Uma intromissão inesperada

O combate rugia feroz. De um lado os semideuses reunidos com o intuito de salvar o Olimpo, libertando Zeus e do outro Apolo, possuindo o corpo de uma sacerdotisa meio hippie e muito idosa, controlando um gigante. Mas não era um gigante qualquer: era uma versão aprimorada (gigantes passam por updates?) de Damasen, o gigante criado especialmente para destruir Ares, o deus da guerra. A sacerdotisa gritava comandos para o gigante, chamando-o de Damasceno, coordenando o que ele deveria fazer. O gigante atacava sem medo ou remorso, como um robô, mas sem a mesma pontaria de um autômato programado.

Quando uma cratera do tamanho de um carro popular apareceu ao lado de Eric, erguendo sobre ele uma chuva de lama e lixo decomposto, devido a um tiro de canhão disparado pelo gigante, o jovem filho de Hermes deixou escapar a plenos pulmões:

– Mas esse gigante atira pior que um stormtrooper vesgo!

Oliver por sua vez continuava disparando rajadas de energia. Só que seus movimentos ficavam cada vez mais lentos. Cada vez que usava a rajada consumia parte de sua energia pessoal. Se não tomasse cuidado desmaiaria de cansaço. Mas ele estava feliz porque Jade estava bem. A menina por sua vez se esforçava a estar do lado do rapaz, protegendo-o enquanto ele disparava suas rajadas de energia. Não eram tão efetivas quanto o corte da lâmina da espada – que por sua vez estava quase fechado – mas ajudavam a manter Apolo e o gigante à meia distância.

– Qual é o plano? – perguntou Lucas, terminando de despachar o último dos katómeros restantes com a mão em forma de clava espinhosa.

– Temos três opções reais de sairmos daqui com vida: nocautear a sacerdotisa, destruir aquela placa de circuitos no peito do gigante ou fugirmos pela mata. – disparou Eric limpando o que parecia ser um monte de casca de banana seca misturada com lama de seus cabelos.

– Por que a placa de circuitos? – perguntou Nathália.

– Eu acho que a placa serve para controlar o gigante. Não sei como, mas acho que Apolo controla o gigante com ela. Se nocautearmos a sacerdotisa o marionete vai ficar sem seu manipulador. – Disse Eric animado, nem tanto pelo plano, mas ao perceber que não era uma espinha de peixe que tirava do cabelo e sim um pedaço de plástico.

– Mas ainda assim é perigoso. Imagine o que pode acontecer se o gigante estiver controlado apenas por conta da tal placa de circuitos? E se, sem o controle dela, o gigante resolver explodir como uma bomba bubônica? – perguntou Isabel, reorganizando as fadinhas de fogo restantes em um círculo largo em volta do grupo.

– Bomba atômica – corrigiu Lucas, fazendo sem querer que a menina enrubescesse as maçãs do rosto. – mas você levantou um ponto muito válido. Quem vamos atacar? Qual é o alvo com menos chances de tudo dar tudo terrivelmente errado?

Uma explosão correu o campo de batalha enquanto Jade era jogada para longe com a força dela. Ela foi jogada por cima de algumas arvores queimadas e se levantou arranhada. O sangue vertia pelo braço que segurava a espada, manchando o tecido da sua blusa.

– Seja lá o que vocês estiverem planejando é melhor fazerem agora! – berrou Oliver que se esforçava para deter o avanço do gigante.

Lucas saiu do círculo de proteção fazendo com que as raízes das árvores se enredassem fortemente nas pernas do gigante. Não qualquer raiz. Ele pedira que as raízes de pau de ferro fizessem o trabalho. A madeira de lei do pau ferro é muito dura, provavelmente a mais densa e pesada das Américas. Era utilizada na confecção de tacapes pelos antigos índios. Elas cresciam com rapidez, enroscando-se e contorcendo-se pelas pernas do gigante. Isabel vinha logo atrás. Ela sussurrou alguma coisa, mais como uma súplica por desculpas do que um encantamento propriamente dito. As raízes brilharam por um momento e quanto o brilho cessou elas não era mais raízes de madeira e sim de ferro. Ferro frio. Mágico.

O gigante deu um passo mas não pode se mover. Depois puxou uma perna e nada conseguiu. Por fim ele urrou de frustração, tentando arrancar as nodosas raízes de suas pernas monstruosas. Foi nesta hora que Nath e Eric atacaram. Montada nas costas de Eric, Nathália convertera sua espada num bastão armado com um taser na ponta. A ideia era nocautear a sacerdotisa e não matá-la. Eric por sua vez segurava a pernas da amiga e rezava para manter o equilíbrio, correndo àquela velocidade por um campo de batalha tão irregular. Num determinado ponto do trajeto Eric saltou para frente. Aproveitando-se do momentum do movimento Nathália saltou, adicionando a força de suas pernas à potência original do salto de Eric. O resultado foi uma bala de canhão humana voando na direção à Sacerdotisa.

Por um segundo, enquanto olhava o desenrolar da batalha, Jade achou que teriam uma chance. Oliver trabalhava desajeitadamente para enfaixar o seu braço e ombro, mas isso não a incomodava. Ela começava a perceber os limites de sua invulnerabilidade. Foi quando sua boca entreabriu-se e o grito de espanto congelou um sua garganta. Com força insuspeita a sacerdotisa adiantou-se, ainda flutuando no ar com a ajuda das correntes de fumaça. Uma das correntes formou um imenso punho que atingiu Nathália em pleno ar, com força titânica. O golpe fora tão poderoso que arrancou algumas peças da armadura. Nathália caiu chapinhando no chão, como uma pedra lisa jogada sobre a superfície calma de um lago. Não fosse a proteção da armadura, estaria morta com certeza.

No mesmo instante o gigante ergueu os dois braços para frente, como se estivesse se rendendo. Depois bateu palmas. A onda de choque varreu o campo de batalha, com sua força irresistível carregando tudo em seu caminho. Era como um tsunami de energia, carregando árvores, pedras, terra e tudo mais que não estivesse devidamente colado na terra. Segundos depois um vento varreu o campo de batalha, revelando a extensão de toda a destruição. Todas as árvores num raio de 2km do ponto de impacto tinham sido arrancadas ou chão ou simplesmente despedaçadas como gravetos. Jade e os outros tinham sido arrastados pela onda de choque e só não foram esmagados pelas incontáveis toneladas de entulho por que as fadinhas de fogo e os gnomos de terra restantes de Isabel tinham criado um campo de força que os tinha protegido. Mas o esforço para tal feito tinha drenado as forças da menina e ela desmaiara logo depois, respirando com dificuldade.

– Mortais tolos... vocês achavam que teriam alguma chance contra mim? Mesmo confinado neste frágil e dispensável corpo mortal eu ainda sou Apolo, o senhor dos céus. – um relâmpago cruzou o céu em protesto naquele momento, mas isso não pareceu abalar a fala do deus, ou a sua confiança – Eu estou na minha cidade: a terra do sol. Vocês acham realmente que poderiam ir e vir sem que eu soubesse?

A sacerdotisa desceu de sua posição elevada, ainda envolta pelas correntes de fumaça. Atrás de si o gigante ainda lutava para se libertar das raízes de ferro que tinham prendido suas pernas.

– Eu não vou mandar vocês para o Tártaro imediatamente... Não... Isso seria bom demais para vocês. Vou torturar vocês... Sim, parece uma boa ideia. Farei com vocês um exemplo ainda maior do que fiz com Cassandra. Quem sabe eu poderia... – disse ele sem completar a frase, deixando no ar apenas um risinho maligno no canto da boca.

Os meninos olhavam para ele aterrorizados. A face de Apolo estava tomada por um sentimento maior que da fúria. Ele estava louco. Insano, como se algo ou alguém sussurrasse sandices em sua mente.

De repetente todos ouviram um assobio, cada vez mais alto e agudo. A sacerdotisa voou para a sombra protetora do gigante quando alguma coisa caiu do céu. Um meteorito talvez? Do meio da cratera formada pelo impacto saiu uma linda mulher. Ela vestia uma armadura tradicional das amazonas de Atena, botas de couro vermelho, braceletes e elmo de prata, e trazia na cintura uma espada que ressonava com indisfarçável poder. Sua pele era morena clara, seus cabelos castanhos escuros, seus olhos eram de profundo verde e seus lábios brilhavam com intensidade carmesim. Nas costas, ao invés do tradicional escudo redondo das amazonas ela trazia uma mochila de couro que parecia conter um botijão de gás. Ela ignorou os meninos assustados num canto e foi em direção à Apolo. Ao chegar a certa distância, ajoelhou-se diante do deus e falou:

– Ó nobre e poderoso Apolo! Saudações em nome de minha senhora e de suas irmãs. Sou Bárbara, senhora e capitã da guarda de honra de Atenas. Venho em sua presença como uma mensageira dos deuses. Tenho uma mensagem para ti, ó poderoso. Permite que eu cumpra minha tarefa e me afaste para que possas continuar teu intento.

Nathália já tinha lido sobre aquela armadura e o tipo de semideus que a porta. E era isso que a deixava assustada. Ninguém menos que um deus poderia exigir um trabalho daquela extirpe de criatura. E Atena não mandava suas guardas de honra fazer trabalho de mensageiro. Esse era o trabalho de Hermes e seus filhos. Alguém muito poderoso tinha convencido àquela guerreira a fazer a sua vontade.

Apolo por sua vez parecia um tanto confuso. Ele já habitava o corpo da sacerdotisa a tempo demais. Se demorasse muito mais ela seria destruída pelo esforço. Ele empertigou-se e falou:

– Pois bem mensageira. Dê sua mensagem e seja breve, pois tenho assuntos a tratar com esses aí. Assuntos que não dizem respeito a você ou a sua senhora – a última parte da frase pareceu uma ameaça velada.

A mensageira tirou a mochila das costas e dela desempacotou uma réplica do simpático e icônico robozinho da saga Star Wars, o inconfundível R2D2. O robozinho andou desajeitado até Apolo, emitindo uma série ininteligível de sons, apitos e chiados. Depois ele projetou uma imagem holográfica da princesa Lea Organa que repetia: “Obi-Wan Kenobi, eu preciso de sua ajuda. Você é minha única esperança”. A imagem repetiu-se por mais duas vezes até que Apolo perdeu a paciência.

– Que brincadeira é essa?

– Obi-Wan Kenobi, eu preciso de sua ajuda. Você é minha única esperança! – repetiu o robozinho.

– Guerreira, se esta é sua mensagem, acho que ela já foi entregue, embora não faça sentido algum. Eu a dispenso de sua tarefa. – ele disse isso gesticulando com o braço para que a amazona fosse embora, quando uma corrente de fumaça ergueu Oliver pelas pernas. O menino estava ainda atordoado pela onda de choque e mal percebeu que fora erguido em pleno ar.

– Obi-Wan Kenobi, eu preciso de sua ajuda. Você é minha única esperança! – disse a imagem holográfica emitida pelo robozinho uma última vez até que ela virou-se para Apolo e cresceu até ficar do tamanho de uma pessoa normal. Aos poucos a imagem foi mudando até que Lea Organa não mais existia e sim a figura de Astréia estivesse em seu lugar.

– Solte meu filho imediatamente, Apolo. – a voz de Astréia ressonou poderosa pelo campo de batalha e mesmo o gigante largou de tentar desenredar suas pernas para escutá-la. Astréia era como toda mulher: uma leoa quando se tratava em defender a sua cria. Nem Apolo era tolo o bastante para se opor à ela naquele momento.

– Astréia? O que está fazendo aqui? A reunião do conselho... – Apolo estava atordoado pela presença da irmã e largou Oliver quase que imediatamente. A projeção de Astréia foi até o menino a acariciou seu rosto desacordado, dedos holográficos tentando encaracolar seus cabelos em vão. Afinal, ela era apenas luz e som. Depois olhou piedosamente para todos os seus companheiros demorando a vista especialmente sobre Jade.

– Você é bonita e determinada. Não me espanta que o meu filho esteja tão envolvido por seus encantos. – depois Astréia virou-se para Apolo – eu deveria estar na reunião tanto quanto você, senhor do sol. O que os outros vão dizer de um deus maior usar sua influência para caçar aqueles que vão libertar Zeus? O que diriam da sua traição, da sua tentativa de golpe de assumir o poder do Olimpo?

– Essa é uma acusação grave! – a afetação de Apolo deveria demonstrar indignação, mas o fez parecer um ator de terceira categoria de novelinha teen – Você não ousaria. Você não é bem vinda ao Olimpo. Se Zeus for solto você voltará a seu exílio. Você só tem a ganhar quando eu for coroado o novo senhor do Olimpo.

– Isso não vai acontecer- falou Astréia com a voz amarga – Embora meu pai tenha me exilado, eu sei que o que ele sente de mim é medo. Medo de mim e de meus filhos. Somos poderosos demais. Temos potencial demais. Mas sinto que posso converter esse medo em confiança...

– Potencial? Poder? – esbravejou Apolo e os cabelos da sacerdotisa brilharam como uma luxuosa fogueira – Você não tem ideia do que é isso! Eu sou o sol, o majestoso sol! Sou eu quem ilumina este mundo miserável. É com a minha luz que as plantas se alimentam. É com a minha arte que o mundo se embeleza. É como o meu dom de cura que o mundo se reestabelece. São minhas previsões que guiam a humanidade! O que é você? Pequenas joias que embelezam o manto da noite e nada mais!

– Sabe Apolo, durante muito tempo eu acreditei nisso. Que as estrelas eram apenas “pequenas joias que embelezam o manto da noite”. Mas os humanos me ensinaram com sua ciência, com sua filosofia, com seus feitos e despertaram o meu potencial – Astréia estendeu o braço e a projeção holográfica mostrou via láctea – eu sou cada uma das estrelas do universo. Eu sou a forja ardente de milhões de sóis. Eu sou a escuridão perpétua dos buracos negros que não deixam escapar nem mesmo a luz. Eu sou a gravidade titânica que mantem o universo unido. Com um torcer de meus dedos eu posso ignorar todas as leis da física, do tempo e do espaço!

– Ela pode fazer isso mesmo, cara? - perguntou Eric sacolejando Oliver para que ele acordasse. Não que ele precisasse. Oliver já estava desperto e buscava por um pouco de ambrosia que tinha guardado num frasquinho que carregava no bolso.

– Eu não sei – disse ele destampando o frasco e bebendo o seu conteúdo – é bem possível que sim.

O menino tencionou levantar-se e a mão de Jade o manteve no lugar. Ela olhou sério para o garoto. Os adultos estavam falando, era a hora das crianças calarem. Pelo menos era isso que seus olhos de férrea vontade pareciam transmitir. O menino aquietou-se e passou a ouvir oque seus parentes divinos discutiam.

– Eu estudei o édito de Zeus. Ele diz que eu não posso erguer guerra contra outro deus, sob pena de encarceramento. Mas ele tem uma brecha que diz que um deus não pode deliberadamente enfurecer o outro e nem tomar dele o que lhe pertence. Neste caso o édito também vale. Em nome do édito eu o proíbo de erguer sua mão contra meu filho, sob pena de configurar uma ofensa pessoal, um ataque, de tomar de mim o que eu tenho de mais precioso.

Apolo empalideceu. Os cabelos da sacerdotisa voltaram ao normal e as correntes de fumaça enfraqueceram a ponto de tocar novamente o solo. Apolo estava sem palavras. O deus da oratória estava mudo.

– Acho que estamos entendidos. E só para provar de que falo sério sobre defender minha cria – Astréia olhou para a guerreira que tinha trazido a mensagem e acenou com a cabeça. Bárbara andou destemidamente até o gigante e a menos de dez passos dele sacou a espada. – você lembra-se desta espada, irmãozinho?

– A espada de Dâmocles! – exclamou Nathália – é uma arma que ficava sobre a cabeça do rei Dionísio o Velho, tirano de Siracusa. Dizem que ela ficava sobre o monarca o tempo todo, afiadíssima, presa apenas por um fio de cabelo. Ela era uma constante lembrança de que a vida de um monarca estava por um fio.

– Está certa menina! – o tom de Astréia era agora jovial – O seu pai tem razão de se orgulhar de você! Pois bem, depois do governo de Dionísio um conselheiro, filho de Ares, tomou a espada e a consagrou aos deuses. Essa espada acabou chegando a Hefesto que a infundiu com o próprio sangue. Eu fiz o mesmo. – ela acenou então para a mulher e o que aconteceu a seguir foi difícil de descrever.

A guerreira de nome Bárbara colocou a espada de volta na bainha e ficou em posição de luta. Depois com um rápido movimento, sacou a espada e cortou o gigante num borrão de bilhões de cortes por segundo. Num primeiro momento nada aconteceu, mas os cortes foram aparecendo no corpo da criatura. O gigante então começou a se desmanchar, pedaços de variados tamanhos se soltando dele. Cada pedaço que tocava o solo era convertido imediatamente em armas velhas e enferrujadas, sumindo em seguida. Antes de a espada ser recolocada na bainha o gigante não existia mais. Derrotado e sem mais forças para possuir a sacerdotisa, Apolo deixou o campo de batalha, rescendendo rancor.

Oliver correu para abraçar a sua mãe, mas passou diretamente por ela, indo se estabacar no chão. Acima deles uma chuva começou a cair. O menino voltou-se para a mãe, olhos mareados. Astréia tentou tocar nele, mas a projeção o atravessava.

– Querido... sinto tantas saudades suas... – disse ela deixando lágrimas feitas de luz e som rolarem por seu rosto alvo e transparente.

– Senhora, se me permite, pode usar meu corpo para abraçar seu filho – as palavras de Bárbara tomaram a todos de surpresa e Astréia não demorou a concordar. Abraçando Bárbara, Oliver sentiu o calor da mãe em meio a chuva que caía sem piedade. E no coração de Jade, o sentimento de ciúmes brotou como uma erva daninha que rompe até mesmo o mais duro asfalto.