com Oleg a perder. “E você, parece que não dorme há dias.”

“Durmo, mas nunca é o bastante. Estou com algumas turmas acumuladas para fazer uma reserva de emergência. Ganharia mais como técnico, mas por algum motivo, o governo não me deixa treinar muitos atletas além de Nikiforov…”

Estar ao lado de Oleg após o rompimento da dupla com Smirnova, fez recair sobre os ombros de Yakov a responsabilidade de tamanha “traição”. Irina bufou, inconformada.

“É errado desejar que essa menina peça asilo político na próxima oportunidade? Eu adoraria ver a cara da equipe de propaganda se o rostinho soviético preferido deles fosse embora.”

Ah, aquela seria uma excelente vingança e Oleg com certeza adoraria, se duvidasse até mandaria flores aos envolvidos depois. Yakov até começou a rir, para substituir o riso por mais um bocejar largo. Irina, é claro, não perdeu a oportunidade para caçoar do amigo.

“Você enfrentou oito horas de viagem e o cansado sou eu,” ele ainda tentou brincar com a situação, ganhando um sorriso em resposta.

“Onze, na verdade, na metade do trajeto tiveram que parar para limpar os trilhos.” Yakov chiou, lembrando-se quão desconfortável era ter de lidar com os imprevistos climáticos naquela época do ano. “Você emagreceu.”

“Se vai me mandar comer, você já vai ser a terceira essa semana, mãe.” Lagutina estalou a língua.

“Não tenho um filho teimoso assim. Pelo menos, não em alguns meses.”

Algo naquela frase chamou a atenção de Yakov muito mais do que ele queria ter entendido. E o olhar fixo sobre si perturbou Irina muito mais do que ela gostaria de ser observada.

“Q-quem? Quando? Como?” Ele balbuciou cada uma dessas palavras, em tom tão baixo que Lagutina quase não o entendeu.

“Não é um dos nossos, se quer saber." Um atleta era o que queria dizer. "Se algum dia já correu por estar atrasado para alguma coisa, foi muito.” Respirando fundo, ela continuou a responder. “Três meses, eu acho? E como você sabe, né?” Yakov continuou a olhando, sem saber o que falar. "O que foi? Achou mesmo que eu vim todo esse caminho à toa? Claro que não! Fraldas e bebês são meu mundo, agora! Deixe eu falar com Lilia que logo a gente negocia aquele berço!"

"Irina…" ao lado, Yakov pareceu crescer dois palmos para cima e para os lados, um grande armário protetor. "Precisa que eu fale com o indivíduo?"

"Indivíduo-" Irina até tentou conter a risada, mas ela acabou escapando por entre os lábios, numa exasperação ridícula. "Yakov, você está se ouvindo? Que ameaça é essa, até parece um agente da KGB!" O bom humor dela não baixou a guarda de Yakov. "Você não foi o primeiro a se oferecer como meu cavaleiro de armadura brilhante, devia ter visto como ficou a Efimiya. Mas agradeço a sua preocupação, Yasha. O pai…" Lembrar que aquela criança tinha outro responsável a deixava enjoada — e não, não era reflexo da gravidez. "O pai do bebê queria casar e toda essa bobagem, mas você me conhece, sabe que essa nunca foi a maior das minhas preocupações." Sim, era verdade. Irina Lagutina era independente demais para esperar uma segunda voz e com isso discutir as decisões do dia-a-dia. "E, sinceramente, eu não sei se quero dividir uma miniatura tipo aquelas com outra pessoa." Ela referia-se às adormecidas crianças Phorkomov.

Os ombros de Yakov relaxaram e ele conseguiu respirar um pouco mais tranquilo. Seus amigos com certeza devem ter lidado melhor com o assunto do que aquilo.

"Mas eu juro que não engravidei só para aproveitar as roupinhas que o Pavel for perdendo ao longo dos meses, tá?"

Ele revirou os olhos e a puxou para debaixo do braço, como tinha o costume de fazer com todos aqueles com que se preocupava. Irina estava grata por ter confirmado mais um apoio de quem de fato importava para ela.

"Toma," sem separar o abraço, ela tirou do bolso do casaco um envelope dobrado, entregando a Yakov logo em seguida. "é um presente em nome de todos nós."

Dentro do envelope, um pequeno, mas significativo montante de dinheiro.

"Irina-!"

"Tinha vinte e sete copeques sobrando, mas usei para comprar um piroshki amanhecido, que estava horrível a propósito, e um copo de chá de limão na parada dos trilhos, depois eu te pago."

"Irina, não podemos aceitar…"

"Ah, vocês podem, sim! Eu me arrisquei para estar aqui! Grávida, trazendo mala e dinheiro em uma viagem a Leningrado? Se alguma autoridade me para, não convenceria ninguém que estava vindo apenas visitar um amigo e provavelmente você usaria tudo isso aí pra me tirar da prisão."

Quanto exagero. Devia ser por isso que ela e Lilia se davam tão bem.

"E não sabíamos o que comprar, além do deslocamento poder ser um problema para trazer… Achamos melhor cada um dar um pouco de dinheiro, assim vocês decidiram pelo melhor. Sabe, ninguém vai perder o aluguel por cinquenta rublos cada um, Yasha."

Yakov olhou para o papel gasto, impotência tomando seus pensamentos; se ele pelo menos estivesse em melhor situação…

"Acha que não sabemos que se fosse por um de nós, você não faria o mesmo? Pare de se preocupar tanto…” Dito isso, ela acrescentou com bom humor; “Até porque você sempre pode nos pagar depois." Irina ofereceu uma piscadela, quebrando a preocupação.

E naquele momento, o envelope deixou de pesar tanto.

O apartamento já estava silencioso quando Yakov voltou de sua segunda viagem de carro, a primeira tendo sido para levar os Phorkomov de volta para casa, seguida pelos bailarinos e Oleg, todos muito bem prensados no carrinho amarelado e devidamente carregados com as sobras preparadas por Lilia. Eles teriam borsch o bastante até segunda-feira.

“Irina? Margosha?” Chamou baixo, batendo brevemente na porta.

“Sim?” Lagutina respondeu sonolenta.

“Desculpe, só queria desejar boa noite.”

Ele conseguiu ouvir Margosha rindo, antes das duas responderem.

“Boa noite, Yasha.”

“Boa noite, pai!”

Em silêncio e o mais discreto possível, Yakov abriu a porta do próprio quarto, para encontrar Lilia ainda acordada, o esperando com um sorriso condenador.

“Achei que já estaria dormindo.”

“E eu que fosse entrar no quarto da sua filha para cobri-la.” Ela tirou sarro da superproteção com a filha mais velha. “Ela faz quinze anos daqui uns dias, Yakov. Você já está fazendo essa menina passar vergonha.”

“É claro que não.” Onde já se viu, ele, fazendo alguém passar vergonha! Ainda mais a filha! E é claro que sua pequena pérola não repudiaria os mimos do pai!

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Certo?

“Por que não foi descansar?” Tomando as mãos de Lilia nas suas, Yakov delicadamente a puxou para si. “Você está acordada desde muito cedo.”

A proximidade virou um abraço folgado. Embalados por uma música inexistente, o casal se movia de um lado para o outro, com Pavel timidamente pontuando a contagem da dança.

“Estava te esperando para ver as roupinhas trazidas por Irisa. É bom aproveitar enquanto ela não precisa delas de volta.” Ele exasperou uma risada. As piadas envolvendo o tamanho da família dos Phorkomov eram constantes, principalmente levando em consideração o tamanho da família de Lukyan.

“E não podíamos fazer isso de manhã?”

“Você não vai acordar de manhã.” Yakov deixou um sorriso escapar. Isso era verdade. “Rurik e Okukawa trouxeram uma chupeta e um babador.”

“O pessoal de Moscou mandou um valor em dinheiro, também.” Ele ainda estava contrariado, mas já aceitava melhor a ideia. “Estamos devendo uma visita a eles.”

“Só uma visita?” Lilia riu, apoiando a testa no ombro do marido. “O que seria de nós sem toda essa gente?”

“Sem todos eu não sei, mas sem Filatova, Katzeva e Bischova certamente não teríamos toda essa comida.” Ambos riram. Aquele momento poderia durar para sempre. “Mas nem tudo foi presente deles.”

Lilia se desencostou do marido, estranhando aquelas palavras, quando Yakov se afastou para abrir o pequeno guarda-roupas dividido com a esposa, tirando do canto reservado a seus pertences, uma caixinha com um brilhante papel de embrulho.

“Isso não estava aí de manhã,” observou Lilia, erguendo uma das sobrancelhas.

“Porque de manhã estava no meu armário lá no rinque,” confessou ele, risonho por todo segredo mantido. “Na verdade está guardado lá há três semanas.”

“E como isso veio parar aqui no meio de toda essa bagunça sem que você desse com a língua nos dentes?”

“Dei a Margosha a missão de buscar para mim, mais cedo.”

Então era por isso que a garota foi buscar os pães tão longe... Lilia sabia que não deveria ter considerado a enteada inocente horas mais cedo.

“Deixe-me adivinhar: Nikiforov era seu cúmplice.”

“Foi ele quem me ajudou a achar o lugar para comprar isso aqui!” Chacoalhando a pequena caixinha, ele se aproximou, entregando-a à Lilia. “Vamos, me diga o que acha.”

Desistindo de ter que lidar com as surpresas do marido, Lilia enfim pegou o presente, sentando-se na beirada da cama para abrir o lacinho cuidadosamente feito. Três semanas? E Yakov ainda se dava a esse trabalho todo… Mas ela estaria mentindo se dissesse não estar emocionada com a surpresa. Sentia-se inclusive incapaz de rasgar uma embalagem tão bonitinha! A guardaria como recordação junto aos seus pertences.

O embrulho guardava uma pequena caixinha de tampa vazada, responsável por exibir o pequeno par de valenkis antes mesmo de Lilia a abrir. Seus olhos encheram-se de lágrimas quando ela enfim pegou o par de botinhas de lã, dois pezinhos tão pequenos que ela quase não acreditava que uma criaturinha daquele tamanho seria capaz de nascer.

“Oh, Yasha…”

“Comprei um pouco maior, que é para durar um tempo…” Com a ponta dos dedos, Lilia alisava a pintura superficial com o rosto de um ursinho em azul. Era nítido que o tempo faria a arte descascar, mas era tão adorável…

Emocionada, Lilia o abraçou, as botinhas trazidas junto ao peito.

“Vai durar pra sempre.”

“Ah, eu não duvido, é uma valenki, essas são eternas.”

Sem se preocuparem com o agora ou mesmo com o amanhã, eles permaneceram abraçados, carinho e apoio mútuos, sem mais palavras se fazendo necessárias para reforçar a Lilia e Yakov que eles, certamente, estavam prontos.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.