Os novos herois do Olimpo

Dois namorados e um dragão fumengante


O transporte para a terra de Zeus deixou todos enjoados. Eric precisou de vários minutos encostado numa pilastra da pequena ágora que se encontravam. Isabel estava sentada num banco não muito longe, sentindo o seu cérebro revirar dentro da cabeça. Mas foi Foverí Savra, o dragão de bronze, que aparentemente estava sofrendo mais. Ele girava de um lado para o outro, com as costas apoiadas no cão, como se quisesse coçá-las e não conseguisse alcançar. Era fofo de olhar, se você não se importasse com duas toneladas de bronze se raspando no chão.

O mais interessante é que ninguém notava. Ou se notavam não davam qualquer bola. As pessoas passavam por ele, jogavam um breve olhar de curiosidade e depois iam embora. Até que uma senhorinha, estilo vovozinha, vestindo trajes típicos gregos chegou perto do dragão.

– O que foi que houve, mocinho? – disse ela com a voz tão doce e carinhosa que Sav parou de se contorcer... – está com coceirinha, é? Deixe a vovó coçar atrás da sua orelhinha.

Sav baixou a imensa cabeçorra e a idosa começou a coçar atrás da sua orelha. Ele foi se acalmando, batendo a calda longa de um lado para outro como se fosse um filhotinho de cachorro. Depois de uns dois minutos a idosa deu-se por satisfeita. Ela foi embora dando adeus ao dragão.

A cena era impressionante aos olhos de Eric. Tanto que ele se esqueceu de sua tontura e mal estar. Com alguma dificuldade ele parou do lado de Isabel. A menina parecia concentrada, mas ainda assim com um semblante relaxado. Ao vê-lo perto dela, Isabel abriu um largo sorriso.

– Magia. – disse ela. – A névoa aqui é muito forte. Eu fiz Sav parecer um cachorrinho. Achei que chamaria menos atenção do que um dragão de bronze armado até os dentes.

– Bom trabalho amor. Alguma ideia de onde estamos?

– Tenho certeza que estamos nas terras de Zeus. O seu reino é bem menor do que os outros. Eu diria que é do tamanho da cidade de São Paulo, não mais do que isso. – especulou a menina. – ele é todo plano e de onde quer que você olhe você pode ver a sua torre.

– A torre de Zeus. O diamante da coroa do Olimpo. É lá que Zeus está preso, não é? - perguntou o menino.

– De acordo com o pergaminho é sim, mas não tenho mais tanta certeza. As nossas vidas mudaram tanto nas últimas semanas... esses poderes – ela gesticulou no ar e uma fadinha feita de vento e água surgiu na sua frente. A fadinha sorriu e passou a arrumar os cabelos de Isabel. Faziam uma trança tradicional grega. Longa e respeitável. – Eu não sei. Sito que tem algo errado.

– Acho que termos de encarar seja lá o que estiver nos esperando. – disse Eric resoluto, olhando para torre de Zeus que não deveria estar a mais do que algumas quadras de distância. – Mas se eu estiver do seu lado, o desafio não importa.

A menina sorriu de volta e os dois deram as mãos. Depois caminharam de mãos dadas até Sav.

– Para onde? – perguntou o dragão com sotaque de motorista de taxi de Nova Iorque.

– Torre de Zeus, bom dragão. Não temos tempo a perder. E Sav? Sem voar, ok? Não quero encontrar uma águia de sangue nunca mais. – O dragão concordou com um aceno de cabeça e começou a sacolejar pelas ruas pavimentadas, levando os dois meninos em suas costas. Eric ficou intrigado com o que será que as pessoas do reino veriam quando Sav passasse. A névoa fazia a égua infernal do professor Roberto parecer uma moto Harley Davidson e o cavalo de Oliver numa moto cross branca.

Os três seguiram até que se depararam com uma espécie de barreira policial. Soldados vestidos como centuriões romanos, usando o símbolo de Apolo no peitoral de suas armaduras douradas paravam qualquer pessoa que se aproximasse da torre. Não havia espaço para manobrar o Sav. Seguindo o fluxo de carroças e pessoas os dois meninos seguiram direto para a patrulha.

– Bom dia cidadão. – disse o soldado sem muito entusiasmo na voz, como se já tivesse cumprimentado mais pessoas do que pudesse cumprimentar. – A passagem para a torre de Zeus está fechada enquanto os deuses estão reunidos.

– Mas que revés mais inconveniente. – disse Eric, parecendo bastante dramático.

Provavelmente todas as passagens para a torre estariam vigiadas assim. Essa era talvez a única chance que tinham de passarem sem que todos os guardas do mundo soubessem que se tratava de uma invasão. Eric tinha de raciocinar rápido. Ele sacou a sua dracma de ouro e a mostrou para o soldado como se estivesse dano uma carteirada em alguém.

– Tenho certeza que assas credenciais são mais que o bastante para que possamos passar, não é? - disse Eric, forçando todo o seu charme para seu sorriso. O guarda, entretanto, não parecia convencido. Então Eric tentou outra estratégia. Ele se concentrou na névoa e tentou usá-la a seu favor. Ele apontou para o guarda com os dedos anelar e médio, passando-os de um lado para outro enquanto falava com voz firme. – Não somos nenhuma ameaça.

– Vocês não são nenhuma ameaça – repetiu mecanicamente o guarda, como se estivesse subitamente com sono.

– Vocês vão nos deixar passar... temos uma coisa importante para entregar na torre de Zeus. – disse novamente o menino com voz firme, passando os dedos de um lado para o outro.

– Podem passar. Esses mensageiros têm uma entrega importante para a torre! – disse o soldado brindo a passagem.

– Como você fez isso? – perguntou, incrédula, Isabel.

– Eu vi num filme. “A força, quero dizer, a névoa tem uma poderosa influência sobre as mentes fracas” – disse o menino imitando o sotaque inglês.

– Ei cidadão! – eles ouviram o guarda gritar atrás deles, apontando a espada na sua direção – Truques jedi não funcionam comigo. Vanguarda de Apolo, atacar!

Os quatro soldados desembainharam suas espadas e correram na direção do dragão. Isabel gesticulou, como se estivesse fazendo algum kata de kung fu e uma pedra de calçamento saltou do solo como se tivesse sido empurrada por uma mola invisível e poderosa. O soldado que estava sobre ela foi arremessado como uma bola chutada por um zagueiro descuidado de time de várzea, indo parar desacordado num telhado ali perto.

– Eu vi num desenho – explicou-se ela enquanto preparava outro feitiço.

Sav virou na direção dos guardas e deu um arranque com sua longa cauda. Dois deles foram acertados com força, indo parar na parece mais próxima. O último guarda esquivou com facilidade do ataque do dragão e já estava quase sobre Isabel, saltando majestosamente no ar quando foi atingido por uma voadora de Eric.

– Sai para lá, jaburu. Sav, nos tire daqui. Velocidade máxima!

O dragão acenou com a cabeça e começou a correr desesperado pelas ruas à frente. A sua lataria resfolegava de vapor pelo esforço. Obviamente era um dragão feito para tomar os céus: correr pela terra não estava nos planos de quem o construiu. Depois de passar por outra ágora Eric viu um beco apertado o bastante para o que queria. Ele manobrou o dragçao para que entrasse no beco sem saída de ré.

– Principeza, pode nos dar alguma cobertura?

A menina entendeu de pronto o que Eric queria. Sacou do bolso um pequeno lenço de linho e começou a balança-lo. Logo o lenço foi ficando grade como uma capa, depois como um cobertor e logo depois com aspecto de uma manta de lona. A sua magia fez a lona levitar sobre Sav e cobri-lo, deixando apenas seus olhos de fora.

– Agora, um pouco de cor – disse a pequena bruxa gesticulando para a lona. Logo Sav estava camuflado como a parede do fundo do beco sem saída. Qualquer um que olhasse da rua não veria o dragão, mas ele veria tudo o que estivesse em sua frente.

– Sav, eu tenho seu número. – disse Eric mostrando o celular – se eu precisar eu ligo e você vem me salvar, ok?

– Não está no contrato de locação – disse o dragão, imitando a voz pedante de Sheldon Cooper – mas tenho certeza que será divertido como tem sido até agora.

Antes de saírem do beco, Isabel fez mais um feitiço. Fez com que suas roupas mudassem: dos trajes do santuário ela estava agora vestida como uma moça da Grécia antiga. Sua pele mudou do claro para um moreno bronze e a cor de seus cabelos passou a um tom mais escuro e crespo. Eric ganhou nova roupagem: uma meia túnica cobria o seu peito, morrendo num largo cinto de couro, adornado com uma fivela de ferro. As calças foram trocadas por um saiote curto e os sapatos por sandálias de couro com tiras enroladas nas pernas. O cabelo também mudou, ficando loiro e brilhante como um filho de Apolo. O menino se viu pela tela do celular. Estava muito parecido com o seu pai, tirando a cor dos cabelos, que ele achou meio playboy. Os dois saíram juntos de mãos dadas, como um casal jovem que está aproveitando o dia nas terras de Zeus.

Quem não conhecesse os ritos dos semideuses e das criaturas fantásticas de seu mundo poderia pensar que está tudo certo nas terras dos deuses. É certo que as ágoras estavam limpas e lindas como um sonho. As ruas estavam limpas, as pessoas circulavam, os vendedores sorriam para seus clientes. De um lado para outro centuriões passavam, corteses, garantindo a segurança de todos. Mas havia alguma coisa errada. Uma palavra não dita, um sorriso forçado, um olhar de criança assustada por cima do ombro. Havia uma tensão no ar. As pessoas estavam com medo. Isabel sentiu isso quando viu guardas passarem do outro lado da rua. Uma menina pequena calou seu canto e segurou sua bola com tanta força, como a bola fosse a única coisa que a manteria viva.

De repente Eric se lembrou de uma cena de o senhor dos anéis. De fato ele não gostava tanto assim do filme, mas não podia passar vergonha entre os amigos nerds dizendo que não achava assim tão fantástico. A cena em que Frodo quer entregar o anel para Galadriel surgiu límpida na sua mente. “No lugar do senhor do escuro, teria uma rainha! Não escura, mas bonita e terrível como o amanhecer... Traiçoeira como o mar, mais forte que as bases da terra. Todos deverão me amar e se desesperar...” Será que tinha sido isso que ocorrera com Apolo? O desejo pelo poder o cegara daquela forma? O que ele estaria disposto a fazer, no que ele estaria disposto a se transformar para conseguir o que desejava? Eric simplesmente não entendia a complexidade dos deuses. Ele pegou o dracma de ouro de seu bolso e olhou longamente para ele.

– Não vou mais jogar seus jogos, pai. – disse o menino envolvendo a dracma com um pedaço de papel e colocando sobre ele um selo. Depois ele jogou o pacote para cima e ele desapareceu no ar.

– O que foi isso Eric? - perguntou Isabel.

– Nada... – resmungou o menino. – Vamos, temos um deus para libertar.

Andaram mais alguns minutos até que chegaram aos degraus da torre de Zeus. Os dois meninos, ainda de mãos dadas, começaram a subir os degraus até a imponente entrada, onde dois enormes gigantes de gelo guarneciam a porta.

Os dois lembravam versões distorcidas de Zeus. Malignas. Eles não se moveram quando os dois meninos cruzaram o pórtico e se dirigiram para o salão central.

– O que estamos procurando? – perguntou Eric.

– Uma escada para descer.

Os dois circularam por mais uns minutos até perceberem que o salão central era o único lugar permitido a visitas. Os dois verificaram, para seu desgosto, que a segurança era muito mais fechada que lá fora. Qualquer descuido e teriam centenas de centuriões sobre eles. Pararam num cantinho, no encontro de duas paredes, por trás de uma larga coluna.

Como vamos fazer para descer? – perguntou Isabel.

– Acho que tenho um plano. – Eric sacou do bolso interno uma caneta de quadro branco. Ele desenhou um contorno de portas duplas. Depois desenhou um retângulo do lado com dois botões. No de cima escreveu “up” e no de baixo escreveu “down”. – Preciso que você me ajude. Manipule a névoa. Acredite que esse é um elevador de verdade.

Isabel concentrou-se. Manipulou a névoa. Estava fazendo a realidade dobrar-se sobre si mesma. Por sua vez Eric estava apertando o botão de “down” freneticamente. O menino começou a suar. Logo um fio de sangue desceu do seu nariz.

– Abre, porta idiota! Abre. – ele continuava pressionando o botão pintado na parede. – Caramba, eu sou o rei das fechaduras e eu não vou ser negado!

Por fim o menino caiu de joelhos. Ao longe ele ouviu passos se aproximando. Centuriões. Estava cansado demais para fazer qualquer coisa. Ele se pôs de pé. Se iam leva-lo não seria sem uma luta. Mas então ouviu outra coisa: um sino de elevador e o som de portas abrindo.

Quando os centuriões chegaram onde o casal deveriam estar, não acharam nada, a não ser as portas fechadas de um elevador...