Aqui

Quando era criança João sempre teve muitos amigos imaginários. Como filho único de pais no mínimo negligentes e especialmente dominantes, ele nunca teve amigos. Até mesmo a escola não era uma opção, já que sua mãe havia resolvido que o sistema de educação era falho e ela poderia fazer um trabalho melhor.

João lembrava de vagar pela casa vazia, conversando com pessoas que não existiam enquanto escapava do campo de visão de seus pais. Enquanto eles não o vissem, ele não existia. Era sempre assim. Era melhor assim.

Quando completou 18 anos ele conseguiu arranjar coragem de se livrar daquela casa, de ir embora. Seus pais haviam se divorciado há três anos e estavam vivendo suas vidas separadas. João era apenas um vestígio e o que era para ser algo triste, se tornou sua liberdade. Se aproveitando do único momento de culpa do seu pai, ele conseguiu o dinheiro que lhe tiraria dali.

João nunca mais voltou para casa.

Anos depois, quando finalmente conseguiu se firmar em sua vida o bastante para focar no passado, ele entendeu que talvez aqueles não fossem amigos imaginários. Com o incentivo de um cara que conheceu na universidade ele começou a frequentar um centro espírita, mas sua mente era bagunçada demais para ficar por lá por muito tempo.

João nunca teve paz de espírito o suficiente para usar o que seria um dom como serventia para alguém e ele aprendeu a aceitar isso.

Ele aprendeu a aceitar muita coisa, boa e ruim.

Dante foi uma coisa boa. Desde o primeiro momento em que o viu deitado no tapete do seu apartamento, um distúrbio em sua vida monótona. Com seus olhos assustadores em contraste com sorriso paciente. João tentou o ignorar a princípio, porque ele já havia aceitado que nunca ajudaria ninguém. E assim ele disse, gerando um sorriso confuso e divertido no outro.

Ele não foi embora.

Ele sempre estava lá, o seguindo pela casa, o olhando ler, fazer comida, dormir. Quando trazia a pessoa da noite para casa, ele estava lá, o olhando de forma tão triste que por vezes acabava mandando a pessoa embora sem fazerem nada. Nos momentos de raiva João esbravejava sobre exorcismo e trazer um padre, sobre como estava provavelmente louco, sobre como ele queria que ele fosse embora.

Ele nunca ia.

Nos dias, semanas, meses que se passaram ele passou a ser Dante, um nome que escolheu durante uma bebedeira. O dia em que cuspiu todo o seu passado para um fantasma, uma alucinação que naquele momento era a sua companhia mais constante.

Dante se tornou seu amigo. Dante se tornou a única razão pela qual levantava em algumas manhãs. Se tornou sua inspiração.

Dante se foi.

João lembrava daquele dia. Do dia em que havia percebido e falado o que sentia. Do ponto mais baixo de uma vida que perdia o sentido de tudo além do que existia entre aquelas paredes.

João não tinha orgulho daquele momento. Do momento em que se deu conta que queria morrer porque a única coisa que não odiava na sua vida, ele pensava que estava morta também.

Aquele também foi o dia em que tocou Dante. Em que beijou Dante. Em que teve Dante, apenas para o perder.

"Há mais para você do que eu. Não pode ficar aqui. Não é seu lugar."

Na época, e nos dias que se seguiram em que Dante sumiu, João entendeu que ele queria que vivesse. Que ele havia ido embora para que vivesse a vida e não o seguisse. Depois, ele amou mais Dante por isso.

Agora ele percebia que o significado era levemente diferente, embora o princípio fosse o mesmo.

Agora tinha Bruno.

Bruno também se tornou uma coisa boa. Um motivo para se levantar pela manhã e mudar sua vida. Diferente de Dante, ele não se tornou o único motivo para se levantar, mas o ajudou a perceber que havia outros.

Bruno foi aquele empurrão que precisava para sair da inércia.

Bruno era um mistério, como Dante.

Bruno que agora o fitava do outro lado da mesa de perna torta, a mesma que deixou na apartamento quando saiu. Bruno que tinha um sorriso paciente enquanto lhe servia café, mesmo quando não havia dito uma palavra desde que saíram do estacionamento.

Bruno que tinha o mesmo rosto de Dante.

— Pela sua expressão, realmente é verdade.

— Hum?

Bruno deu uma risada gentil e empurrou um pedaço de torta na sua direção. Tinha farinha na bochecha dele e ele parecia grande demais para a cadeira da mesa.

Bruno que parecia Dante.

— Seu fantasma não era o mesmo que o meu.

João piscou e finalmente acordou do torpor, o significado das palavras o alcançando. Quando finalmente entendeu deve ter feito uma expressão bem engraçada, pela gargalhada que o outro deu.

— Você quer dizer que John-

— John era você. Bem, parecido com você. Sua versão de você de lá. E pela sua cara ao me ver imagino que o seu fantasma-

— Dante.

— Dante?

João assentiu, finalmente se recuperando e pegando o café entre as mãos.

— Era assim que o chamava.

Bruno. Porque aquele era Bruno. Bruno o olhou pensativo. Talvez imaginando a razão por nunca ter divulgado que também havia escolhido um nome, como ele. Talvez, pelo sorriso gentil dele, entendendo que queria guardar aquilo para si.

— Ele era parecido comigo, então?

— Idêntico.

Do sorriso gentil ao cabelo bagunçado, do tamanho grande de alguém que havia crescido de repente no final da adolescência e ainda estava ajustando e batendo em tudo. A diferença é que Dante era tão pálido, mas agora percebia que ele sempre havia tido aquela cor que mostrava a possibilidade de atingir a pele queimada que Bruno tinha.

— Exceto pelos olhos.

Bruno assentiu em concordância. Porque os olhos de todos eles pareciam iguais lá, pelo o que lembrava dele ter lhe dito.

— John era você de lá, Dante era eu de lá. Quando Dante foi embora, John foi para o apartamento.

—Do mesmo jeito que quando eu fui, você entrou.

Quais as chances de isso acontecer? João deu uma pequena risada com isso. Parecia uma peça pronta do destino. E essa era a razão de sempre ter achado, pelas anedotas de Bruno, o fantasma tão diferente do que lembrava. Explicava o mesmo gosto pelas estrelas que agora percebia que enfeitavam todas as paredes depois do seu presente de natal.

Bruno também olhava para a parede, um leve sorriso no rosto. Os olhos de uma cor de mel combinavam com ele. O diferenciava de Dante.

O fazia parecer vivo.

— Eles estão-?

Bruno negou devagar, a expressão melancólica.

— Eles não estão mais aqui. Quando eu apaguei ontem? Eu disse que passei um bom tempo lá. Conversamos, sobre muita coisa.

Ele fez uma expressão pensativa e deu outra risada, balançando a cabeça.

— John foi atrás de Dante para ver o que diabos tinha de errado com o apartamento, porque tinha um, o que ele chamou de 'fenda' para esse mundo bem na sua sala. Eles estavam tentando resolver a situação de lá. Por isso estavam juntos no apartamento. Ele só queria se despedir antes.

Bruno tocou o lábio, ainda pensativo. João desviou os olhos. Ele conseguia imaginar como foi a despedida. Ele lembrava da sua. Ele conseguiu imaginar um beijo, no mínimo.

Bruno se apaixonou por John e John por ele, da mesma forma que ele e Dante.

Seu peito apertou com isso, mas empurrou esse sentimento mais fundo. Não importava agora.

—E Dante. Dante queria saber se você estava bem. Nós conversamos também. Foi tão estranho.

Ergueu os olhos com isso. Bruno o fitava, uma mão no queixo. Toda a postura dele era relaxada. Ele tinha gentileza em cada gesto.

João sentia sorte de ter conhecido Bruno.

Dante não precisava se preocupar. Sentia que estava em boas mãos.

Bruno sorriu mais aberto com o que viu em sua expressão.

— Coma a torta, caro estranho.

João enfiou o garfo, sorrindo da expressão ansiosa por julgamento. O sabor explodiu em sua boca e deu um suspiro satisfeito.

Bruno relaxou na cadeira com isso, servindo outra xícara de café. Eles tinham muito ainda o que conversar.

Por sorte eles tinham todo o tempo do mundo agora.

"Quais as chances de acabar me apaixonando pela a mesma pessoa de diferentes realidades?"

Dessa vez, ao menos, eles estavam na realidade correta.

..................................................................

As sirenes estavam tocando novamente.

Suspirou e apertou o passo, andando nas ruas escuras e frias. Logo iria chover novamente e preferia não se ensopar de novo.

Avistou o prédio e suspirou em alívio, saltando pelos pedaços de concreto da destruição da rua depois do último bombardeio. Logo eles iam apagar as luzes novamente, tornava mais difícil encontrar um alvo do céu no meio da noite.

Um mundo em guerra.

Foi assim o mundo em que nasceu e nunca conheceu nada diferente, até se mudar para o apartamento e ver que existia outro lugar. O lugar que os outros tanto falavam, que tanta gente de lá ia parar no mundo deles por acidente.

Um mundo com outra história, outro fim da segunda guerra, com outros problemas.

Ele entendia porque muita gente queria ir para lá, mesmo que não pudessem ficar realmente. Cada um pertencia ao seu mundo.

Sorriu de forma melancólica, lembrando de João. De vez em quando se pegava pensando em um futuro diferente, um futuro que nunca seria possível.

As coisas agora estavam certas. Ele tinha alguém para cuidar dele lá, isso era o que importava.

Ganhou o corredor, desviando da fiação exposta. Chegou a porta 302 e bateu em código, ouvindo os passos lá de dentro. Eles haviam tido sorte de esconder aquela fenda até ser fechada. As pessoas de lá, na maioria, não ficavam feliz quando alguém do outro lado visitava, mesmo sendo acidental.

Outros gostavam de se aproveitar da situação, o que era pior.

Um rosto pálido apareceu e seu sorriso aumentou. Um revirar de olhos, mas notou o sorriso de volta, mesmo que escondido.

— Entra.

Ele o puxou para dentro e trancou a porta.

— Funcionou?

O outro deu um suspiro e assentiu. Ele estava triste. Conseguia o entender. Era difícil querer tanto uma coisa que não podia ter.

Era difícil afastar o que queria para o bem de todos.

Foi difícil se afastar de João para que ele vivesse no mundo correto. Para que ele vivesse.

Passou os braços ao redor dele, se aproveitando do seu tamanho. O sentiu relaxar e sorriu com isso, enfiando o rosto no cabelo escuro e suspirando.

Eles haviam feito a escolha certa.

O destino era algo estranho, mas finalmente as coisas pareciam se encaminhar de forma correta.

—Eu não sou um substituto, sabe?

O sentiu murmurar em seu peito e sorriu.

—Eu sei. Nem eu.

João e ele não eram a mesma pessoa, apesar de ter o mesmo rosto.

Da mesmo forma que ele não era Bruno.

Eles tinham tido vidas diferentes demais para serem os mesmos.

—Bom, que bom que sabe. Quer ficar a noite?

— Claro que sim. Tenho medo do escuro.

—Idiota.

Deu uma risada quando foi empurrado.

—Vou fazer um café.

Sentou na poltrona e suspirou.

Eles amaram pessoas de lá.

Agora tinham uma chance ali.

— As luzes vão se apagar em breve.

Não perderia essa chance.

Quando se beijaram ignoraram os sons das bombas.

Finalmente tudo parecia em seu lugar certo.