Othertale

Capítulo III – O livro e o armário [Allen]


“Era uma vez um distante vale onde no final se via um buraco dentro de uma montanha perdida. Na realidade, aquele buraco era o exílio dos monstros que outra hora viveram em comunhão com os humanos, mas com uma misteriosa guerra, foram banidos do mundo superior. Um dia, uma criança encontrou essa montanha e acabou caindo...”

Cliff lia um livro achado na biblioteca, estava num estado até bom, mesmo que Cliff tenha dito que realmente parecia um livro bem velho. Fazia um ano desde que David ficou preso em seu sonho. Estou com medo dele virar espuma assim como a irmã dele, mas sei que em algum momento iríamos conseguir. O orfanato também está bastante cheio ultimamente, e já temos umas vinte crianças.

Stella foi adotada e isso me deixou feliz, com saudades, mas feliz. Letty também tinha sido, mas depois dos pais verem que ela tinha complexo de personalidade, a deixaram novamente no orfanato. Joshua ainda não foi adotado, e nem parece se preocupar com isso. Segundo ele “Não quer se afastar de quem ama”. Me pergunto de quem Joshua estaria se referindo... Chelsy continua tímida, mas está se abrindo aos poucos.

Depois de contar a história, Cliff fechou o livro pacientemente, olhando para cada rosto que estava ao redor dele, prestando atenção. Depois, deu um sorriso gentil. Cliff era legal. Ele não era o Professor, mas era gentil também.

— Bom, hora do jantar. –Declarou.

Ouviu-se alguns múrmuros de protesto, mas logo todos se levantaram e formaram uma fila indiana, se dirigindo para a sala de jantar, onde um dos funcionários arrumava os pratos de sopa de cada um. Me sentei do lado de Joshua e vi Letty sentar do outro lado das mesas, deixando uma cadeira vazia. Era incrível que agora todas as cadeiras eram ocupadas agora. Me pergunto o que o professor falaria disso.

Assim como antes, agradecemos pela comida e logo iniciamos o banquete. Peguei um pedaço de pão e molhei na sopa, o mordendo. Joshua parecia se sujar todo, e era engraçado ver isso. Havia uma energia boa no local e todos tagarelavam e riam. Me sentia bem diante aquele jantar.

Enchi uma colher com sopa e dirigi aos meus lábios, para poder saboreá-la. O gosto era bastante forte e temperado, os novos cozinheiros eram realmente muito bons.

“Allen...” Ouvi uma voz familiar sussurrar no meu ouvido, de maneira que pudesse até mesmo esquentar meu ouvido e causar um calafrio medonho.

Olhei para trás de pressa, esperando poder encontrar o responsável pelo sussurro. Porém, não encontrei nada, além da porta da saída da sala de jantar e de alguns enfermeiros que andavam de um lado para o outro.

Eu deveria estar cansado.

Em seguida, Joshua olhou para mim com a boca cheia de migalhas de pão, sua expressão era confusa.

—A comida não está boa?

—Não é isso... –Falo baixo, voltando ao prato de sopa.

Mais tarde, fomos mandados para os nossos quartos. Eu peguei o meu diário e me escondi de baixo da cama, ligando uma lanterna. Busquei um lápis e escrevi por volta de uma hora todos os acontecimentos daquele dia, inclusive da história e da voz sussurrante. Fechei o livro e o olhei melancólico, logo o abraçando.

Eu iria salvar o professor, sem dúvida.

Guardei o caderno ao lado da cama de forma que não fizesse tanto barulho. Depois, me cobri até a cabeça e me encolhi. Estava realmente frio aquele dia. Mais tarde, pensei sobre histórias que eu ainda iria ouvir, sobre o professor, sobre o que comerei amanhã no café e sobre muitas outras coisas que pudessem me confortar até que eu caísse no sono.

Durante meu sono, só ouvia o som das árvores batendo na janela e de uma chuva fraca. Era inverno, afinal. Me movendo enquanto dormia – algo até comum –, me abracei ao travesseiro. Então, por volta das três horas da manhã, acordei novamente com uma voz sussurrando no canto da minha orelha.

“Allen...”

Um som alto de algo batendo me fez pular da cama, mas, novamente, não havia ninguém. Peguei a lanterna e andei até o interruptor do quarto, ligando a luz. Olhei cautelosamente para cada canto do quarto e notei que havia um livro aberto e caído no chão. O livro que Cliff estava lendo!

Caminhei até o livro e o li a página que estava aberta, palavra por palavra.

“A criança foi corrompida pelo poder e com ele, causou um completo caos no subterrâneo. Aqueles que iam contra sua tirania eram, sem mínima dó, mortos. Não havia mais XXXX, mas ainda havia muito LOVE. Isso ao menos faz sentido? ”.

Cocei os olhos, tonto. Não lembrava de ter essa parte quando estava ouvindo a história. Na página, havia um desenho mal feito com giz de cera preto e vermelho, onde era possível ver uma figura sorridente de olhos vermelhos. Os olhos pareciam me fitar e isso fez meu coração bater forte contra o peito. Estava tendo um pesadelo? Me belisquei.

Não, estava bastante acordado...

Coloquei o livro em cima da escrivaninha, estaria alguém pregando uma peça em mim? O barulho de antes se repetiu, mas forte. E outra vez e mais uma, quase como uma sinfonia disforme. Olhei para frente e vi que a batida vinha do meu armário. Ela continuava num incessante barulho. Eu não queria abrir o armário.

Mas eu deveria.

Andei lentamente, um passo de cada vez e posicionei minha mão na maçaneta do armário. Minha mão parecia congelar, era muito gélido! O som continuava e parecia agora acompanhar meus batimentos cardíacos e senti uma gota de suor deslizar da minha até o canto do meu queixo. Respirei fundo e comecei uma contagem regressiva do três até o um.

“Três...”

Apertei mais a maçaneta, sentindo a minha respiração ficar forte a cada segundo que se passava.

“Dois...”

Comecei a puxar demoradamente a maçaneta, com receio de olhar o que havia causado aquela marcha insana dentro do meu armário.

“Um...”

Fechei novamente a fresta do armário, agora sentindo como se algo estivesse, desesperadamente, empurrando para sair dali com uma força de adulto.

—Zero! –Declarei, abrindo a porta de uma só vez.

De dentro do armário, pulou um gato preto de íris avermelhadas. Era aquele bichano que teria causado tanto estardalhaço dentro daquele móvel? Agachei e acariciei a nuca do mesmo, ouvindo um ronrono preguiçoso. O gato, logo, olhou para dentro do armário e pulou, o adentrando novamente.

Sua cabeça se virou para trás, como se estivesse me chamando. Seus olhos pareciam ainda mais brilhantes, o que me fez ficar hipnotizado por um longo tempo. Havia algo de assustador neles, porém, que davam uma estranha confiança também.

Busquei a minha lanterna e apoiei um dos meus joelhos no armário, fazendo força para entrar dentro dele e logo vi a porta do mesmo se fechar brutalmente. Comecei a engatinhar como um bebê, pois não dava para me levantar. O teto era muito baixo. Liguei a lanterna, me vendo num corredor estreito e pequeno para todos os lados.

Era como se eu estivesse num interminável túnel.

Um ratinho correu por entre minhas pernas assustado, será que era por causa do gato que entrou comigo? "Corra ratinho!" Pensei, com um riso infantil.

Continuei a engatinhar, já sentindo meus joelhos e minhas mãos cansadas, no momento que vi uma luz no final que talvez significasse esperança ou não.

Ao chegar no final, me vi saindo por um buraco de rato, que diminuiu quando já estava fora. Do lado do buraco, tinha uma mesa com um queijo. Tentei pegá-lo para entregar para o ratinho, mas estava preso e parecia estar velho, tendo em conta que fedia mais que um queijo suíço.

Bom, eu espero que o rato um dia consiga chegar ao queijo.

Comecei a andar pelo local, parecia uma ruína com vários quadros e coisas que eu já vi no passado e outras que eu não fazia ideia do que era. Deslizei os dedos pelo quarto de uma mulher bonita, que tinha escrito em dourado “Dama de Vermelho” e peguei também um “Haniwa” no chão, que eram esculturas japonesas dadas em funerais. Eu me aproximei de uma janela também, mas ao ver um vulto roxo passar por ela, dei um passo para trás.

Eu avistei também uma caixinha de música, que ousei girar lentamente a chave e soltá-la, deixando um som lírico e apaixonante infestar as ruínas, enquanto caminhava sozinho. No caminho, vi também uma boneca muito bonita, porém com a face quebrada. Parecia tão real...

Será que havia mais alguém aqui? Ou melhor, onde é “aqui”?

Quando me perguntei isso, pensei ouvir passos vindos de longe numa correria. Por segurança, apressei os meus, andando reto e parando quando uma flor brotou na minha frente com um salto.

—O que foi aquilo? –A flor resmungou alto. –Aquela criança tem noção do que estava fazendo? Que idiota! –Se remexeu. –Quase que aquelas facas me acertam! Se eu tivesse notado antes...

—Oi... –Agachei, curioso. –Você está bem?

—Claro que eu estou, seu mané! Espera... Outro humano? –A flor pareceu me olhar com desconfiança. –Era só o que me faltava, virou circo agora?

—Outro? Há outros? –Cocei a nuca, me aproximando mais. –Conte-me mais, por favor!

Quando viu minha ansiedade, a flor me olhou de canto com cara de desgosto e logo soltou uma risadinha cínica e irritante.

—O que importa? Você não vai sobreviver nesse lugar por muito tempo.

—Como? Espera...

Antes que eu pudesse pegar explicações, a flor se afundou na terra sem dizer mais nenhuma palavra de apoio. Eu parecia patético ajoelhado naquela ruína suspeita e bagunçada. Eu queria poder não ter seguido gatos de olhos vermelhos e livros com desenhos ruins.

Mas teve um propósito eu ter feito isso:

A voz que chamou o meu nome. Com toda certeza eu iria a encontrar aqui.

Uma sombra alta me despertou de um devaneio, meu rosto virou em direção do indivíduo e vi um par de olhos gentis me fitando calidamente e com ternura. Olhei de cima para baixo sem querer e me levantei, tirando a poeira das minhas vestes. Era uma criatura que usava uma roupa nobre de cor lilás, porém humilde e tinha bastante pelo por todo o corpo. Também tinha chifres pequeninos e caninos tímidos. Parecia uma mistura bem interessante de um cachorro e uma vaca.

—Você está machucado, minha criança? –Perguntou, a voz dela suava gentil e acolhedora, olhando meus joelhos ralados. –Vamos cuidar desses machucados, tudo bem?

—O que é... –Corrigi minha pergunta. –Quem é você?

—Meu nome é Toriel, sou a guardiã das ruínas. –Acariciou meus cabelos dourados. –Você é a segunda criança que vejo perdida por esses corredores malvados. –Diz preocupada. –Não é comum isso ocorrer... –Reflete para si mesma, mas logo se vira para mim de novo. –Oh sim, me deixe apresenta-la! Talvez ela se sinta mais solta se conhecer outra criança! Viola?

Com passos tímidos, uma figura de cabelos de ouro com duas tranças – uma de cada lado –, roupas antigas e cheia de remendos aparece. Seus olhos eram irresistivelmente esverdeados, e seu rosto tinha uma cor única: um rubor dócil e sutil. Graças as suas sapatilhas, seu caminhar ecoava por toda ruína.

O mais inesperado, no entanto, era o gato em seus braços, que parecia estar tendo um cochilo longo. Sua respiração era notável, pelo movimento de seu tórax. Aquele era o mesmo gato que eu havia saído do armário e me levado para aquela ruína!

Por alguns segundos, pensei ver o gato abrir um dos seus olhos e me fitar com o mesmo cintilar de alguns minutos atrás, logo voltando a dormir no colo da garota mais velha.

—Oh, olá... –Diz, sua voz sai num timbre educado e doce. –Toriel me ajudou bastante aqui, sabe, há muitas armadilhas perigosas.

Assenti com a cabeça, com um ar perdido. “Viola”, “Toriel” e “Flor mal-educada”. Essas foram as pessoas que eu conheci até agora. Um silêncio se perpetuou entre nós três, mas logo Toriel, com a sua voz suave, o quebrou de maneira inesperada.

—Vocês gostam de torta? –Eu e Viola nos entreolhamos e depois de um tempo, assentimos. Quem não gosta de torta? –Que bom! Vocês preferem caramelo ou canela?

—Canela. –Falei, puxando a minha meia listrada.

—Caramelo. –Viola respondeu, acariciando o gato.

Toriel pareceu ficar um pouco sem graça, pois viu que teria que escolher um sabor. Mais que em seguida, seu olhar se iluminou e disse em alto bom som:

—Já sei! Farei uma torta de Caramelo-Canela! –“Eu não sei se isso vai ficar gostoso...” Refleti. –Bom, Allen... –“Como ela sabe? ”—...Viola, vamos. É melhor chegarmos em casa para podermos comer e conversar um pouco antes de um ótimo chá!

Ela segurou minha mão com sua pata peluda–que era bem quentinha! – e a da menina com o gato, andando com exímio cuidado pelo local. Em todo percurso, no entanto, senti algo estranho embrulhar o meu estômago. Era como se eu estivesse sendo observado por alguém, ou algo.

“Allen...”

A voz sussurrou de novo, e logo olhei para trás, vendo uma quina de um corredor próximo. Por uma fração de segundos, vi metade de um sorriso e um rabo de cavalo sumindo na escuridão e dei um sorriso esperançoso.

Saber que talvez o professor estivesse ali – em algum lugar– e eu poderia encontra-lo... Esse fato me encheu de determinação.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.