Os novos herois do Olimpo

Senhores passageiros, em caso de despressurização da cabine, não pulem pela porta aberta do avião.


Oliver entrou pelo saguão do aeroporto e se dirigiu às máquinas de check-in automático. No caminho percebeu uma quantidade diferente de seguranças. Em todo lugar tinha alguém com um walkie-talkie e olhos vigilantes procurando alguma coisa, ou alguém. Alguma coisa coçou na sua nuca, e ele se sentiu incomodado de verdade. Era como se ele soubesse que estavam à sua procura. Como se ele fosse o alvo de todos aqueles olhares curiosos.

Casualmente, Oliver evitou a área de check-in, indo em direção aos banheiros perto das lojas de Duty Free. Parou perto de uma fileira de bancos que dividia espaço com uma coluna de concreto, num lado cego da parede. Ali ele poderia ficar uns minutos sem despertar a atenção de ninguém. Tirou o frank da mochila e num par de deslizadas de dedos hackeou o sistema de câmeras do aeroporto. O que ele viu não o deixou nem um pouco mais aliviado. Havia viaturas de polícia nas pistas de decolagem, e agentes de segurança usando coletes vermelhos em todos os portões de embarque. Mas o que o deixou realmente assustado foi ver um grupo de agentes especiais entrando pela porta da frente: eles usavam ternos baratos, quase retos, com gravatas pretas e óculos escuros, mesmo à noite. Pareciam uma mistura mais que real e assustadora de figurantes do filme “homens de preto” com os agentes de “matrix”. Um deles olhou diretamente para a câmera de segurança, como se olhasse diretamente para Oliver, apontou o dedo e fez o movimento como o de um tiro sendo disparado.

A câmera parou de funcionar imediatamente. Oliver pulou para trás, quase caindo da sua cadeira. Não poderia ser só coincidência. Tinha de sair dali e com rapidez. Ele apressou o passou e pegou um jornal esquecido em uma das cadeiras e foi sentar-se lá do outro lado do salão, perto dos elevadores. Pôs o jornal por sobre o rosto, como se estivesse lendo e esperou. A espera durou muito pouco. Dois agentes de segurança, com coletes vermelhos com o nome “Giges Segurança: cem mãos e cinquenta cabeças para a sua proteção” vieram correndo e vistoriaram a área. Passaram por onde ele estava sentado. Oliver piscou por um instante e penou estar alucinando: por um momento não eram homens e sim cães enormes em forma mais ou menos humana, com as roupas e os coletes. Um deles abaixou-se na cadeira e pareceu farejar. Oliver sentiu uma pontada na cabeça – as dores tinham se tornado mais comuns desde que completara 14 anos – e instintivamente entrou no elevador. Apertou o primeiro botão que passou os dedos em cima e a porta fechou, a tempo de sua visão voltar ao normal e os homens cachorros virarem apenas seguranças particulares de novo.

Estava suando dentro do elevador. Foi que percebeu a placa “elevador em reparos, dirija-se a outro elevador, por favor”. O elevador passou do teto, indo para o novo andar que esta sendo construído. Ele sabia que o aeroporto estava em reformas. Mais dois andares estavam sendo erguidos por cima dos andares originais. Agora lá estava ele, no primeiro andar do novo pavimento. As portas do elevador abriram como se o convidassem para sair de lá. Depois de dar dois passos para fora da cabine a mesma se desligou como se não tivesse qualquer energia. Mesmo as portas estavam abertas, como se anunciassem um elevador com defeito.

Oliver andou até uma das colunas e se sentou. Tinha de por a cabeça em ordem. O que deveria fazer? Como ir embora? Olhou à sua volta. Estava sozinho no andar em construção, cercado por material de construção, ferramentas e poeira. O frank apitou, lembrando que ainda tinha dois minutos para fazer o check-in eletrônico. Agora mais essa. Resolveu arriscar. O plano surgiu na sua cabeça como uma torrente de informações. Fez o check-in com seu nome e depois comprou mais umas duas passagens. Usou o cartão de débito on line. Começou a usar os programas do frank para fazer reservas e mais reservas, mandando inclusive um taxi ir busca-lo. Hackeou mais uma vez o sistema de segurança do aeroporto e pôs seu plano em prática. Pegou o celular, ativou um programa que mascarava sua voz e disse para a frequência dos walkie-talkies.

– Atenção pessoal da segurança: alvo localizado saindo do aeroporto. Ele acaba de entrar num taxi, descendo em direção ao centro da cidade.

O efeito foi como ele havia planejado. Lá em baixo, dúzias de pessoas corriam para fora do aeroporto, como se fossem um monte de baratas tontas. Ele olhou para o elevador e as luzes se acenderam de novo, como se o estivessem convidando para entrar. Ele entrou e o elevador desceu, sem que precisasse apertar nada, deixando-o na porta do embarque. Ele foi até uma das máquinas de check-in eletrônico e imprimiu suas passagens. Quatro no total. Uma para Brasília, que tinha comprado mais cedo; outra para Manaus, no vôo que decolaria em dez minutos; outra para Fortaleza e a última, que ele realmente pretendia embarcar, para Goiânia.

Pegou o passaporte italiano e apresentou na hora do embarque. A mulher da companhia aérea, solícita, falou com ele em inglês macarrônico e ele embarcou. Com frank ligado ele viu notícias ao vivo de um taxi que tinha se metido em uma perseguição com policiais e do vôo para Brasília que havia sido cancelado por uma ameaça de bomba a bordo.

Oliver guardou o celular e recostou-se na poltrona. Nunca antes tivera uma sensação tão boa ao decolar. Colocou os fones de ouvido afundou ainda mais o capuz. Estava cansado, estranhamente cansado. Cochilou quase que instantaneamente.

No sonho ele estava na universidade de Berlim, aprendendo alemão com sua tutora. Hilda sempre implicava com o modo que ele pronunciava o “vän”, fazendo-o repetir infinitas vezes. De repente o mundo pára, como se alguém tivesse apertado o botão de “pause”. Tudo parou, congelado no ar: pássaros voando e os lábios da tutora eram agora estátuas vivas. Só ele se mexia. Então ele ouviu passos. Virou-se e viu um casal vindo na sua direção. Eles pareciam de outro tempo: num instante reconheceu o pai, tão jovem quanto nas fotos antes de morrer. A mulher ao seu lado era a mesma da foto do avião. “Mamãe” deixou escapar de seus lábios. Mas ela não ouviu, nem mesmo o pai. Os dois passaram por ele, como namorados, conversando casualidades. Ele se virou para acompanhar o movimento, mas viu apenas o pai, acompanhado por uma linda forma de luz, como uma estrela. O brilho foi interrompido com o som que parecia um tiro ou um trovão, não soube ao certo. Ele olhou e viu um dos agentes vindo na sua direção com uma adaga.

Oliver acordou assustado, ofegando, com o celular tocando o despertador. Ele olhou aturdido e viu o mesmo agente de seu sonho ali na sua frente, sacando a adaga do bolso do terno. Oliver levantou da poltrona com um pulo. Em volta, tudo congelado no tempo, como no seu sonho. Mas ele sabia que estava acordado. Sua visão turvou e o agente mudou de forma: tinha uma cabeça vermelha, com olhos negros e vazios em suas órbitas. Os dentes eram pontudos e seu hálito cheirava alguma coisa morta há muito tempo.

– Você pode ver como sou. Que bom! Não preciso mais dessa tola ilusão. Você nos deu trabalho, mas agora vai morrer. Fique parado e eu prometo que será quase indolor.

O demônio – não havia outro nome para se referir àquela coisa, pensou Oliver – esfaqueou um senhor deitado. O espírito do homem se mexeu como uma imagem duplicada de si mesmo agarrando o peito, como se estivesse tendo um ataque cardíaco. O garoto seria o próximo.

Oliver estava em pânico. Pôs a mão no bolso e sacou o canivete suíço. Era um modelo antigo, compacto e pequeno. Vermelho, com as cores douradas do símbolo de estrela destacando-se sua ponta. Ele nem sequer teve tempo de puxar puxou a lâmina do canivete para fora. Ela mesma sacou sozinha, como se fosse feita de metal líquido, como no filme do exterminador do futuro. Ela projetou-se para frente mais de 90 cm, assumindo o formato de uma espada antiga. Parecia uma espada grega, pesada. O agente deu um passo atrás, mas controlou-se e empertigou-se.

– Essa espada – ele balbuciou – não é possível! Ela deveria ter sido destruída eras atrás. Como você a conseguiu? Não importa, agora mesmo eu vou te matar e vingar meus companheiros que padecem no tártaro por tua causa e de teus sói.

O cabeça vermelha atacou. O golpe foi certeiro, digno de um profissional, mas o braço de Oliver moveu-se antes que ele pudesse pensar, bloqueando a estocada fatal. A lâmina da espada mudara de formato novamente, aparentando agora uma espada curta e larga, como vira antes num jogo de videogame. Oliver pensou em dar um passo para trás e recuar, mas quando viu estava lutando. Não apenas lutando, mas empurrando o agente pelo corredor. Oliver nunca fora do tipo atlético: a única vez que tentara fazer alguma luta foi jogando star wars no nintendo wii – e mesmo assim falhara miseravelmente. Mas lá estava ele, empurrando um katómeros, um demônio do mundo inferior com a sua espada-canivete-suíço-mágica.

– Espere aí, mas como é que eu sei que você é um kató...

Oliver não chegou a terminar a frase. O cabeça vermelha aproveitou-se da falta de concentração de Oliver e aplicou um chute frontal que o empurrou seis filas de poltronas para trás, bem perto da figura paralisada de um senhor de idade tomando água numa garrafinha de plástico. A espada caíra perto dele, quase ao alcance da mão. O ar faltou de seus pulmões e o desespero tomou conta dele enquanto o demônio de cabeça vermelha se aproximava.

– Seu sangue não despertou ainda, pelo menos não totalmente. Aposto que nem foi reclamado e nem sabe o que sou ou mesmo porque vai morrer. E nem vai ter chances: morra mestiço!

Oliver implorou por ajuda, esticando a mão e tudo que veio à sua mente foi a voz de uma mulher sussurrando um nome... era um nome distante e ao mesmo tempo familiar, como se ele tivesse ouvido esse nome centenas de vezes no passado. O nome queimou em sua garganta e ele o gritou: astéron thráfsma!

O que ele viu a seguir só poderia ser a cereja do bolo de um sonho louco: a espada-canivete voou para sua mão e explodiu em seguida. O brilho fez o katómeros recuar. A espada agora era um estilizado fragmento de estrela em suas mãos. Seu braço apontou na direção do agente e seus músculos se contraíram. Uma nova rajada de luz, só que agora concentrada como um raio explodiu no peito do agente, empurrando-o como uma flecha em direção à porta da frente. A porta abriu-se, e por um momento nada aconteceu. Oliver se levantou e pegou a mochila do compartimento de bagagens acima de sua poltrona. O mundo parecia ainda estar congelado.

– Espere aí – ele pensou em voz alta – essa é uma cabine pressurizada e estamos a mais de 10 mil pés de altitude, voando a pelo menos 400km por hora. Não deveria acontecer alguma coisa?

Oliver não teve tempo de pensar sobre o assunto. Num borrão de cores tudo voltou a se mover. A explosão da porta o atordoou e antes que ele pudesse pensar em reagir, ele estava sendo sugado para fora do avião. Ele tentou se agarrar em qualquer coisa, mas por fim foi sugado para fora, como um lenço jogado fora de um carro voando pela auto-estrada.