Os olhos violetas

Capítulo 36 - Livraria de Fabulas


Quando Sofia me falou sobre seus irmãos lembro que um dia, quando ainda estávamos na casa de Rosários ela comentou que tinha um irmão. Tinha.

– Suzanna, você não me ouviu? Meu irmão e seu ex namorado estão mortos. Não sei o que queriam com o seu Kevin, mas Logan e os amigos mataram os dois. “Não serei um deles, sem você, pequena” Meu irmão disse... – Ela estava fria, até mesmo de temperatura. – Meu irmão não voltará. E isso tudo é culpa do clã das trevas...

Brian por algum motivo foi para o clã dos olhos de fogo. E deixou Sofia sozinha para cuidar de si mesma.

– Agora me conte sobre como sabe sobre a livraria. – Mudou drasticamente de assunto a minha amiga.

Por ver o sofrimento dos olhos dela, não pude continuar o assunto. Seus olhos estavam sem lentes, então vermelhos, e a dor que me mostrou... Nunca imaginei que poderia ter sentido algo tão depressivo. Seu cabelo loiro com pontas azuis estavam em uma trança larga e sua roupa estava amaçada e suja.

– Eu fui parar no corpo da minha mãe. Minha tia me contou algumas coisas e...

– Explica do começo. – Ela me parou no meio da rua e eu contei toda a história sobre a viagem da minha alma para o corpo da minha mãe.

Não demorou muito para que eu terminasse de contar tudo para Sofia. Ela entendeu como a minha viagem foi louca até o corpo de minha mãe. E também importante para a sobrevivencia da própria. Como minha alma viajou lá, e eu não morri, Sofi já não sabia. Muito menos eu.

Caminhamos por longas e estreitas calçadas até conseguir chegar a livraria dita por Zack. Mas o “Criador de Fábulas” estava fechada, parecia que nunca tivesse sido aberto ou algo assim. Como se só tivessem colocado os livros nas estantes e os esquecido ali. Olhando pela vitrine notava-se que estava empoeirada. Parecia que ninguém tocava nos livros a muito tempo.

Tentei empurar a porta, mas estava trancada. Olhando em volta, vi que havia um portão de ferro. Alto mas ainda assim possivel pular. E mais afastado, uma porta. A porta dos fundos. Alguem disse em minha mente.

Primeiro ajudei Sofia a passar pela grade, em seguida escalei-a com facilidade e saltei. Caindo no chão sem muito estilo, me ajeitei e fomos seguindo reto até a porta. A parede a minha direita, de encontro com o lado da loja, era vermelha. Bem diferente de todo o resto da Grécia.

Andamos mais um pouco até chegar na porta, porém esta também estava trancada. Notei que como era matéria morta, eu não saberia faze-la me obedecer. Abri-la só com um pedido, como fiz com outras coisas ao longo do treinamento, não seria fácil. Principalmente pelo fato de que eu ainda não havia descoberto, exatamente, como eu tinha esse dom. Os efeitos e como controlar adequadamente as coisas.

Tentei.

Por favor, porta, abra. Mas nada aconteceu. Tentei de novo, com mais força. Vamos lá, porta, se abra! Porém, ela continuou parada.

Sofia falou que era simples abrir aquela porta. Ou eu dava um chute, ou achava algum grampo moldavel. Contudo, eu não tinha um grampo. O jeito era usar a força, mas nem isso eu tinha o suficiente para abrir com um chute.

Por alguns minutos, eu não sabia muito bem o que fazer. A minha amiga falou que era só chutar a porta. Dá um empurrão, ou algo assim. Pois a porta, assim como a construção toda, estava bem acabada e antiga. Mas eu sabia que eu não tinha essa habilidade.

Olhei em volta, procurando alguma coisa para acertar na porta. Fazer um buraco e conseguir entrar. Vieram mil coisas na minha cabeça, mas nada possível no momento. Nem lata de lixo tinha ali por perto. Por que Zack me mandaria para lá se eu não consegueria entrar?

Aquela loja não estava mais viva como antes. Talvez quando Zack a visitou, ou procurou na internet, ela estivesse em melhores condições. Com um atendente e tudo. Talvez ele tenha se enganado com o nome da livraria. Ou eu tivesse encontrado uma outra por engano.

Ouvi um barulho, olhei para porta novamente. Esta mesma que continuava trancada. Procurei em volta, mas nada. De que lugar está vindo esse maldito barulho?

– O que você acha? – Me perguntou Sofi.

– Como assim o que eu acho?

– O que você acha?

– Você já me perguntou isso, e eu respondi com outra pergunta! - Digo

– Este barulho... Eu sei que ouviu. Eu estava tocando em você quando pensou... certas loucuras. – Sofia sorriu tentando passar conforto. Vejo que sua mão realmente estava tocando meu cotovelo.

– Por que você não para de ficar me tocando e pensa em um jeito de entrar? – Digo olhando com raiva para a porta que teimava em ficar fechada.

– Eu já pensei... Falei para você chutar a porta.

– É, mas eu não tenho força – Digo e chuto no canto da madeira. De novo e mais um pouco. Até minha perna começar uma dor insuportável. – E você já notou.

– Isso por que ficou no acampamento durante esse tempo todo e nada de força? Sério mesmo, Suzanna? – Deboxou ela de mim.

– Ué, se você passou tanto tempo como eu, por que você não consegue? – Digo cruzando os braços e dando passagem para ela tentar.

Sofia estudou a porta com os olhos. Finalmente ela passou a mão pela madeira lisa daquela porta. Aos poucos uns fleches de luz começaram a aparecer e fez com que eu não enxergase por alguns segundos.

Ao final, quando ela finalmente parou de tocar na madeira, meus olhos relaxaram. Adaptaram-se ao novo aspecto da porta. Não era mais lisa e simples. Esta nova porta era detalhada e cheia de simbolos.

Não era na minha lingua o que estava escrito na porta. Não era grego também, aprendi um pouco da lingua ao usar meu dom. E não era nem um pouco parecida com aquilo. Nem era uma escrita hebraica ou italiana, que eu conhecia pouco. Não era isso.

É uma lingua muito mais antiga.

– O que é isso? – Pergunto a minha amiga.

– Vai dizer que não sabe? – Diz Sofia

– É claro que não sei.

– Você é a única que pode saber. – Disse ela.

– Como?

– Isso é facil. – Ela olha reto para a madeira. – Olha, você é a única que está vendo alguma coisa. Eu só vejo uma porta sem graça.

A porta está toda escrita, como ela não vê?

– Você acha que eu consigo decifrar? – Pergunto.

– Mas é claro, para entrarmos precisamos que consiga. Se não vamos ficar aqui paradas que nem geleia no pudim – Minha amiga é tão inspiradora que me dá medo, penso.

– Ok... Então vamos lá... – Digo passando os dedos por cada simbolo, porém não vem palavras até a minha mente. E sim imagens. Como se aquelas imagens fossem algo. Fechei os olhos, inspirei fundo e tentei de novo.

Uma voz veio na minha cabeça, mas não uma comum. Eu não conseguia indentificar a voz. Parecia que meus ouvidos não eram adaptados para captar essas ondas de sons. Ouso um barulho e alguns zumbidos, mas não eram especificos. Parecia bem mais do que apenas uma voz.

Tentei dizer a Sofi o que estava passando em minha cabeça. Mas mesmo assim... não conseguia sair nenhuma palavra igual as que eu ouvi.

– O que você acha que eu tenho que fazer com isso? – Pergunto. – Eu entendi algumas coisas... Talvez seja só dizer o que está escrito. Não tenho certeza.

– Presta atenção, Su. Eu não consigo nem enxergar essas escritas que você fala. Como quer que eu saiba o que é para fazer? – Olho-a com atenção. Ela está certa, como saberia? Espera! Ela tinha que saber. Era o dom de Sofia.

– Você não pode não saber – Digo indiginada. – Presta atenção. Aqui está escrito... Alguma coisa que eu não consigo decifrar. Não é nenhuma lingua que eu conheça. É uma escrita, mas não como letras, como a nossa. Não tem “a”, “b”, “c”. Não tem nada disso. – Ai! Como isso é irritante. Escutar mas ninguém conseguir fazer isso também.

– Então como é?

– É uma mistura de rabiscos, simbolos que eu não entendo. Não é chinês, com certeza. Nem japonês. Não consigo entender o que é isso. Isso é frustante.

– Me deixa entrar em sua mente? – Perguntou a mim.

– Sim, deixo. – Disse com dor na voz. Não é nada confortavel ter alguém mexendo com seus pensamentos. Sofia tocou em minha testa e aos poucos sentia que algo fluia de mim para ela.

Fechei os olhos e de novo respirei fundo. Quando abri, minha amiga repetiu as palavras que estavam em meu interior. Mas mesmo assim não consegui entender o que ela dizia. Já a porta pareceu entender pois se abriu. Como se não estivesse fechada.

Empurrei-a devagar, olhei por dentro. Um longo corredor. Bem escuro, sem iluminação. A única luz ali dentro era a do sol. E ele já estava sendo perdido no horizonte.

– Sofi? Quer ir na frente? – Perguntei medrosa. - Aqui deve ter sido bonito um dia... – Murmuro.

– Claro. – Diz ela com irônia. – Já que a senhorita Covarde quer ir atrás.

Vejo a Sofia passando a minha frente e seguindo no corredor. E aos poucos não tem mais luz. Continuamos andando e andando. Até abrir uma porta que dava para dentro da livraria. Lá tinha muitas estantes, como tinha que ser. Porém, todos os livros estavam velhos e empoierados.

O que foi mesmo que Zack me disse... “não veja, escute”. Mas não é tão facil. Se fosse apenas escutar alguém, mas não. Tenho que escutar o que não foi dito.

– Suzanna? – Chamou-me Sofia. Olhei para ela e acenti para que falasse. – Se mexe, não faço idéia a quanto tempo você está brincando de estátua.

– Só estou pensando... qual livro procurar. Eu não sei o nome, nem o autor. Não sei exatamente o que procurar. – Digo olhando uma das primeiras estantes. – Por que um “fruto”? O que Eco tem haver com frutos? Eu nunca ouvi uma história tão besta. – Resmungo

– Se ele vai ajudar sua mãe... temos que acha-lo, como você mesma disse. – Ela olhou para fora da loja. – Mas vamos rápido, antes que nos vejam.

– Será que é mesmo necessário? – Pergunto. – Será que minha tia não quer para outra coisa?

– Tipo...?

– Não faço idéia... Procura por ai, vou tentar por aqui. – Aponto para lados opostos da livraria. – Esse legar pode ter sido bonito um dia...

– Você já disse isso antes.

Passou um tempo, mas nenhuma de nós achou algo útil. Procurei grande parte da ala oeste, mas nem a língua eu entendia. Escute, vamos lá, Suzanna, escute.

– Sofia? – Grito.

– Fale – Ela grita do outro lado e ficamos na mesma fileira, caminhando para encontrar a outra.

– Feche os olhos. – Ela fechou. – Consegue sentir? Uma energia, muito forte?

– Hm... não. Não consigo. – Declara depois de alguns segundos.

Fechei os meus e me concentrei. A principio só ouvi ruidos. Depois comecei a ouvir tudo. Uma conversa do outro lado da rua. Os carros correndo pela rua. Latidos de um cachorro a duas quadras.

Então me concentrei em algo mais perto. Os batimentos cardíacos de Sofia soaram alto. As palavras dos livros a minha volta pareciam melodias. Parecia que eu estava ouvindo cada história, de cada livro. E para piorar, tudo ao mesmo tempo.

Comecei a ouvir uma especifica coisa.

Palavra.

E de novo. Palavra.

Não era minha lingua que eu estava entendendo.

– Estou ouvindo alguma voz falando “palavra”, mas não é na nossa lingua. Não é em nenhuma lingua que eu conheça.

– Você tem sorte, eu nem mesmo escuto alguma coisa. – Sofia resmunga. – Como consegue entender?

– Eu não sei. – Ouso as palavras com cuidado. Não é apenas uma se repetindo. São muitas, e elas são muito rápidas. Me concentro, mais e um pouco mais.

Decifro uma. Ou traduzo, não sei ao certo o que a palavra faz dentro da minha cabeça.

– Anjo... Estou ouvindo essa palavra agora...

– Anjos? Como o Zack disse? Que viemos dos ossos dos anjos? Ou da poeira deles, não sei... – Perguntou minha amiga chegando mais perto, esperando ouvir também. – Meu dom nunca foi visto como agora. Inutil. Parece nem funcionar.

Fecho os olhos de novo. Em algum lugar de algum livro estão minhas respostas. Muitas perguntas vem a minha mente. De onde viemos? Por que temos cores diferentes nos olhos? O que somos afinal?

A primeira resposta que veio, foi a da minha última pergunta. Nós somos frutos de anjos caidos. A voz era forte, um grito dificil de entender. Não é isso que significa essas palavras, é muito mais, penso.

– Nós somos filhos de anjos. Talvez não tão certo assim. – As palavras sairam pela minha boca, antes mesmo de eu concluir os meus pensamentos. – Cada anjo tem uma cor de olhos diferentes. Porém, isso não mostra no cristianismo, nem em nenhuma religião atual. Cada anjo pode não ter o seu sexo, como dizem, mas somos frutos deles. Nós somos os frutos.

Sofia me olha, como se eu estivesse falando alguma tolice.

– Então está me dizendo que você é a resposta do que seria o fruto de Eco? – Foi a primeira vez que vi a Sofia falando com um sentimento ruim. Parecia inveja. Mas de que?

– Não! Não é isso que estou tentando dizer. – Falo rápido. – Na verdade, não sei bem o que estou querendo dizer. Pelo menos sei de onde viemos. E eu não sei como funciona essas coisas de “filhos de anjo”. Também estou tentando entender. Mas então não somos humanos?

– Pelo menos sabemos nossas raízes agora. Mais ou menos. – Sofia sentou-se no chão, esperando que eu continuasse. – Não sabemos de qual anjo somos, nem que fruto de anjo Eco tinha, porém... sabemos que existe.

– É...

– Por que existimos? – Por que essa garota tinha que ser cheias de perguntas? Fechei os olhos e tentei me comunicar com os livros. Que frase ridícula.

Um segundo... dois segundos... Um pouco a cada momento, as coisas foram clareando e consegui entender melhor a resposta.

– Olhos laranja, o significado mais forte deles é a proteção – Digo me lembrando de quando Rob queimou as árvores para chamar minha atenção. Como se quisesse me proteger de quem é Kevin. Ou quem era. – Eles normalmente são sensiveis e sempre querem estar por perto de quem é importante para eles. Os protegem como se fossem realmente as coisas mais importantes do mundo... Como se fossem a própria vida dos protetores.

– Como o Robert com a Ash. Ele me contou que ela parace com a mãe dele. – Sofia estava olhando e absorvendo tudo o que eu dizia. – Pelo menos é o que ele imagina ser o motivo de ser tão ligado a sua tataratatara... avó.

– Estou ouvindo agora tantas coisas... É difícil me concentrar...

– Fale sobre a cor vermelha, o que significa?

– Os olhos vermelhos de nascença... Bem... eles tinham uma vida luxuosa, um grande charme e normalmente conseguiam o que queriam, uma vez que o próprio nome significa turbante, ou “o rei dos clãs”. – Tento não falar com nenhuma emoção em particular. – Eles tentam se mostrar diferentes. Normalmente usavam algum simbolo para mostrar de que nivel eram. – Pensei na cor de cabelo de Sofi, evidente que ela queria se mostrar diferente. Ainda mais do que já era. – E atualmente são raros.

– Nossa...

– Não viemos apenas dos ossos dos anjos – Conto o que escutei de uma das vozes. – Nesta livraria tem palavras que não entendo. Até agora o que eu ouvi não foi na minha lingua e nem sei como entendi. Porém... esta voz especifica que estou tentando identificar agora... É como se dissesse que somos uma mistura. Os anjos não tinham a capacidade de ter filhos no inicio, então com seus ossos e outros ingredientes nos fizeram. Mais tarde eles conseguiram de uma maneira mais biológica, criando então os Nelphilins.

– Tipo da costela de Adão surgiu Eva? E como é a voz? – Perguntou-me Sofi.

– É tão pura... e nem um pouco conhecida... É como se fosse...

– Iluminada. – Concluiu minha amiga. – Essas palavras devem ser na lingua dos anjos então.

– Assim como as da porta. Você aceitou tão fácil não sermos como os Normais. De que religião você é?

– Certo... Bem, pelo o incrível que pareça eu fui batizada em uma Igreja Batista, logo não era muito fã de imagens santas. Com o tempo, eu era vista como uma bruxa de uma nova era, por assim dizer, um demonio onde morava quando criança. Perdi o apreço pela igreja e pelas companhias. Contudo, ainda sigo os ideais da religião, que é o que mais importa. Então... Essas vozes sabem onde está Eco? – Sofia se pôs em pé e limpou a sujeira que contia em sua roupa.

Muitas perguntas vireram na minha cabeça, principalmente esta: Será que os anjos estão se comunicando? Será que o meu clã conversava com os anjos? Por isso eu consigo escutar e a Sofi não? Ou é apenas a minha meditação estar sendo mais forte do que a dela? Isso seria a voz de um anjo? Ou apenas palavras de um livro tolo?

– O que fazem aqui? – Ouvi uma voz séria e baixa. Ela veio de alguém perto da porta dos fundos.